O Garimpeiro – Capitulo VIII: Elias
O infortúnio de Lúcia tinha chegado a seu cúmulo.
O seu casamento com Leonel estava definitivamente contratado, e era o acontecimento de que se falava mais na bagagem em todos os círculos. Era um lindo par, dois noivos em todos os sentidos dignos um do outro, e todos formavam a mais lisonjeira idéia do risonho futuro de amor e de ventura, cujas portas o himeneu ia abrir de par em par àquele par afortunado.
Os pretendentes de Lúcia, porém, que haviam sido preteridos— e não eram poucos— vingaram-se em ápodos e maliciosas apreciações a respeito do noivo.
— Pobre moça! Deus sabe o que será dela com aquele boneco enfeitado! Deus queira que ali não esteja encoberto um formidável cavalheiro de indústria!
— A fazenda de contrabando é quase sempre a mais bem enfardada. Aquele Major é bem simplório. Não seria eu que daria minha filha a um homem só porque anda com grandes equipagens e patacoadas, inculcando-se rico, sem lhe ver a carteira.
— Às vezes um biltre, desses que aí andam com ares de grão-senhor, não passa de um mero cobrador, que nada tem de seu, e anda a imposturar com o dinheiro do patrão.
— Lá diz o ditado: quem vai casar longe, ou quer enganar, ou vai enganado. Este melro, porém, que não cai no laço, é capaz de enfiar o Major e toda a sua geração pelo fundo de uma agulha. Lá se avenham.
Entre os pretendentes desprezados contava-se também Azevedo, o jovem negociante fluminense que já vimos junto de Lúcia, no Patrocínio, e que era um dos seus mais assíduos e pertinazes adoradores. Como muitos outros negociantes dali tinha mudado a sua loja para a Bagagem, deixando quase em tapera aquela vila, por cujas desertas ruas crescia abundante capoeira, e vagueavam livremente as emas, veados e siriemas.
— Não lhe agouro bem, dizia Azevedo referindo-se ao casamento de Leonel. Estas moçoilas da roça na sala são umas santinhas; nem sabem falar; são todas modéstia e pudor. Mas por detrás das portas e pelos quintais, ai! ai! há que se lhe diga. O noivo que rogue a Deus que não volte lá desses sertões do Sincorá certo rapazola que eu conheço.
Mas todos esses ditérios eram filhos do despeito de certos descontentes. A maioria da população bagagense, de que o baiano por suas liberalidades e suas maneiras sedutoras tinha adquirido a estima e simpatia, aprovava e aplaudia sinceramente e de todo coração aquele feliz consórcio.
Leonel continuou a freqüentar ainda com mais assiduidade a casa do Major, onde quase todas as noites havia belas reuniões, tocatas e saraus. Eram essas horas as mais cruéis para Lúcia, como bem se pode avaliar, que em sua nobre e sublime dedicação fazia esforços heróicos para dissimular a angústia que lhe ralava o coração. Não queria que por modo algum seu pai suspeitasse quanto era duro e doloroso o sacrifício que lhe tinha imposto, e procurava fingir que de boa mente se conformava com a sua nova sorte. À força de vontade conseguia dar a seu semblante e a suas palavras um ar, se não de contentamento, ao menos de serenidade melancólica, que dava novo realce à sua nobre e graciosa fisionomia.
Corria então a quaresma, e como nesse tempo são proibidas as bênçãos matrimoniais, forçoso foi adiar para mais tarde o casamento, que pelo voto de Leonel e do Major teria tido lugar imediatamente.
Já uns quinze dias se tinham passado, depois que Lúcia esperava resignada o dia tremendo, em que ia irrevogavelmente imolar a felicidade de seu coração aos interesses de seu pai e de sua irmã. O altar do himeneu ia ser o patíbulo, e o leito nupcial o túmulo de sua felicidade.
À porta da loja de um dos mais abastados negociantes da Bagagem apeava-se um jovem viajante que, pelo primor de seu trajo e pela luzida bagagem que trazia, mostrava ser homem de fortuna. O tom familiar e o alegre alvoroço com que foi recebido indicavam ser ele um antigo conhecido do negociante.
— Oh! bons olhos o vejam, meu caro senhor Elias, exclamou o negociante abraçando— o com transporte. Não sabe que prazer me dá em torna-lo a ver. veio mais bonito, mais sacudido, e pelo que vejo, fez fortuna lá por onde andou? !
— Não perdi meu tempo, louvado seja Deus! ... respondeu o moço.
