O segundo Milagre - Capítulo VI
VI
D.ª Leonor pernoitou nos aposentos nobres do Mosteiro de Alcobaça e no dia seguinte seguiu a sua penosa, caridosa e diplomática viagem até ao Castelo de Óbidos onde estava a passar uma temporada a meio passo da Serra de D’el Rei (será que o Baleal já era a bela praia que é hoje?) devido a uma possível peste que se espalhava pela grande Lisboa.
A viagem até lá foi penosa. Seis horas de saltos e mais saltos por entre valas e pedregulhos que é como quem diz; estrada nova a precisar de abrir uma nova vala para que haja uma nova lomba, enfiada dentro de uma carruagem sem suspensões, quente como o raio nesta altura do ano e vulnerável a todos os tipos de pó e até bicharada, pouco dignas de um membro real mas, para aquela época eram o melhor que se conseguia arranjar.
Durante toda a viagem tentou em vão a sua ama e confidente Júlia sacar-lhe informações acerca do que se tinha realmente passado na Fonte das Águas mas, a rainha mostrou-se sempre desinteressada em falar nesse assunto e mais preocupada com o que iria ser o jantar para a noite e qual melhor distracção para o serão. Júlia era velha e sabida e não desistiria até saber mais qualquer coisa mas, por agora contentar-se-ia com a indiferença que a sua senhora mostrava em relação ao assunto.
Chegada a Óbidos por uma caminho que não passara por nenhum local parecido com o descrito pela voz que a procurara dias antes, Leonor não mostrou quaisquer sinais de ansiedade e ardilosamente pensara já num plano para procurar o misterioso local no dia seguinte sob pretexto de distribuir esmolas pelo povo que ouvira dizer habitavam nas redondezas de um bela mata que havia perto de Óbidos e cuja mancha verde era possível distinguir das torres do castelo.
Óbidos não era nesta época mais que um povoado de pouco mais de 100 habitantes, entre artesãos, camponeses e outros cidadãos vivendo como mendigos dependendo da esmola nobre e clerical.
D.ª Leonor, ansiosa que nascesse um novo dia e solitária como estava, decidira não assistir a uma pequena peça de teatro que o povo preparara em sua honra (e a seu pedido) e fora deitar-se mais cedo (causando um certo aborrecimento surdo e geral) não sem antes brincar e conversar um pouco com o seu filho Afonso que não fora à feira da Batalha consigo, pois amuara porque sua mãe não mandara chicotear o filho de um escravo que ousara sorrir para ele certa vez que o vira passear pelos limites do castelo.
D. João, seu marido e senhor andava por Lisboa ocupadíssimo com os deveres do reino e não tinha tempo para passear pelo país para senti-lo como fazia a sua esposa para ver como vivia o seu povo. De certa forma era como se delegasse essa tarefa sem importância à mulher que sabia ser tido pelo povo como uma mulher bondosa e de boas famílias e que no momento certo o poria ao corrente de tudo quanto era necessário fazer para tapar com alguns presentes a voz do seu povo.
- Afinal parece que a tradição ainda é o que era.
É importante referir que nesta época Portugal vivia a-par-e-passo com as outras colossais potências mundiais da Europa, como a Espanha, a Inglaterra, A França e a riquíssima Itália e que estávamos num período de desmedido e extraordinário desenvolvimento económico sustentado principalmente na expansão marítima além-mar numa espécie de busca pelo Oeste, pelo desconhecido e principalmente pela necessidade humana de responder a uma das eternas questões: o que está para além do que vemos? O que é que está para lá? Que raio estamos aqui a fazer senão quisermos descobrir sempre mais qualquer coisa?
Portugal procurava o seu porquê. Procurava a sua fama. E que não fiquem dúvidas no ar, somos pequeninos mas bravos, defendemos o que certo achamos; contra os canhões marchamos!
Nesta época fulminando esplendorosa estava uma nação cujos receios tinham sido mandados para trás das costas, mais especificamente, para o norte de África e para o este de Espanha – se bem que os cabrões ainda cá vieram papar da sua Cerelac – histórias passadas – como diziam antes, uma nação preparada para um inevitável sucesso – quanto ao final da história leiam obrigatoriamente e entre outros o Equador do mestre M. S. T. e mais não somos infelizmente, tantos anos depois, que um bando de abutres, uns ridículos Coca-Cola killers mas, isso é outra aventura, - uma nação pronta a inscrever-se para sempre nos anais da história. Era este o nosso país e era D. João II o príncipe mauzão.
A agenda do rei estava milesimamente preenchida com viagens interesseira-diplomáticas por todo o país e principalmente pelo estrangeiro, tendo como objectivo inteligente a posição de Portugal como potência mundial em todas as terras por descobrir, e em todos os segredos por desvendar, além-mar. E desculpem a nova escapada mas aqui tenho que incluir: “ Ó mar português quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”, e, quem não souber quem escreveu isto que o descubra quanto antes como se para sentir tenha que se saber inefavelmente os porquês do que se lê.
D. João II criara a sua própria fama presente e por isso sempre que se deslocava ia sempre muito bem guardado porque se para os amigos era considerado como o Príncipe Perfeito, uma espécie de Galaaz arturiano sem determinadas virtudes, infelizmente para si e para a história viria a ser também cognominado pelos seus inimigos e principalmente pelos betos de outrora como o Tirano. Nunca se conseguirá agradar a gregos e a troianos ao mesmo tempo. Tão simples quanto isso.
Não se pode apagar da nossa história a limpeza nobiliárquica que D. João levou a cabo durante o inicio do seu reinado, erradicando pelo uso da força comum da decapitação os mais ricos e influentes membros da época que não viam com bons olhos e sua governação. Pôs fim à casa de Bragança e os que não foram mortos viram-se obrigados ao exílio no estrangeiro. O mesmo aconteceu com o riquíssimo e super influente Duque de Viseu que morreria apunhalado pelas suas próprias mãos, outro conspirador e por acaso seu cunhado.
