Insônia, Estranha Insônia

       

       O pé quente atrita ao chão gélido. Quartos velhos rangem tanto que até parecem vítimas de Parkinson. Desviro o chinelo de dedos. Penso em quantas vezes salvei minha mãe da morte com esse gesto singelo. Ela nunca me agradeceu. Peço à cama que devolva as escaras do pijama; os cordões das ceroulas e pantufas. Analgésicos e seringas. Antidepressivos e bebidas. Com os bocejos, brindei corruptelas; beberiquei tristezas que a mim não cabiam. - Saúde! - No sono dos justos: justiça é só polução noturna. Um coito interrompido pelo despertador. Acho que João Pestana não virá me visitar! Talvez, tenham ateado fogo nas galerias oníricas. Começo a juntar com a vassoura o montículo de pó dos sonhos esparramados pelo muquifo.  Procuro uma estação na vitrola surda, migro entre a freqüência dos mega Hertz, com as pálpebras adornadas pela insônia, que esculpiam arabescos púrpuras nas retinas. Nada me desperta interesse. Vou ao banheiro; tento pintar um auto-retrato à base de urina que goteja bruscamente no vaso sanitário encardido. Não obtenho êxito e, como de costume a cueca absorve a ultima gotícula suicida. Flerto com as toalhas molhadas, desejando aquele abraço de algodão. Reviro à lixeira, procurando as camisinhas que desperdicei me masturbando, para lembrar-me das amostras de meu amor para comigo mesmo. Essa é a demonstração empírica de quão descartável é o amor-próprio. Descartável, a ponto de comparar-se ao peido que você nem se deu ao luxo de segurar. Descrevo a vida como mera e pura troca de secreções. Retorno ao quarto, perfumado pelo Lucky Strike red, que repousa moribundo no cinzeiro; entre fumaças e toxinas, aprecio a beleza abstrata da brasa morta. Desisto dos hertz, coloco o disco riscado de Jorge Ben, que escutara poucas vezes, as rugas dava-se pelo mal-cuidado. Entretanto, as carícias da agulha foram insuficientes para excitar o vinil. Emudeceu-se. Nenhum mísero gemido fora pronunciado pelo gramofone para quebrar a cacofonia do silêncio.

      Desconcertado, fito pela janela o edifício à frente: o maniqueísmo contido no olho de deus que ficara suspenso entre a argamassa e os tijolos. Abaixo, há um mendigo, enrolado com papelões. Ansiando o breve encontro com Morpheus. Questiono-me, até que ponto as convicções podem levar alguém? Resta-me a dúvida se aquele poderia ter sido um homem de convicções e se elas o teriam levado a tal lugar. Adiante, uma transeunte caminha em direção ao ponto de ônibus com seu cabelo desgrenhado, entalhado com leves pinceladas de um prata senil, as lacunas entre os dentes. Discretos pêlos no buço e o não tão discreto e hirsuto emaranhado de pêlos que estavam arraigados ao sinal de seu queixo. Trajava um vestido bege, carregando sobre o ombro esquerdo, um aparelho de rádio que não esboçava qualquer indício de funcionamento. A mesma retorce os botões; finge que ouve música, enquanto, entusiasmadamente, cantarola: - "Meu coração é vermelho, vermelho" - como se estivesse em um karaokê. Tropeça no paralelepípedo da calçada, xinga  instantaneamente como mecanismo mais eficaz de defesa. Sorri e, volta a cantarolar... - "Meu coração é vermelho, vermelho" - como se a canção fosse composta de um único verso. Adiante, uma prostituta adolescente, de esquina, ascende um cigarro. Traga-o, como se tivesse encontrado um oásis no deserto. Sente o promissor gosto radiativo de luxúria sobrepujando os pulmões. Sente mariposas crocheteando em seu estômago, acompanhado de um refluxo indômito. Atira-o ao chão, desprezando o cigarro recém aceso, com aquela mancha saliente de batom no filtro. A transeunte aproxima-se. Pede licença, acolhe o cigarro entre os dedos. Traga-o profundamente como se estivesse recebendo o sopro etéreo do próprio deus. - Como é doce o enfisema - afirma. Gentilmente agradece e, continua caminhando. Passa em frente a uma catedral gótica; se compara às gárgulas. Faz o sinal da cruz e desaparece em um beco.