— Entre, entre; venha descansar; depois conversaremos. Mande desarrear seus animais; não consinto que vá pousar em outra parte.
— Obrigado; aceito o seu obséquio.
Tendo saído da Bagagem, levando na algibeira a miséria, e o desespero no coração, depois de dois anos de ausência, Elias voltava com a carteira recheada de boas dezenas de contos de réis, só respirando amor, esperança e felicidade. Com o coração alvoroçado e a transbordar de alegria, durante toda a sua longa viagem não pensava em outra coisa senão no momento feliz de tornar a ver a sua querida Lúcia, e chegara com a cabeça recheada dos mais brilhantes planos de ventura e de amor, planos que para ele já eram uma realidade, pois já estava vencida a barreira que os separava— a pobreza.
Meia hora depois, tendo já Elias acomodado sua bagagem, e dado as necessárias providências para o arranjo de seus animais, o negociante convidou— o para uma sala vizinha.
— Venha para cá tomar algum refresco; venha conversar um pouco, e contar— nos que tal é isso por lá; contam-se maravilhas.
— temos tempo, meu amigo; tenho muito que contar-lhe, mas isso será com mais vagar. Venho de longe, e sou daqui; portanto julgo que tenho direito de perguntar primeiro por notícias da minha terra, que novidades há, se o comércio vai bem, se aparece muito diamante, etc. , etc..
— Qual! meu amigo; isto aqui vai sempre na mesma pasmaceira, e não promete grande coisa. Vai-se tenteando o negócio. Há mais garimpeiros arruinados do que baguaçus por esses matos. Este garimpo não anima; é como uma loteria, em que só há sortes grandes, e essas muito poucas. Aparecem de tempos a tempos grandes diamantes; mas não há serviço jornaleiro; ganha um por cem que perdem.
— Eu já assim o pensava; nunca tive grande fé neste descoberto. Não acontece assim na Diamantina, e nem tampouco no Sincorá. Quem dá ali um serviço pode ter a certeza de que há de tirar ao menos para salvar as despesas.
— Pois aqui é o contrário; quem garimpa tem noventa e nove probabilidades de perder e uma de ganhar. Os fazendeiros pensaram que garimpar é o mesmo que plantar milho, quiseram colher o que não tinham plantado, e quase todos vão dando com suas fortunas em vaza— barris.
— Entretanto, disse Elias chegando-se a uma janela, noto que a povoação apesar disso não deixa de ir crescendo. Estou vendo muitas casas novas, que não deixei quando daqui saí, e tudo vai a melhor.
— O lugar vai em aumento não há dúvida; mas isso não pode ir longe.
— A propósito. De quem é aquela casinha, que lá está no alto daquele lançante? como está bem situada! ... dali deve-se gozar a vista de toda a povoação.
— Oh! aquela é de uma das principais vítimas da exploração destas lavras. É do Major ; não o conhece? ...
— muito! Muito! ... mas que me diz? pois o Major também se arruinou? !
A conversação caía enfim casualmente no ponto a que queria leva-la Elias, que ardia por ter novas do Major e de sua filha, os quais já sabia que se achavam na Bagagem. Pode-se pois facilmente imaginar com que avidez curiosa, com que mal disfarçada sofreguidão dirigiu ao negociante a última pergunta.
— Consta, respondeu este com toda fleuma, que todos os seus bens estão empenhados e que, se forem liquidar os seus negócios, não lhe ficará um real, e a propósito, por falarmos no Major, perguntava o senhor há pouco por novidades. Pois saiba que a mais importante que temos, e que agora anda por aí pela boca de todos, é o casamento de sua filha...
— De Lúcia? ... atalhou vivamente o moço.
— Pois de quem mais há de ser? ... então conhece— a?
Elias não respondeu; sentia como uma espécie de vertigem, que o atordoava, como se um raio tivesse estalado junto dele. Agarrou-se ao peitoril da janela para não cair. Assim esteve por alguns instantes, depois dos quais continuou forcejando debalde para dar à sua voz o tom da mais completa indiferença.
— Conheço— a muito; é uma linda menina; mas... diziam-me que era muito esquiva; admira-me que se resolvesse a casar-se, e quem sabe...
— Quem sabe o quê?
— Quem sabe se não vai de muito boa vontade? ...