Toda esta revolução interna que punha finalmente fim a invisível e surdo eco de feudalismo em Portugal, a reorganização política do reino, as acções diplomáticas e principalmente a cruzada ultramarina faziam de Leonor uma rainha cada vez mais só e cada vez mais empenhada na luta pelo bem-estar do seu mísero povo. Toda a riqueza e iluminação agora centralizada nos cofres de seu marido eram para ela um apelo gritando à generosidade para com os mais necessitados.
Também não se podia dizer que Leonor sentisse deveras a falta de seu esposo e até é bem provável que quando D. João se apoderou dos bens da Casa de Viseu ela tenha que ter comido as suas próprias vísceras numa espécie de dever de subserviente obediência que devia a D. João II, seu senhor. Mas factos são factos e quer-me parecer que o ataque directo ás suas origens em prol de uma causa superior de limpar o vicio da inacção de todo o pais nunca lhe bastaria para apagar o rancor que guardava de seu marido. Talvez por isso, e além de ser de facto uma pessoa com bom coração, se sentisse de certa forma conscientemente obrigada a distribuir parte da riqueza pelos mais necessitados. Lembrando o Mandarim de Eça, era como se todo aquele dinheiro e poder tivesse sido obtido através de um fantasmagórico pacto com o diabo e agora a única forma de expurgar esse pecado fosse aos poucos dar a quem realmente precisava pequenas fatias desse bolo envenenado que se tornaria doce e comestível nas bocas dos pobres. Nem mesmo quando fruto de vários anos de diplomacia, D João lhe oferecia meio-mundo através do Tratado de Tordesilhas em 1494, esse indescritível poder de dividir com Castela o mundo selvagem dos não-cristãos concedido pelo papa, nem mesmo nessa altura se sentiria tocada por qualquer sentimento de felicidade como expressando; tudo foi afinal feito pela prosperidade e grandiosidade da nossa nação.
D. Leonor nunca se deixou cegar pela ambição de poder desmesurada de seu marido e manteria até à sua morte em 1525 a mesma sobriedade, dignidade e empenho na luta contra a miséria instalada no seu país.
Tanta riqueza nos cofres e chegando de além-mar e por cá, ou se era escravo, ou, como na actualidade, se fazia esticar um orçamento familiar para além dos limites do possível. Como sempre, o crédito andava por aí e era a única solução. O pior é o malvado, surdo e solicitante juro.
Várias eram as razões que mantinham D. João por Lisboa e complexas as intenções que acompanhavam Leonor pelos confins de um pequeno país quase impossível de não conhecer de ponta-a-ponta mas, nem por isso devidamente considerado.
No dia seguinte e sem que fosse necessário anunciar nada a ninguém Leonor ordenou toda a sua guarda para um passeio próximo, mais especificamente, à mancha verde que se avistava da muralha do castelo e que deveria ser sem duvida um local óptimo para convalescer a alma de qualquer ser humano. Um local puro e refrescante repleto de beleza natural como poucos e principalmente talvez o local que precisava encontrara para de uma vez por todas deslindar o segredo que perseguia a sua alma desde há um par de noites. Uma espécie de prova dos nove; ou estava de facto a ficar louca ou então sem sombra de dúvidas era definitivamente alvo de qualquer vontade superior que ansiava como nunca sentir de novo.
A densa mata ficava apenas a 5km do castelo e por esta passava um sonoro, belo e prazenteiro riacho que caia em cascata a um determinado ponto criando um pequeno lago rodeado de fetos e variadíssimas tonalidades de hortênsias.
Todos se preparam para um passeio matinal. Foram destacados dez guardas para acompanharem Leonor e muito contra a vontade de Júlia, esta quis seguir sozinha delegando funções de ama à outra.
Tudo a postos, começaram por descer a empedrada colina do castelo até atingir uma vasta planície de terras pousio interrompidas apenas por um casario murado tipo quinta rodeado por algumas parcelas de terreno cultivadas pertencendo provavelmente a uma dessas famílias que ganharam o direito ao seu quinhão de terra através de algum acto de valentia em guerras antigas ou, por interesses que não interessam agora deslindar que validariam de qualquer forma um reconhecimento feito pelo direito a títulos nobiliárquicos e consequentemente o direito a uma parte do território, ou não teria Portugal nascido da mesma forma como o Condado Portucalense.
No círculo imaginário criado pela nossa visão quando se olha em redor tudo tinha um tom esverdeado cortado apenas por duas linhas castanhas, denotando o local de passagem há muito usado e conhecido por caminho real ou público. Em pouco mais de meia hora já a carruagem real atingia o riacho com pouco caudal que era possível ser atravessado sem a necessidade de uma ponte improvisada. À direita do riacho, talvez pouco mais de 100 metros, um grupo de camponeses assustados rodeavam uma pequena presa natural esbracejando e apontando na direcção da oculta e misteriosa negritude da mata que se estendia pela ligeira colina acima.
Como uma luz que se acendia de repente na mente, sem assistir a esta cena mas, ouvindo o burburinho próximo, Leonor soube instintivamente que era ali que tinha que passar. Ocorreu-lhe subitamente o que a enigmática voz lhe dissera uns dias antes:
- Criarei uma diversão e saberás que é aquele o local e o momento para me encontrares.
Nisto, como um relâmpago pensou alto para si mesma:
- É aqui. É aqui que tu te encontras. Acto contínuo e ainda indecisa sobre o que fazer gritou de dentro da carruagem:
- Pare imediatamente! Como quem espera que o semáforo passe a verde para arrancar em debandada também o cocheiro estacou de imediato os cavalos naquele local.
