Romance em notas roubadas
Acordei da última noite neste desejo... Assaltar um banco e escrever um romance nas notas roubadas... Ecoam os sinos da igreja, flores canibais... Ressoam o limiar, levanto-me culpável... Paladar a delito, lábios de cauda vermelha... Salpicando a inocente manhã, ligo o rádio... Ouço o crime ao longe, bem alto planeio-o... Irei desarmado assaltá-lo, vestido na palavra... O banco, as entranhas de valor... Levarei tudo, tudo o que preciso para romancear... Cúmplice, pertence-nos não ainda sendo... Aguarda, belisca... Sem medo de vozes, seguro dele... Sagrado destino eleito à revelia, oremos pois... Clamemos o crime, este romance em notas roubadas... Parto difícil diz o senhor da bata branca, filho nosso é... Brindem-me é com asas, abram as portas o céu... Num recuo dos ventos parto distante do fim, voando sem cor... Sem susto afianço responsável, conheço essa árvore... Onde cresce a tinta que nos falta... Um campo sem fim, morando dourada... Chão de seu tom, rainha de folhas coroada... Paro o caminho, aponto instantes... Pequenas razões, melodias de luz... Aconchegar-te-ão na música desta vereda, ao mínimo toque... Descobrindo o ritmo que demanda esse olhar, bebendo-o num cálice... Travando-o fundo, saboreio todo o ar que inspiro... Atravanco pulmões, antecipo o crime... As palavras transparentes não mais, pouco a pouco... Algo as preenche nesta planície foragida, talvez a verdade dum ladrão... Máscara fora, fundo quem rouba olha... Sereno da sua escolha, vida qualquer... Flores do destino, visão de larápio... Pintar irá este vil, trazendo o longe para o seu colo...
Travo o carro em frente à fachada do banco, no lado de lá da rua... Na bagageira a tinta inquieta, dourada quer servir... Dissolver o sangue, dar voz ao romance... Sustido, encontra direcção neste labirinto... Do ouro vermelho sangue brota, notas marcadas... Saio brusco, salivando pelo assalto... Momento, caminha para mim... Entro já acusado... O teu nome estala a alma a todos os que se encontram dentro, há de ti um grito... Ouço a queda desta gente, vítimas inertes... Aproximo-me e vejo a sua expressão, vendo que não ela existe... Não perco mais tempo nisto... Acelero o passo entre eles, rodeando o balcão... Falta pouco, estão nas minhas mãos... As notas roubadas como irão ficar conhecidas, estas que guardo sem ver... Não há tempo, depois... Não houve qualquer alarme, o momento afasta-se... Destravo o carro, evado-me desta paragem...
Saio do carro, descarrego tudo... Passa pouco do meio-dia, cumpri o proposto... Arrumo o veículo, entro... Na sombra de minha cave, a tinta, as notas e o criminoso trancados... Anjos falsificados, torneiam o delito em liberdade... Retomam o destino contraído, quadro fechado... Estudam elementos, decidem entre si... Aparente dócil chegada, duros serão os passos... Escalas de nuvens carregadas, capítulos em falta... Assaltemos irracionais já, as letras amadas... Cela esta romance, perdida em intimidade... Ácido fôlego, arco amorfo desabitado... Inundarás de vida, demónios príncipes de vontade... Agarro um punhado de notas, instrumento rendo-me desflorando prosa:
«Para lá de tudo, moro num quadrado fechado por vidros... Quatro paredes atravessam-no... Deslizam fácil sempre que as empurro... Moro sozinho... Oitos triângulos dinâmicos e apenas eu... Oito quartos por encher... Lá fora na fronteira do jardim um muro cerca-me... À casa e a mim... Não permite contemplar... Não vejo para lá dele... Não sinto o exterior... Vivo encerrado em mim... Não sei como aqui cheguei... Já não estranho também... Dispenso explicações... Existo hoje... Olhar trespassa o vidro das paredes exteriores, esbarra no opaco muro... Como será lá fora?... Mudo a configuração da casa... Parece diferente... Pareço diferente... Não... Mascaro a minha cela... Não me converto à felicidade que imagino lá fora... Para lá desta prisão...»
