A Ferros

Lábios secos, boca cerrada em sorriso de dente rangido, corria-lhe sangue espesso pelo pó quente do terreiro ao longo das têmporas e sobretudo dos braços.
Tinha-o feito. Colhera as flores da raiva e da ira, triturara-as em almofariz de adrenalina. Entregara o comando ao instinto. Nem necessitara de acordar os reforços da coragem.
Logo ali, na vista turva do energúmeno, transpirara olhares feros de afiada vontade, como gritos roucos dos processo e dos actos que lhe afloravam em ondas as veias do mar alvo da sua pele eriçada.
Saltou a saliva como um bando de pardais espantados, que lhe espumou a barba rala e áspera, de tez de campina longamente queimada pelo sol. Dissera-lhe: “Não passas de hoje, cão infiel! Não terás a alegria de ver outro amanhecer.”
Tinha finalmente alcançado aquele diabo humano que lhe arrombara a casa, esventrara a família e cuspira na sua fé. Chegara enfim ao rosto da turba que lhe tomara o país, violado a terra e feito de si um animal fugido por serranias sem pé e de tempos sem dias ou noites.
Estavam ali, quedos por segundos esquecidos da História, quedos por 10 palmos e à mão dos punhais de ambos. O ódio levantara cortina de ocultação do agigantado campo da batalha, criara um espaço de funesta intimidade para a cruz e para o turbante. Na verdade, estimava-o só por ele estar ali presente. Só assim o podia abominar e crivá-lo de toda a maldade que lhe ocorresse…
O franquisque uivou no ar e embateu com estrondo na retesa cimitarra. As imagens do exílio, a perseguição, a fuga, os invernos frios, os antepassados mortos e cativos, os entes queridos perdidos para a cova, para os trabalhos e para as luxúrias dos palácios, para o deserto, tudo passava por aquele braço que brandia a fúria do pensamento.
O outro braço, o da cimitarra, não foi suficiente. Não estava com tamanho espírito. Talvez, o olhar terrível do oponente lhe tivesse enfraquecido a determinação. Não susteve o golpe, facilitando a força predadora do franquisque. A frágil armadura abriu brecha profunda e a carne não foi suficiente para abraçar a lâmina esfomeada: a dentada só abrandou no úmero, mas despedaçou-o. Estava sentenciado.
O atacante fez um sorriso de esmola na demanda de uma palavra de clemência. Não a ouviu, mas também não se importou. Rodou sobre si num círculo perfeito de 180º e a arma, mais uma vez, atiçou os pífaros do ar, soando brevemente numa surdina opaca, para sair do corpo em estridente vibrante agudo. O corpo caiu por terra em duas metades. O carrasco tombara no cepo que erguera.
E ele saiu dali com os lábios secos, boca cerrada em sorriso de dente rangido.

Andarilhus
X : VII : MMVIII

Submited by

Thursday, July 10, 2008 - 17:26

Prosas :

No votes yet

Andarilhus

Andarilhus's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 13 years 43 weeks ago
Joined: 03/07/2008
Posts:
Points: 868

Comments

Henrique's picture

Re: A Ferros

Texto bem escrito em dom da palavra!

:-)

Anonymous's picture

Re: A Ferros

De todas as vezes que leio teus textos...fica o sabor de sempre...os lábios secos de querer mais e saberem sempre a pouco

Add comment

Login to post comments

other contents of Andarilhus

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Love Confidência 1 1.214 09/14/2009 - 15:47 Portuguese
Poesia/Disillusion Anátema 4 912 08/21/2009 - 14:44 Portuguese
Poesia/Gothic Mortes 5 689 07/23/2009 - 01:27 Portuguese
Poesia/Love Túnica de Águas Doces 2 543 06/27/2009 - 10:29 Portuguese
Poesia/Sadness O novo génesis III: Os Salmos Apócrifos 2 656 06/27/2009 - 05:40 Portuguese
Poesia/Love Rendilhados de luz e sombra 2 690 06/20/2009 - 11:44 Portuguese
Poesia/Gothic O Novo Génesis II: A Floresta dos Encantamentos 3 752 06/07/2009 - 04:13 Portuguese
Prosas/Tristeza …E tanto que tinha para te dizer… 5 1.069 05/13/2009 - 21:00 Portuguese
Prosas/Thoughts O Novo Génesis: I - Epístola do Amor (resgatado) 2 816 05/06/2009 - 15:35 Portuguese
Poesia/Aphorism Enxoval 6 905 05/04/2009 - 21:22 Portuguese
Prosas/Romance Por Ti Seguirei... (7º episódio) 0 1.175 01/28/2009 - 11:07 Portuguese
Prosas/Romance Por Ti Seguirei... (6º episódio) 0 935 01/23/2009 - 15:11 Portuguese
Prosas/Romance Por Ti Seguirei... (4º episódio) 0 631 01/19/2009 - 10:52 Portuguese
Prosas/Lembranças Das certezas (Tomo V) 1 1.177 11/05/2008 - 20:41 Portuguese
Prosas/Romance Por ti Seguirei... (3º episódio) 1 889 10/22/2008 - 19:59 Portuguese
Prosas/Others Não te Esvaeças! 2 812 10/18/2008 - 15:10 Portuguese
Prosas/Romance Por Ti Seguirei... (1º episódio) 1 1.123 08/13/2008 - 21:06 Portuguese
Prosas/Others De Olhos Fechados... 1 1.584 08/08/2008 - 21:21 Portuguese
Prosas/Drama Profissão... com Fé 2 613 08/08/2008 - 20:38 Portuguese
Prosas/Others A Terra Rasgada ao Meio 2 896 08/02/2008 - 22:36 Portuguese
Poesia/Gothic Labores de Cristal 2 1.028 06/17/2008 - 23:37 Portuguese
Prosas/Fábula Nas Asas de Ícaro 1 1.447 06/13/2008 - 16:23 Portuguese
Prosas/Others A Esfinge 1 791 06/11/2008 - 22:33 Portuguese
Poesia/Love Ósculo Dei [O beijo de dEUS] 3 908 06/07/2008 - 22:32 Portuguese
Prosas/Others A Revolta dos Sonhos 3 889 06/05/2008 - 18:46 Portuguese