Ainda paralisadoramente atemorizada e hesitante em avançar para o seu destino – de louca, ou tocada por algo superior e intrincadamente ligado ao seu imaginário medieval, decidiu, usando a sua alva mão, correr lateralmente um pouco a cortina para observar na realidade a cena que a sua mente já concebera momentos antes e no momento em que os seus olhos se fixavam na distância numa imagem lenta sem som sentida apenas por um coxo surdo correndo 1500m livres num estádio cheio de povo numa qualquer competição para-olímpica, todo o corpo de Leonor rebentava como um vulcão estalando a entranhas da Terra lava de susto ao cair na realidade de ter o seu capitão da guarda na sua frente inquirindo insistentemente:
Minha senhora? Minha senhora? Ao mesmo tempo ia franzindo o carregado sobrolho numa exclamação de - mas a mulher está doida ou quê? – Até que a mesma finalmente reagiu e tentando disfarçar o indisfarçável, respondia.
Sim. Sim. Mas o que se passa? Porque tanta insistência?
Desculpe-me minha senhora. Quero apenas saber sé aqui que deseja parar? E se deseja que investigue o que se passa mais além com aquele bando de porcos? E como se já soubesse antecipadamente que cometera um inevitável erro tentou corrigir:
Quero dizer, aquele grupo de pessoas um pouco mais á direita daquela vara de porcos selvagens que passou por ali a correr. E engoliu em seco. Leonor percebeu de imediato a farsa do seu capitão e fazendo uma cara de poucos amigos que deixa a entender que a mim não me fazes de parva decidiu passar por cima da ofensa feita ao seu povo levantando apenas a sua voz para dizer por fim:
- Bem. O que desejo é que me investigue celeradamente todo o alvoroço que está a acontecer ali perto daquela presa de água.
Confirmando que sim com todo o seu corpo e não ousando sequer falar de novo o capitão da guarda desmontou o seu cavalo e fazendo sinal a dois dos seu guardas pôs-se ligeiro a caminho do alarido.
Estavam a uns bons 100m embrenhados no suave bosque de ciprestes, loureiros, carvalheiros, pinheiros, eucaliptos, sobreiros, plátanos e outra tanta variadíssima vegetação mais rasa de onde se destacavam os resistentes fetos, o que fez com o que capitão demorasse cerca de dez minutos entre o ir, o obter informações e o voltar de novo para junto do resto guarda e do coche real. Com uma mão segurando a cortina da janela, Leonor consegui avistar com clareza o local e as pessoas que lá estavam. Viu o capitão chegar ao local com os seus dois ajudantes e percebeu que decorreu um breve interrogatório e que antes de fazer o caminho de volta o capitão se baixou para tocar com a sua mão a água da presa. Chegado dirigiu-se até à janela do coche onde ansiosa por notícias Leonor o esperava e mais subserviente que o costume declarou:
Com a sua licença, minha senhora? Ao que esta sem exprimir qualquer som respondeu – diga-me tudo o que ali se passou. E este continuou:
A senhora desculpe-me mas, não consegui perceber nada de concreto, tanto pelo ridículo que me relataram, como devido ao dialecto bárbaro que usaram para me tentar explicar o que acontecera.
Leonor olhou interrogativamente mas não fez quaisquer comentários esperando o desenrolar do relato.
- Não me parecem pessoas certas da cabeça aquele bando de inúteis. – Deteve-se. – Desculpe-me, aqueles camponeses.
A rainha acenou negativamente com a cabeça como dizendo que não vale a pena o Sr. capitão não tem culpa de ver o mundo como os burros, em frente e somente pelo ângulo proporcionado pela distância das palas pequeninas e insignificantes e interpelou educativamente por fim como dizendo que pura anarquia só mesmo com Woody Allen:
- São camponeses, sim. Homens e mulheres deste país de todos por direito que é Portugal.
Como preparado para ouvir um sermão do A. Vieira à guarda deste país, o capitão mordeu ligeiramente os lábios num sentimento falso de tem toda a razão minha senhora e manteve-se hirto.
- Adiante! -Voltou a rainha. – Porque mudar as mentalidades não é coisa que infelizmente se possa fazer da noite para o dia e nem toda a gente se chama D. João. – Sorriu. O capitão sorriu também mesmo sem perceber de imediato a implicação do que fora dito como quem ri de uma piada que não ouviu, ou não percebeu e simplesmente o faz porque, das duas, uma, ou é parvo, ou faz-se disso por interesse de imbecil.
Continuando. Volveu a rainha curiosíssima por saber o que realmente se teria passado por aquelas bandas.
- Porque dizes que aquele povo não bate bem da cabeça?
O capitão da guarda hesitou um momento medindo milimetricamente as palavras que deviam usar para não cair de novo na tentação comum de desprezar os componeses-escravos e pondo uma pose segura de quem fala carregando o peso de toda a sabedoria humana, acrescentou, seguro e pausadamente:
- Entenda sua alteza que o que me foi dado a entender, o que foi muito pouco, alguns dos presentes afirmam com todas as ganas que viram um monstro que era de certeza um demónio, senão o próprio Satanás em bicho saído prematuramente do Fausto de Goethe, ou uma horrenda baratona fugida de uma alienação kafkiana.
- Leonor franziu o sobrolho e mesmo tentada a intervir já, conteve-se e deixou o contador da história porfiar o seu inexplicável e medonho relatório. E este, tentando manter uma atitude de respeito para com as suas fontes mas sentindo-se na realidade à beira de um ataque de riso pensando – imaginem quando eu contar isto à tropa -, prosseguiu:
- Outro falava desconexada e apavoradamente e pelo que consegui traduzir; parece que a tal besta estava a refrescar-se dentro do pequeno lago natural que os tempos ali formaram e que estando de costas para todos os olhou com olhos invisíveis para de seguida levantar voo. – Neste instante o capitão já quase não disfarçava a expressão hilariante que cobria todo o seu corpo, principalmente os seus olhos e lábios fechados mas, continuou:
- E isto não é nada quando comparado com o que ainda não lhe contei minha senhora. Pausa. – Um olhar daqueles que diz tudo e que ordena claramente para desembuchar de uma vez por todas o que ali se passara controlou o eminente descontrolo do capitão que avançou:
- Depois de besta se sumir voando por entre a mata e nela se sumir como fumo perdido nos céus parece que a água do local começou a fervilhar e exalar um odor forte fedendo a morte que na opinião dos mesmos só pode ser causado por aquela água ter sido tocada pela podridão danada da coisa vinda das profundezas para o mundo. – Respira profundamente como controlando o ritmo do seu discurso e não pode deixar de lançar uma olhadela de fugida para os seus compinchas que se mostravam agora também um pouco intrigados com tão misteriosa conversa, impávido e sereno pensando – ah caralhinho quando eu vos contar esta história – mas este pensamento guardou para si e restabelecido por esse breve encher de ar os pulmões afinou as cordas para canção:
- Estava lá um gaiato.