      A moçoila treme igual folha seca desempregada numa sarjeta de outono, aguardando o ônibus. Ela é tão linda que faria qualquer eunuco reivindicar as ereções. Carrega um envelope hospitalar em uma de suas mãos.  Algo me preocupa em sua tristeza. Seria a maquiagem borrada naquele pequenino rosto salpicado de sardas? O diminuto vestido que envolve seu corpo faz questão de mostrar, em tom obsceno, que sua calcinha está ao avesso e sendo mastigada pelos grandes lábios. Deve ter se vestido às pressas. Isso não cheira a coisa boa! Fico curioso quanto ao envelope. Talvez seja o prenúncio de uma gravidez indesejada. Quantas vezes a agulha de crochê fez papel de deus, ceifando vidas? Talvez seja resultado de um hemograma, no qual evidencia que ela tem pouco tempo de vida. AIDS. Deve ter pegado de algum bêbado, de bafo rançoso e caroços de feijão agrilhoados aos dentes, após sair de casa porque era estuprada pelo padrasto. E o mesmo a ameaçara caso contasse a sua mãe. Papai, hoje teremos uma conversinha. Falaremos sobre verdades inconvenientes, antes de te enterrar vivo. Ou talvez nem seja um envelope hospitalar, apenas carta de um amigo distante e ficou emocionada ao lê-la com todos aqueles erros ortográficos que mesmo assim a deixara tão linda. Não, não é bem o que parece. Alguns carros rasgam a avenida em vertical buzinando para ela. Ela os ignora. Dá sinal e adentra ao ônibus. Senta-se na poltrona avulsa, no qual deixavam duas poltronas viradas em sua direção. Em uma delas, está sentada uma mulher, que devido aos caprichos religiosos aparenta ter bem mais idade do que realmente possui. Ela a encara com desdém e nada diz. Na outra, acaba de sentar-se uma senhora carismática de rosto desbotado pelas primaveras. Ela sorri com os poucos dentes que lhe restam e pronuncia suas indesejáveis palavras:

      - Acabei de vir de uma festa. Adoro dançar! -Ninguém lhe dá a devida atenção. Mas ela ainda insiste com aquelas gotículas de suor escorrendo da testa. Como são chatas essas pessoas que puxam assunto nas conduções - Fui curada da depressão pela dança.

     A outra mulher se retorce na cadeira. Aquilo a incomodara. Então, começa o disparate de sua cartilha arcaica.

      - Deus também cura! Eu fui curada por ele. Você acredita em Deus?

     - Acredito – aguarda alguns instantes como se relutasse hesitante com a afirmação. Então acrescenta – já fui evangélica. Mas, aquilo não era o que eu queria para minha vida. Era como se tivesse faltando algo que encontrei na dança. Você gosta de dançar?

    - Faz anos que não danço. Já fui do mundão.  Mas não vejo mais sentido nos corpos contorcidos, aquilo tudo torna toda a música dissonante.

     A outra senhora estende os punhos deixando bem explicita as cicatrizes e diz: - Eu já tentei me matar. Minha fé não era o suficiente para me curar. Não faziam sentidos as súplicas. Queria esquecer a dor desprovida de sentido. Comecei sem vontade, uma amiga havia me chamado a um baile de terceira idade. Vi que aquilo me fazia bem. Meses depois comecei a namorar o Francisco. Estava com ele há pouco. Agora...

     O sinal de descida interrompe a conversa antes que a senhora tivesse concluído seu discurso paupérrimo. Entretanto, ficara curiosa com o desfecho daquele diálogo. Caminha algumas quadras. O solado erodido da sandália vermelha dá beijos barulhentos no chão molhado e arisco. Observa alguns bêbados decrépitos conversando. Eles olham para o outro lado da rua, onde um casal de evangélicos discute sobre o ultimo culto. Nota-se que o rapagão é gago.

