Há coisas que tenho de te dizer…

-“Não tenho fome, apenas alguma sede.” Foram as primeiras palavras que lhe proferiu, ao fim de algum tempo que se sentara à sua frente.
Estivera ausente por horas de desespero, para ele e para ela. Agora, ali, preso a um tempo, a um espaço e a uma pessoa, apenas soletrava pequenas nascentes de água salgada nos bugalhos vivos e coloridos do mais verde acastanhado que a natureza pode conceber.
Dir-se-ia que as palavras não se encontravam com o pensamento; dir-se-ia que havia tanto a dizer, mas tão pouco discernimento e vontade de o fazer. Sabia que a iria magoar…
Tentou uma, tentou duas, mas terminava como começava: um longo suspiro, inerte no ar, naquele ar que estava mais suspenso do que o habitual.
Ela, impávida e não menos escura do que a cal, sentia-se como um imenso funil. Só tinha ouvidos, nada mais. Para seus pecados, o seu sentido mais apurado não encontrava o estímulo procurado. Aquilo que recebia poderia escutá-lo de olhos fechados e só com o coração. Não precisava de ouvidos. Queria bem mais, muito mais! - “Diz-me!”, lançou enfim, acutilante no rasgar do silêncio.
Porém ele, mascarado para si mesmo, confortava-se com a noção de que já tudo dissera. Doce ilusão de fraca demora. Se não fosse para desenrolar o novelo da angústia não teria regressado sequer. Ai, como seria bom esquecer e retomar o de sempre, esquecendo tudo o demais! Não pode ser. Ele é mensageiro do presente e do futuro, do que está para acontecer. Então?
Ainda sem fome, começou a falar de fruta.
- “Hoje, abri uma maçã e pensei como é possível um pequeno botão resultar num corpo doce e sumarento, rijo mas imediatamente macio. Com cor vermelha, alegre e de um branco imaculado por dentro. Saboreei-a com satisfação, crente na sua magnífica prontidão de me alimentar o corpo e a alma. Quanto mais desvendava a maçã mais gostava do que sentia, do saber que ela me transmitia. Pensei novamente: qual maravilha da natureza providenciou este querido encontro com tão belo ser nascido de um botão e trazido pelo acaso?”
Nesse momento, suspirou mais uma vez e como que queimado pela labareda do candeeiro, tapou o rosto com as mãos e deu o primeiro gemido.
Ela, sempre pragmática na reflexão do mundo, nada entendia daquela estranha conversa. Já o olhava com o paternalismo do coitadinho, misturado na irritação crescente na ignorância do motivo de tamanho atraso. Dois dias e 6 horas passadas da hora religiosa de chegar a casa ao fim da tarde, de todos os dias de trabalho… É muito tempo para passar despercebido.
Passava horas longas em que não dava pela presença dele, noites que dormia como que sozinha, manhãs em que se esquecia que acordava acompanhada ou refeições em que não via o outro prato. E ele sempre ali, como um odor que se aproxima e tenta apegar, de fragrância falhada.
Contudo, dois dias e 6 horas é mesmo muito tempo! Por isso há que apertar com ele e puxar pela verdade. –“E que qualidade espantosa tinha essa maçã, que te fez desviar perdido, como um miserável, para longe das tuas obrigações?”
E ele… após um segundo gemido e já com as águas da nascente a borbulhar como germens de pequenas avalanchas, respirou fundo e deixou a dor disparar o mal que o matava por dentro e que tanto cuidara evitar propagar-lhe o contágio...
- “A maçã tão bela e rosada a princípio, mostrou-se de um branco imaculado de seguida. Doce, suculenta, macia, de corpo inteiro. Começou depois a mingar. Já não se via o rosado e o branco passou a amarelecido. De tal forma que não demorou muito a deparar-me com um caroço duro, rugoso, áspero, de pevides amargas e secas, sem esperança. Encontrei o fim da maçã e isso fez-me regressar ao fim de dois dias e 6 horas.”
E ao terceiro gemido, e já sem barragens que a segurassem, levantaram-se as águas em catadupa. – “A qualidade espantosa que encontrei na maçã foi verificar a analogia que existe entre ela e tu. Tal com a maçã, surgiste do acaso, formosa, sem reservas e de presença afogueada, com toque de carinho aveludado. Fui-te descobrindo em marés de espuma branca que banhavam o meu contentamento, de uma felicidade que quase podia trincar, tão forte era a sua manifestação. Fechava os olhos e saboreava-te em ledo esquecimento do mundo.”
Parou, respirou fundo e não segurou mais o martírio: - “Como a maçã, desapareceste, murchaste, secaste. Não passas de um caroço com pevides negras e inférteis. Na maçã convenci-me finalmente do fim de um ciclo. E a vida é um grande pomar.”
- “Há coisas que tinha de te dizer…”

Andarilhus “(º0º)”
IX : IV : MMVIII

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Wednesday, April 9, 2008 - 15:42

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Comments

Henrique's picture

Re: Há coisas que tenho de te dizer…

Texto bem escrito em dom da palavra!

:-)

MariaSousa's picture

Re: Há coisas que tenho de te dizer…

Um belo conto. A maçã é mesmo um fruto especial e cheio de significado...

Gostei!

Bjs

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