- E pensou num porquinho. Numa dessas crianças que imaginamos numa história de Dickens, toda mascarada, com vestes degradáveis, todas sujas, todas porcas, todas ranhosas. Mas não disse nada à sua senhora. Pensou apenas para si próprio.
- Estava lá um infantil.
- E até já eu estou a ficar farto com tanta demora. Conta lá o que é que viste meu cãozinho de guarda. Pensa Leonor.
- Uma criança? Uma criança? Oh meu Deus uma criança.
- Tudo nela se ilumina de repente como um farol ferindo a vista.
Acontece um compasso de espera e o cão abana o rabinho.
- Quando eu apareci aqui. Estava aqui uma criança. Foi um momento tão bonito. Tão planeado. Eu sou o Equilibrista.
- Estava lá uma criança que diz que era um dragão. Mas como pode uma criança daquele tamanho acreditar em dragões, ou acreditar que se é aquilo que se quiser ser, assumirmos a forma que quisermos numa espécie de simbiose com a energia que nos envolve. Valha-nos Deus minha senhora se vamos dar ouvidos a estes, a estes, a estes, …
- A estes, quem o quê? Leonor não dizia coisa com coisa quase desmaiando por antecipação estava decidida a matá-lo para que ele falasse imediatamente. Estava a ficar desesperada, ela também tinha um filho, o seu predestinado Afonsinho que atingira à pouco os dez anos de idade. - O capitão voltou cínico como nunca:
- A estes seres minha senhora. – Leonor percebeu o frete que o seu lacaio fizera mas, cogitava mais além;
- Serás tu quem me espera? A tentação, o demónio das profundezas que me quer por à prova? Mas, testar-me, porquê, porque assombrosa razão estou na tua vontade? – Sem que notasse o drama que se iniciara na mente da sua dona, o soldado desenrolou mais um pouco o novelo da tragédia cómica como um historiador relatando os factos com toda a veracidade. O que iria fazer com esta história depois de passar a informação primária só este poderia idealizar e sem duvida que algo de ridículo e motivo de chacota nasceria daquele momento.
Enquanto dentro da carruagem, o corpo de Leonor era um mar chão de verão, no seu intimo fortíssimas e medonhas correntes transportavam para os confins dos oceanos os seus pensamentos, o outro continuou:
- O gaiato, como não se tivesse amedrontado com a coisa – esboça um ligeiro sorriso – e assim que ela abandonou o charco, este desatou a correr naquela direcção e nem com gritos e ameaças de soves parou antes de ter saltado lá para dentro completamente vestido. Parece que perante o suspense e estupefacção dos outros, sorriu e gritou que a água estava quentinha. – Mas havia mais e por isso após uma ligeira pausa prosseguiu:
- Segundo a gentinha aconteceu um milagre. No tempo decorrido entre o local onde estava até tentarem resgatar a criança do caldeirão do demónio, pouco mais de um par de minutos, a criança curou-se de uma doença de pele que tinha. Uma doença qualquer que não sabem identificar mas que consiste numas manchas no corpo, uma espécie de sarna – e pensou - nesta corja deve ser mesmo sarna ou então merda acamada pelo tempo – continuando – essas manchas desapareceram por milagre.
Os olhos de Leonor adquiriram um repentino brilho de esperança em qualquer coisa divina. Não sendo do conhecimento real, com a excepção do seu marido, dos seus pais e de uma outra ama de companhia ninguém sabia mas, também Leonor era portadora de uma doença parecida cuja cura não existia. Seria possível estar ali a sua cura? E tratando-se de um demónio como explicar uma atitude de um anjo? O que é que não bate certo aqui? O relato precipita-se para o seu fim como toda a água corre no sentido do mar.
- Incrédulos, assustados, acercaram-se do charco onde o leitãozinho se banhava e como extasiados por uma fé irracional de quem esfola em sangue joelhos no circuito de corridas profissional num qualquer santuário, experimentaram uma sensação de calma e desejo de também eles experimentarem aquela água. Parece que uma velhota – porca rija, pensou – se tem queixado com dores nas articulações nos últimos tempos e que acreditando na ingenuidade pura de seu neto, avançou e estacou-se por uns momentos dentro do banho-maria para poucos minutos depois, coincidindo com o momento em que paramos aqui, saiu lá de dentro curada, gritando: - Milagre, milagre. – O capitão estava á beira de um ataque de riso e inquietava-se pois, já imaginava as risadas que este acontecimento criara para o serão na taverna com os seus camaradas logo mais à noite. Mal contendo o seu ânimo concluiu:
- Se esta gente não está doida para lá caminha. – Pausa e reflecte o seu discurso. – As únicas verdades são que de facto existe um estranho borbulhar na água provocado provavelmente por alguma actividade interna da Terra e que a mesma água tresanda como bufas retardadas de gigantes alimentados a couve-portuguesa. – Calou-se.