    - Se-se-se, v-vi-viu o quan-quan-quanto o pastor Albe-be-be-berto, esta-ta-tava ungi-gi-gido, ungido hoje, Adri -dri-dri...Drica?

      - Vi sim, Cláudio, ele estava fazendo muitas revelações, e aquela pregação sobre Jó? Meu Deus que exemplo de vida. Isso pode acontecer com qualquer um. Mas, Deus sempre estará olhando por nós.

      Em meio a todo aquele papo entediante sobre religião, um dos bêbados fala para o outro:

     - Que desperdício cara! Ele... Ele nem segura na... na mão dela. – Demorou aquele tempo necessário que faz às engrenagens torpes de seu cérebro a fricção funcionar e continuou - Eu não estaria nem vendo, olha só, a essa altura do campeonato ia foder pra porra, daria vários tapas na cara, na bunda dela... Olha como ela é gostosinha! Nunca imaginou aquela bundinha envolvendo seu pau? Deve meter que é uma beleza. Falaria: vai vadia, fica de quatro.  Ia deixar a filha da puta toda assada!

     O outro, menos bêbado assente e ri, depois contra argumenta: - Se é louco, cara. Ela é casada e evangélica, olha só que pecado imoral. Vamos pra casa que se já ta muito bêbado, cara.

     - Oche, minha noite tá só começando, fio. - Já estava tragando o filtro e aquele cheiro de cigarro de quinta com algodão queimado poluía o ar. - Ia foder na frente do marido dela. Olha só a cara dele de cornão!

   - Que vai porra nenhuma! Vamos pra casa logo, que se nem tem noção da merda que ta falando.

   - Ah, cuzão, se vai roubar minha brisa mesmo? - estava mijando na parede pichada em meio aquele frio, onde a urina fumaçava. Ele procurava o próprio pênis enrugado. Deu uma leve chacoalhada, algumas gotas caem no seu sapato furado e, guarda-o. - Vamos nessa então. - Concordou. - Mas o que chegar por ultimo é um bêbado de cu sem dono. - Os passos distanciam a moçoila daquela conversa absurda. Ela abre o cadeado enferrujado e seu destino já não me pertence.

    A torneira do lavatório goteja incessantemente interrompendo o fluxo de imaginação e o que propunha como destino das pessoas. Isso volta minha atenção às paredes do quarto. As rachaduras no teto. Algumas baratas em cima do pedaço de pizza que ficara sobre a mesa há dois dias. O gato enterrando seus excrementos na caixinha de areia. Os tiques e taques do relógio parece o som de estertores da morte pronunciados num corretor silencioso. Abro a geladeira e observo que ela está bem mais faminta do que eu poderia pressupor. Fecho-a de imediato. Alguns pernilongos fazem ronda ao redor da lâmpada. Lâmpada frustrada que não para de piscar. - Alguém me vê um sonífero, porra! – Atiro uma garrafa vazia de Jack Daniels, na parede mofada. Concluo que há tanta ordem, que vislumbro minhas partículas de caos para desajustar as coisas. Para encontrar-me entre recortes de revistas e livros obsoletos de filosofia. Já são quase seis da manhã... O gosto de insônia persuadiu a todos em meu estômago. Logo, meu hálito estará insuportável até para mim e, ainda nem é sexta-feira. Sou vítima da inquietude de trajar pijamas. Desculpe-me por não ter me apresentado antes. Já tive vários nomes. Nomes esses que só poderiam ser pronunciado por corpos dormentes e sonolentos. Já fui Somnus; João Pestana, Pedro Chosco, Ole-Luk-Oie, Homem de Areia, Sandman. Mas, meu nome de batismo é Hypnos, o deus do sono. E, hoje resolvi fazer greve de mim mesmo. Bom dia para quem já dormiu!


Bruno Sanctus.

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Lunes, Septiembre 9, 2013 - 23:08

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