Não consigo respirar, sujo de angústia acordo... É de manhã, adormeci a monte... Corpo estranho, abcesso alojado à tona da garganta... Intimida-me o reflexo desproporcionado, ri-se ele... Liquido alcalino, icor de palavras por lapidar... Sufoco se não te escrevo, epiglote obstrução... Tenta respirar, percebe-te... Ouve o coração bater... Acalma... Onde estão as notas, onde está a tinta... A casa que descrevi a sangue asfixia-me, não percebo se é motivo, se é consequência... Agora que tenho tudo, incerteza... Será este o teu corpo romance?... Tusso, o oxigénio resolve novamente intervalar... Será esta cela consequência deste destino, a nova morada?... Ou escrevo para saltar de vez esse muro?... Abro o cofre, numero as notas escritas... Guardo-as, estripo-o... Não sei responder ainda, mas não suportava esta falta de ar:
«Há dias em que encontro motivos... Noutros duvido deles... Acumulo porquês sobre o próprio... Destapo uma definição para o reflexo... Escapo-me às paredes da casa onde habito... Não lhes toco... Olho para baixo... É fundamental que não lhes toque... Desvio-me... Luto para que ainda seja neste tempo... Reforço o motivo... Ou não... Ainda se oferecem motivos?... Onde?... Não nesta casa... Ou não... Talvez... Aqui ainda sim... Não posso confirmar... Mas também não o posso desmentir... Haverá espaço?... Haverá lugar para um verdadeiro motivo?... Caberá dentro destas paredes?... Servirá?... Qual o tamanho correcto dum motivo?... Ficará bem vestido no próprio?... Em que cor deverá aproximar-se?... Só lamento este muro...»
Rasgo notas, a vontade esconde-se de ti... Detesto o que escrevo nestes papéis de valor, o que nos dizemos... Não nos ouvimos e apenas isso é, apenas isso... Isso apenas?... Será?... Não mostramos qualquer intenção de continuar, será que não serás tu?... Ao fim disto tudo não somos?... Não sei... Resisto a empenhar-me, hoje pelo menos faço-o... Ou não o faço... Não vou repetir que não sei... Apresento, antes, alternativas para decisões que não poderão ser ainda... Apenas rumores, caprichos desgostados tépidos e nada mais... Talvez não me pertença o romance, talvez viva melhor sem ele... Nem me conhece, viveu tempo a mais na minha cabeça... Esqueceu-se da vida de crime arrematada... Dias sem honra, abortos de palavras culpadas... Não era este o motivo, pareceu tão fácil o que ficou para trás... Agora não o é:
«Forço o sono caminhando por mim... Discordando ironicamente... Nem sequer me levanto... Nem tão pouco para espreitar lá fora... Desprezo a esperança em querer ver para lá deste muro... Esta muralha cerrada que me sitia nesta casa... Agora retrato as arestas do mundo num quadro egoísta e não sorrio... Também não choro... Admiro o que pintei, como um pai orgulhoso de seu filho perfeito... Arrisco ir lá fora... Acelero o passo, resolvo por fim... O muro é o meu par, aceito... Acompanha-me... Parede sul... Parede oeste... Parede norte... Parede este... Deambulo nesta opressão até ao início... Absorvo-me sem explicações num porquê... Onde o futuro não chega e eu envelheço... A casa está esvaziada de vida, até da minha que não se encontra... São só paredes e vidros a dar-lhe forma... A silhueta do meu abandono e um calendário com muitos anos... Escondes-me e o resto, por detrás de ti, esconde-se, o mundo... ... Sim, muro... Anuncias a fronteira na tua altura, bem no alto... Sim, muro... O que está para lá de ti, aquilo de que me proteges... Não restam dúvidas, não as alimentas... Sim, muro... Que explicação?...»
Um dia talvez termine este romance...
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