A rainha nada disse por uns instantes limitando-se a fixar os seus olhos no grupo de camponeses que agora talvez por medo ou por respeito não abandonavam o local onde estavam, envolto numa natureza selvagem feita de diversas, oscilantes e silvantes tonalidades de verde mesclando-se com a desconhecida e fantasmagórica sombra do medo. De lá, estáticos e tristes como uma numerosa família numa fotografia velha a preto e branco, amarelecida em tons de sépia pela passagem inexorável e irreversível dos tempos, com a expressão de burros estudiosos de arte admirando palácios, fitavam a comitiva numa espera de animais encurralados a caminho do matadouro real. O que será de nós? Pensavam numa só voz desesperadamente ostentada no subserviente olhar de cão de rua abandonado vasculhando caixotes de lixo, tombados pela mão dos primeiros vasculhadores erectos, sonhando com alguma sobra milagrosa. Ali estavam os infelizes.
- É aqui. Chegou o momento. Vamos parar aqui! Monte um perímetro de segurança imediatamente. - Ordenou decidida, e peremptoriamente.
- Vou pessoalmente falar com aquelas pessoas. O que quer que se tenha passado tem concerteza uma explicação razoável entro dos limites da racionalidade humana. – Como uma canoa tentando nadar sozinha no sentido contrário das águas agitadas de rápidos de rios revoltados, assim tentou o capitão demove-la da irreflectida intenção de se dirigir àquele local. Não porque temesse que algo sobrenatural pudesse acontecer mas., porque não confiava naquela vara de porcos que a qualquer instante, movidos por um instinto animalescos, pudessem desferir um ataque de mortos de fome contra o bem-estar da sua senhora. E com maior receio da punição aplicado por D. João II do que propriamente com a vida da sua rainha por qualquer coisa inesperada que pudesse infelizmente acontecer, teve que engolir o sapo e permitir que a mesma avançasse sozinha na direcção do bando tendo que manter a sua guarda a cerca de uns desconfortáveis 50 metros da protegida. Nada podia fazer. Um erro que lhe poderia custar a própria morte mas, conhecia bem o feitio de Leonor e contrariar a sua vontade também lhe traria problemas. Limitou-se por isso a ouvir e a montar a teia de protecção o melhor que sabia.
Leonor desceu de seguida da carruagem real, usava um elegante vestido cor de pérola que lhe caia rente ao chão mas não o tocando, a decidida e austeramente informou mais uma vez que iria sozinha que todos os outros esperariam ali por ela. Assim, avançou suave e delicadamente pelo carreiro quase inexistente que era acompanhando por um pequeno riacho ladeado por fetos, musgos, líquenes e outra variadíssima vegetação rasteira que se iniciava no charco um pouco mais à frente. No seu encalço, quatro guardas reais seguiram-na até meio caminho dissimulando-se depois como fantasmas por entre a mais cerrada vegetação.
À medida que se aproximava do local mais este parecia querer distanciar-se dela num misto de avançar corajoso contra a própria morte. Quanto mais se aproxima mais densa se tornava atmosfera e agora um odor sulfuroso crava-se pouco a pouco ao corpo tão intenso como o cheiro a sardinhas assadas. Nem o mais poderoso e eficiente filtro seriam capazes de limpar aquela agonizante fragrância que só o medo carrega.
Pelo sim pelo não o capitão da guarda mandou dissimular por entre as arvores mais um par de guardas enquanto os restantes ficaram protegendo a carruagem no local da paragem. Não se pode dizer que Leonor tivesse inimigos mas, com tanta miséria pelo país a ladroagem ganha a vida nas poucas oportunidades que o destino oferece e aqui a ali surgem de vez em quando relatos de grupos de ladrões que atacam aleatoriamente carruagens em busca de riqueza fácil. Como sempre as tradições mantêm-se imutáveis em alguns aspectos da história.
Do outro lado do palco um zumbidinho de abelhas procurando alimento e as conversas matinais da restante bichada altercava-se com um burburinho sem sentido dos autóctones que se foi timidamente calando com o aproximar amedrontado e disfarçado de sua alteza. Como toda a natureza reparasse na beleza intangível e indescritível daquela imagem que se aproxima, tudo se calou momentaneamente.
Como as noticias tem os seus próprios, rápidos e naturais canais de comunicação que transportam toda e qualquer noticia até aos mais recônditos e inimagináveis locais, infelizmente nem sempre com a devida veracidade e imparcialidade mas isso é outra história, todos sabiam tratar-se de sua alteza real, rainha D.ª Leonor que passava uma temporada alojada no Castelo de Óbidos devido a uma estranha peste ameaçava ganhar vida para os lados da cidade portuária de Lisboa, distribuindo o seu tempo entre visitas aos bispados mais próximos e passeios pelas belíssimas praias da região na zona centro Oeste do país.
Eram sete da manhã. O dia despertara a Este com todo o seu esplendor vermelho alaranjando pintado de vida e esperança todas as paisagens e seres à sua frente. Os camponeses, acordados pelo despertador supremo e natural de levanta-te-vai-trabalhar-para-que-evites-o-cortar-do-chicote, estão de pé prontos para trabalhar assim que a escuridão total dá lugar ao mundo das sombras diáfanas. Nem mais um minuto. Fazem um farnel feito de pão duro com pão com bolor, comem umas papas de nada e fazem-se ao caminho sob o olhar frio e concentrado de seu senhor que espera ansioso que os mesmos desandem para poder ferrar-se mais um par de horas no seu sono nobiliárquico.
Os coitados trabalhavam umas terras mais a oeste cultivando arroz nas várzeas da redondeza. Estava na altura de transplantar o arroz nascido a debalde para um campo mais irrigado e onde tinha mais espaço para se desenvolver. Todo o trabalho era feito com as mãos e apenas usavam as enxadas para abrir aqui e ali um canal de irrigação novo e umas foices para cortar ervas indesejadas que tentavam saltar as pequenas valas que separavam os campos de cultivo. Para além deste trabalho, ainda antes que o dia quisesse ser noite, apanhavam vários molhos de erva que todos transportavam às costas através de distâncias enormes para alimentar o gado dos seus senhores. Todo este trabalho era religiosamente cumprido dentro dos horários. As marcas nos corpos dos mais velhos serviam de exemplo vivo para os mais novos. Não valia a pena tentar ser diferente, tentar ambicionar mais que a miséria que possuíam. Em vez das utópicas hipocrisias capitalistas, o chicote e a espada ditavam as regras nesta época onde o esclarecimento iluminado humanístico, tentava pouco convictamente, romper com as ordens obscurantistas medievais.