— E por quê não? o noivo é um guapo mocetão, de bonita figura e fino trato, e, o que mais é, muito rico. Ela, como Vcmê. Bem sabe, é a moça mais linda destes arredores; digo-lhe com veras que nunca vi casamento mais bem ajustado. O Major está um pouco arruinado, é verdade; mas o genro é riquíssimo, e, ao que dizem por aí, vai escorar o sogro, o que não lhe custará pouco. Com aquele casamento a felicidade entrou-lhe pela casa dentro.
— Entrou? ! ... pois já? exclamou o moço com visível perturbação.
— Ou vai entrar, é o mesmo, pois o negócio é decidido, e está por poucos dias. É mais um par de rolinhas amorosas, como dizia um amigo meu meio metido a poeta, que veio fazer seu ninho aqui nas matas da Bagagem.
Elias não teve ânimo de dizer mais nem uma palavra; o coração lhe batia desencontrado; tinha as faces secas e a língua se lhe pegava ao céu— da— boca. Trêmulo e coberto de horrível amarelidão, mal se podia suster agarrado ao peitoril da janela.
Posto que já o sol tivesse entrado, e já fosse escasseando a luz do dia, o negociante não deixou de perceber a extrema perturbação e o transtorno das feições do rapaz...
— O que tem, meu amigo? ... ainda agora parecia vender saúde, e agora o vejo tão pálido e desfigurado? está sofrendo decerto algum incômodo?
— Nada... quase nada. São acessos de intermitentes, que apanhei no Rio S. Francisco, e que às vezes ainda se repetem; mas passam logo.
— Ah! ... ninguém lá vai que as não apanhe. Deite-se neste canapé, enquanto vou lhe mandar trazer um copo de vinho quente com açúcar; dizem que é bom. Depois, se quiser, chamarei médico...
— Aceito o vinho; mas não será preciso tomar maior incômodo; isto passa logo.
Elias aceitou o oferecimento mais para se ver a sós com o seu desespero, do que por necessidade que tivesse de auxílio algum. Seu coração, que até ali se enchia a transbordar de esperanças e venturas, sentiu-se subitamente atracado entre as garras da mais cruel decepção. Mil projetos desencontrados lhe tumultuavam na cabeça. Ora queria ir imediatamente ver Lúcia, exprobrar-lhe sua perfídia, e apunhalar-se à sua vista. mas isso seria uma triste vingança: não convinha deixa-los vivos e felizes sobre a terra. Iria procurar primeiro o infeliz sedutor, esbofeteá-lo, cuspir-lhe no rosto e depois arrancar-lhe as entranhas, e com o mesmo punhal, ainda fumegante do sangue do vil, imolar-se aos olhos da pérfida... Mas... ele era inocente talvez; ignorava que aquela embusteira já tinha penhorado a outrem por um juramento sagrado o seu amor e a sua mão. A vítima devia ser ela, somente ela. Mas como vingar-se dela? ... mata-la? ... semelhante idéia lhe repugnava... derramar o sangue de uma fraca mulher é a mais infame das cobardias, o mais monstruoso dos atentados. Despreza-la? ... mas o desprezo só é um castigo, quando recai sobre pessoa que nos ama, e Lúcia! exclamava o infeliz estorcendo-se em ânsias de desespero, Lúcia não me ama; Lúcia nunca me amou; senão, jamais se teria tão facilmente esquecido de mim para se entregar a outrem. E assim não há remédio! nem o consolo da vingança me é dado! e a vítima de todos estes embustes e perfídias serei eu, somente eu!
Elias foi interrompido em suas febris maquinações por seu hóspede, que lhe trazia o vinho quente, enquanto uma escrava lhe preparava a cama em uma alcova imediata à sala. Depois de trocarem algumas palavras banais, o negociante julgou conveniente deixa-lo só, visto o seu incômodo de saúde, e depois de tê-lo cuidadosamente deitado em seu leito despediu-se recomendando-lhe que se abafasse bem.
Apenas porém o moço achou-se só, arrojou para longe de si coberturas e lençóis, saltou fora da cama, e começou a passear a passos precipitados ao comprido da sala. Assim passou grande parte da noite com a idéia de sua desgraça a devorar-lhe o cérebro, e a fustigar-lhe o coração.
Por fim, à força de pensar, ou antes, à força de delirar, começou a duvidar da realidade de seu infortúnio; achou que tinha sido demasiado leviano em dar tão depressa inteiro crédito às palavras do negociante, e apelou para o dia seguinte.
Embalado nessa dúvida consoladora, que o céu como que lhe enviara para dar algum repouso à sua imaginação tresvairada, adormeceu quando os galos já começavam a amiudar seus cantos.
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