Caricia

E a suavidade de seu gesto ao alisar a roupa de cama, não sei porque, remeteu-me a um tipo de carinho que achei que já não mais existisse. Nestes tempos de hermafroditismo social, ver uma mulher naquilo que lhe é natural despertou-me uma doce e suave nostalgia. Talvez a saudade dos quintais de antigamente. Saudade do colo da mãe, dos fantasmas que sabíamos não existir e mesmo assim temíamos. A saudade do gesto despojadamente carinhoso.
Agora é a “garota propaganda” de uma cadeia de lojas de eletrodomésticos, roupas, guarnições e outras quinquilharias que os nossos “marketeiros” insistem que são necessárias. Quinquilharias, talvez utilidades, que habitam os sonhos e desejos da burguesia alta, baixa, assalariada, desempregada; ou seja, a burguesia cujo predicado é o sufixo “nada”.
Em meio a baixas e longas prestações, reina esta mulher de quem não sei sequer o nome. Mas isto não importa, pois pela meiguice que aparenta suponho que deva ser chamada apenas de mulher. Imagino o quão igual foi sua vida de outras tantas mulheres. Destas que trazem em si – atributos intrínsecos conforme os eruditos – essa doçura; filha de um operário e de uma dona-de-casa (quem sabe, costureira?), cursou as escolas públicas que pôde, teve cadernos com frases ingenuamente românticas, sonhou com príncipes e, na falta destes, com atores da televisão. Cresceu, precisou trabalhar (quiçá como babá e/ou empregada doméstica) e abandonou a escola. Namorou, engravidou e foi abandonada – porque homem não presta, certo poeta Vinicius. Junto com aquele cafajeste foi-se o sonho simples da casa com toalhas a serem acariciadas.
Fim do sonho e o continuar da realidade, pois o baby tem fome. Ainda bem que a mãe, já então viúva de um pai morto pelas toxinas das fábricas, ajuda-lhe a criar o filho. E na rede de lojas que lhe paga comissões, cesta básica e convênio médico, ela alisa outras e alheias toalhas; distribui a meiguice que lhe sobra e se junta ao sonho de outras que querem se casar. Sim senhor, existem aquelas que ainda desejam e sonham. Serão muitas?
E eis que num certo dia, essa meiga, doce e sonhadora é descoberta pelos ilustres “marketeiros”. Talvez um acerto entre tantas bobagens e ela passa a representar um papel que retrata a si própria.

Não compro toalhas, mas sinto o conforto de saber que ela existe.

Submited by

Sunday, July 26, 2009 - 14:14

Prosas :

No votes yet

fabiovillela

fabiovillela's picture
Offline
Title: Moderador Poesia
Last seen: 8 years 19 weeks ago
Joined: 05/07/2009
Posts:
Points: 6158

Add comment

Login to post comments

other contents of fabiovillela

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Love Ausentes 0 1.984 01/05/2015 - 00:04 Portuguese
Poesia/Love O Gim e o Adeus (2015) 0 2.783 12/31/2014 - 14:02 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte XII - A Metafísica 0 4.455 12/29/2014 - 19:06 Portuguese
Poesia/General Gauche 0 2.197 12/26/2014 - 18:50 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte XI - O Método 0 3.383 12/24/2014 - 20:01 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte X - A Geometria Analitica 0 4.809 12/24/2014 - 19:57 Portuguese
Poesia/Love Quietude 0 1.813 12/21/2014 - 21:03 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte IX - O primeiro filósofo moderno - Cogito Ergo Sun 0 4.152 12/20/2014 - 20:29 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte VIII - A época e o ideário básico 0 4.527 12/20/2014 - 20:25 Portuguese
Prosas/Contos Farol de Xenon 0 3.151 12/20/2014 - 00:40 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte VII - Notas Biográficas 0 6.613 12/19/2014 - 12:56 Portuguese
Poesia/Meditation Sombras 0 2.870 12/17/2014 - 23:21 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte VI - Preâmbulo e índice de obras 0 3.626 12/17/2014 - 13:07 Portuguese
Prosas/Drama Nini e a Valsa 0 5.269 12/17/2014 - 00:56 Portuguese
Poesia/Love As brisas e as rendas 0 2.480 12/15/2014 - 21:08 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - os Tipos de Razão Filosófica 0 3.960 12/13/2014 - 18:53 Portuguese
Poesia/Love Desencontros 0 2.402 12/10/2014 - 19:41 Portuguese
Poesia/Love Navegante 0 2.663 12/05/2014 - 00:21 Portuguese
Poesia/Love Evoé 0 2.760 12/03/2014 - 00:17 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte IV - o Racionalismo 0 5.838 12/01/2014 - 14:21 Portuguese
Poesia/Love A Face 0 1.520 11/29/2014 - 23:20 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte III - o Racionalismo - continuação 0 7.293 11/27/2014 - 14:33 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Parte II - o Racionalismo 0 2.914 11/26/2014 - 14:03 Portuguese
Poesia/Love A Dança 0 1.234 11/23/2014 - 18:28 Portuguese
Prosas/Others Descartes e o Racionalismo - Preâmbulo (Apêndice: a Razão) 0 4.262 11/22/2014 - 20:56 Portuguese