Como cães que puxam o trenó do pecado humano sem nunca sentirem verdadeiramente a leve frescura da neve debaixo de seus pés, ali estavam cada vez mais tensos, esperando que a sua sorte não lhes ditasse brandamente um novo desaire.
Aquela imagem primária de estar andando sempre no mesmo sítio ao sabor do ritmo de um relógio pendular que Leonor experimentara enquanto se dirigia para o local suspeito num percurso de cerca de 300 passos, aproximadamente 4 minutos, rodeada por árvores, pelo odor da manta morta transformando-se em substrato vegetal, o incomparável prazer de inspirar o fruto da mais virgem clorofila em transformação permanente. O despontar do dia trás consigo a azáfama da produção constante de oxigénio puro que lhe arrepia todo o seu corpo e faz estremecer sua frágil e receosa alma. Leonor sentiu-se como estando o seu corpo chagando ou sendo transportada extasiada numa padiola ao som ritmo do de tambores dentro de uma caverna iluminada apenas pelas chamas dos archotes queimando o ar para ser sacrificada num altar quando chegou realmente ao local onde acontecera, segundo o seu capitão da guarda, um episódio ridículo testemunhado por uma vara de porcos, a chacota da beberragem salpicada nocturna da rapaziada na taverna, o covil do pilão. Esse sentimento não transparecia contudo no seu olhar e no entanto toda ela tremia como fosse uma oliveira prestes a ser corneada por um touro. Ali estava ela. Na sua frente uma massa unida de vida. Um laço de dor e sofrimento brilhando numa dezena de olhos opacos sem brilho esperando o mandamento daquela que era para eles o seu ícone especial.
Enquanto o olhar de Leonor se desviava angularmente inspeccionando milimetricamente aqueles pares de almas desgraçadas que nunca terão posses suficientes para ir passar umas feriazitas a Lagos, nem nunca conhecerão um dia de semana sem trabalho indo à missa e a seguir trabalhar sob o jugo de: produtividade a ditar as suas regras, como dizia, sua alteza acabara de chegar e no mesmo tempo em que um colibri bate as asas já os camponeses se ajoelhavam no chão húmida e negro do local, numa atitude de subserviência e respeito pela deusa que os podia ajudar ou inserir no livro de óbitos
Os olhos de Leonor pareceram querer saltar das suas orbitas perante esta atitude que lhe parecia tanto enternecedora e respeitável, como grotesca e o exemplo do distanciamento social em todo em seu esplendor e para que isso não desabasse num mar de lágrimas que seus olhos antecipavam, ela sorriu e colocou a mesma expressão sincera que usa para falar com toda a gente acrescentando ainda uma pitada de cumplicidade beatificada por serões com damas de companhia e como um gigantesco glaciar separando-se da sua massa original de encontro a um mar profundo a deusa falou com a doçura do algodão doce e disse-lhes:
- Bom dia a todos queridos irmãos.
Como tivessem sido petrificados por aquelas tão inesperadas palavras, o grupo manteve-se imóvel como bonecos numa fotocópia mal tirada, toda borrada pela sua miséria numa imagem interior de perigo laranja ninguém mexeu uma única célula. Os únicos ruídos que se sobrepunham aos outros eram agora o silvar do vento restolhando pelas copas das árvores e o suave chilrear das águas riacho abaixo.
O tempo parecia ter parado de repente. A única alma reflectindo e agindo racionalmente era ela:
- Coitadinhos. Pobres almas. Que miséria tão grande. Para que tem meu senhor e amo tanta riqueza se não chega onde é precisa? Quem defende esta gente?
Olhou para eles curvados quase a seus pés e pouco mais conseguia ver que uma amontoada e negra manta de retalhos ameaçando desfazer-se a todo o momento, cheirando a catinga de branco mal lavado repousando na hora de descanso numa carrinha metálica sob o ardente calor do verão. O seu aspecto quase se fundia com a natureza circundante. Se estivessem molhados e naquela posição, um observador inexperiente e desatento colocado num outro local estratégico mais elevado podia facilmente não filtrara a sua imagem na terra e da manta do bosque. Até mesmo o seu aspecto bronzeado parecia adquirir contornos esverdeado com tons muito idênticos aos da natureza.
Três mulheres adultas, uma casadoura com o próprio irmão pela casa dos 12 anos, uma rapazito de 6 anos, e seis homens adultos, sendo o mais velho o que tem cabelos mais longos e brancos com aproximadamente 49 anos de idade e o mais novo um homem de dezasseis anos. O tal irmão que iria desposar a sua irmã casadoura. Pelo seu aspecto etíope já estava embaraçada de certeza. A típica família medieval portuguesa colocando toda a esperança nas mãos de um Deus que não se manifesta.
Leonor estava colocada entre o grupo e tinha nas suas costas o pequeno lago mal cheiroso e em permanente contida ebulição mais visível através do vapor libertado do que propriamente pelo som chapinhado das bolhas de ar subindo aos céus. Sabia que tinha que ganhar a confiança do grupo para conseguir saber o que realmente acontecera naquele local e a bem ou mal isso iria acontecer. Acto contínuo, voltou a cumprimenta-los:
- Bom dia a todos. Podeis-vos levantar.
Como já não estivessem ali e fossem apenas uma planta, arbusto ou estátua esquisita na flora do bosque permaneceram tão quietos e surdos como uma árvore a ter um parto.
A senhora esboçou um ligeiro sorriso pois, percebera que nunca conseguiria mudar a forma de agir do seu povo e a única língua que verdadeiramente conheciam era um pequeníssimo dialecto onde o mais que se incluía era ordenar, mandar fazer, maltratar ou mandar maltratar. O que menos desejaria seria destratar aquele punhado de gente informe e sem calor mas, para descobrir o que queria estava disposta a fazer um pouco de bluff para ver como reagiriam as tristes figuras. Assim, rindo por dentro mas expressando severidade e poder em todo o seu semblante disparou tão gravemente como o troar de um trovão:
- Ordeno-vos a todos que vos levanteis, me olheis nos olhos e que respondeis prontamente a todas as questões que vos colocar! – Pausou, encheu o peito de ar e finalizou brusca e estridentemente: - imediatamente!
Numa imagem em câmara lenta todo o grupo se levantou mantendo contudo o seu olhar prostrado no chão não ousando fixar o seu olhar nos olhos claros e petrificantes de Leonor. Fruto de toda uma cultura ancestral feita de diferenças sociais é este o povo que temos. Asnos com palas, sem amor-próprio, dependentes, obedientes, a subserviência em todo o seu esplendor. De pé ali permaneceram como estátuas à espera.
Leonor percebeu a humildade e simplicidade do seu povo e decidida que estava em manter a sua pose autoritária o tempo suficiente para obter informações achou que não lhes causaria grande sofrimento se interpretasse o seu papel de rainha segundo os conceitos autoritários da época, por isso colocou uma expressão surda que obrigava todos os presentes a dizer qualquer coisa o quanto antes sob pena de sabe-se lá o quê.
Sem a fixar nos olhos directamente e porque o povo não é assim tão estúpido quanto se julga, o silêncio de interrogatório que se instalou ali naquele local obrigou-os a todos a levantar a sua fronte na sua direcção para enfrentar de cabeça erguida o seu destino. Numa sensação desconfortável de quem olha directamente para o Sol, todos semicerraram os olhos até estes se habituarem à visível luminosidade resplandecendo do olhar malandro de Leonor. A sua estratégia estava a resultar e acto contínuo Leonor voltou á carga:
- Estou à espera meus senhores. O que é que se passou aqui afinal.
Um silencio sepulcral instalou-se de novo enquanto Leonor dava ênfase a seu olhar austero que parecia agora uma espada desembainhada preparada para espeta-los todos como não passassem de nacos de carne a caminho de um churrasco real até que o mais velho do grupo, um ancião com cerca de 50 anos, parecendo ter antes 200 pareceu dar indícios de querer falar.
Tinha um aspecto porcalhão de vagabundo mijão perdido pelas ruas da tristeza, carregando apenas uma garrafa de pinga, o seu elixir da vida. O seu escasso cabelo branco desgrenhado e sujo cortado à pedrada tornavam a sua aparência quase leprosa. A pouca área de carne que se mostrava na sua cara entre uma barba tão mal semeada quanto cortada deixava antever apenas um campo lavrado crestando ao sol esperando uma chuva que não viria nunca, o melhor de todos os cremes antirugas-noite, a morte. E apesar de todo este aspecto imundo e corpo curvado pelas agruras da vida estava colocado atrás de todo o grupo mantendo os seus braços abertos e as suas mãos grossas e gretadas numa espécie de abraço protector demonstrando que algo mais que apenas animalidade existia entre aquelas gentes.
Os seus pequeninos e encovados olhos castanhos mal centrados numa base amarelada fixaram-se finalmente nos de Leonor como se pela primeira vez na vida o escravo levado à força para uma arena cheia de bestas não temesse o seu previsível desfecho, ser desventrado sem anestesia, a sangue frio, o mesmo que ver cair por terra suas entranhas fumegantes, ou a sua cabeça rolando pelo chão ainda em consciência de um corpo morrendo esguichando sangue pelo pescoço qual galo a caminho do tacho para uma suculenta cabidela. Algo no olhar de Leonor lhe dizia que se tratava de alguém diferente, de alguém distinto, de alguém verdadeiramente real e talvez por isso todo o seu inconsciente se desinibisse conscientemente na vontade de poder falar com a liberdade apertada de um confessionário. Assim, numa espécie de galega-algarviada-aporteguesada linguagem, encheu o peito de ar proferiu a seguinte e difícil de compreender mensagem:
- Cá gente vermos, ser de creditar pouco, nha chenora altessa.
Leonor cerrou um pouco os olhos pensativamente como um estudioso linguista que procura nos fonemas a mais certa correspondência morfológica que filtrando uma estranha informação lhe consegue atribuir um determinado e compreensível significado par de seguida lhe responder de forma insegura mas, confiantemente:
- Caro senhor. Nada de mim tens a temer. Nem incompreensão, nem tão pouco, despeito pelo que me tens que contar. Explica-me calma e pausadamente por favor tudo o que viste com toda a honestidade e nenhum
Cairá sobre ti ou sobre os teus. Palavra de Rainha.
Nesta forma aproximada de coro de igreja em permanente genuflexão beatal – palavra da salvação – se dirigiu sua alteza ao ancião, que não sendo burro de todo mantinha um pé atrás relativamente ao que afirmava Leonor, pois, não sendo profeta visionário, nem nunca tendo lido “ O Primo Basílio” de Eça, ou “Madame Bovary” de Flaubert, compreendia o suficiente do seu tempo para perceber que o que a vontade e o poder de uma mulher representavam nesta época renascida das trevas ia pouco além da escolha do menu para as refeições, se tanto; neste aspecto, ainda bem que a tradição já não é o que era; e assim como quem lança uma chumbada transportando na sua proximidade um anzol bem engodado sem saber qual o pescado, o velhote proferiu renitentemente:
- Nha alteza zcho é ca genta habla daquilo que videmos, entonces chimchenhora agentes abalaremos.
Ouve um curto e incompreensível silêncio no qual, por um lado o ancião esperava um qualquer sinal da divindade representada pela figura simples e sublime de Leonor para enfim poder prosseguir com a sua história, e por outro lado uma interrogação da própria rainha quanto ao verdadeiro significado do que o ancião acabara de dizer; - Será que quis dizer que falará sobre o que se passou, ou por outro lado me está a querer dizer que o seu desejo é ir embora à sua vida; abalar? A dúvida da mensagem dissipar-se-ia no segundo seguinte quando o velhote iniciou finalmente a narração fidedigna da aventura maravilhosa que todos presenciaram uns momentos antes.
Imediatamente e com pose de historiador que descreve o passado ainda na sua forma pura, verdadeira e original, Viriato, inicia o seu relato observado pelos olhos que existem nas nucas de todos os seus parentes languidamente estonteados pelo momento em que um dia puderam privar com a rainha de Portugal. Começou por dizer que tinham saído de casa do seu senhor por volta das cinco da manhã, mais ou menos uma hora antes de o Sol cumprimentar a Terra com o seu caloroso e reconfortante bom-dia. Esse local mais a Este distava pouco menos de uma hora de caminho do local onde agora se encontravam e onde habitualmente paravam para encher as suas bilhas de água quando trabalhavam para aqueles lados pois, segundo este, aquela água sempre tivera uma frescura e sabor diferente de todas as outras que conheciam. Pouco passava das seis da manha quando chegaram ao sítio onde estava agora parada a comitiva de Leonor quando avistaram na distância o demónio em corpo e alma.
O ancião pausou momentaneamente enquanto arregalava agora os olhos de tal forma que estes quase pareciam querer saltar das próprias órbitas para de seguida iniciar o seu testemunho como se estivesse de novo a reviver aquele inexplicável e assustador momento anterior. Continuou.
A coisa sentiu a nossa presença e virou-se para nós. O seu olhar percorreu a distancia, perfurando veloz como uma flecha envenenada o nosso entendimento incapaz de objectivar o que víamos. Sentimo-nos petrificados e incapazes de qualquer tipo de reacção. Ficamos presas fáceis e imóveis de seu olhar hipnotizador de predador das trevas.
À excepção da criança que o capitão da guarda já refira no relato a Leonor, todos pareciam um bando de segregados raciais à espera do castigo da raça superior, tal era o seu olhar indefeso e assustado ao mesmo tempo que ouviam o ancião contar à rainha tudo a que também assistiram. Mas Viriato, agora confiante e destemido continuou.
- Era grande, do tamanho de quatro vacas e feio como um gaiato lavadinho.
É uma piada medieval, para quem apanhou a parte do lavadinho. Para um medieval como para um primata ou como para um ser civilizado actual tudo pode fazer a diferença. Tudo pode estar ali, nos pormenores; a limpeza contra a nojice, a primeira é desactual e o que está a dar é ser pobre e porco. Quanto mais negro melhor. Tanta mais a escuridão e melhor se camufla o sentimento de indiferença que se da tantas vezes aos outros. E porquê? Porque tratamos assim os outros?
Leonor, absorta, observava num camarim real a cena que avançava no palco da sua vida fácil de rainha. Parecia que era sito que ela queria, que era isto que ela mais desejava que acontecesse; uma intrincada peça de teatro na qual também ela tem o seu papel para interpretar.
Quisesse o destino que a bondade que empenhou na génese deste lugar sincronizável não passasse agora de um triste iceberg que se derrete ao sol lentamente, correndo na direcção da uma armadilha irremediável, da evolução, do desejo de uma rainha fazer o bem para o seu povo que infelizmente não percebeu que existem de facto raízes ruins na humanidade. Raízes cravadas como sanguessugas na ralé da sociedade onde nem com toda a imposta aptidão religiosa, Leonor poderia alguma vez converter em bons cristãos aquelas que nasceriam séculos depois.
Era uma cena engraçada, ali no meio do mato verde, sentir o vento refrescar-lhe as faces, rodeada por uma companhia de teatro associativo forçado perdidos algures no extremo oeste da Europa. Para Leonor qualquer que fosse o desenlace da cena ela estava extasiada de ansiedade e quanto mais olhava para aquelas formas diante de si mais ela não via nada, tudo se diluía de repente em isolamento expectante. Como se de repente uma catástrofe iminente se tornasse no pior dos pesadelos de fatalidades, num estrondo de bala de canhão caindo de um décimo andar em cima de um estrado de madeira de pinho, assim se encontrava o coração de Leonor. A Coisa com quem falara há um par de dias num despovoado no meio de nenhures estava ali. Leonor sentia-o em todo o seu ser. Um misto de desejo, de entrega, de pecado e de loucura faziam a sua cabeça girara como um pião perdendo o seu equilíbrio rotacional.
O ancião como percebesse que sua alteza delirava tossiu gravemente tentando despertá-la do transe em que se encontrava e como uma pupila ganhando a forma de um pingo de chuva ela voltou a si. Baixando-se suavemente apanhou um azeda com um aspecto delicioso capaz decididamente de provocar o melhor regurgitamento desde os tempos em que os homens eram cães e os romanos eram apanhadores de cães. Levantou-se no mesmo movimento e em silêncio olhou para a mínima lagoa que ali se encontrava rodeado por toda aquela natureza delicada vestida de todos os tons de verde exalando frescura, essa clorofila que se entranha nos nossos sentidos capaz de nos fazer levitar mais um dia, neste triste barco da deriva dos dias.
Leonor acalmou-se respirando com a leveza das borboletas que voava de flor em flor. Com a abundância de piares matutinos que àquela hora da manha davam os seus primeiros sinais sonoros. Com o oscilar dos ramos e da tertúlia das folhas furados pelos primeiros raios de sol subindo para Este na direcção da escuridão da mata.
Enquanto a rainha vivesse aquele momento feliz tudo estava bem e como percebesse isso o velhote voltava à descrição rocambolesca do episódio de alguns minutos atrás.
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