Há em ti...um sol

Os meus dias deixaram de ser estanques, não obstante o sedentarismo das minhas funções de secretária da Direcção. A campainha tocou mais estridente do que habitualmente. Não resisti e levantei-me para lhe abrir a porta. Vi-a chegar à Instituição, através da janela do meu gabinete de trabalho. Nas mãos, achocolatadas, 3 gerberas denunciavam o sol que trazia no olhar, apesar do ar cansado de quem veio a pé cerca de 4 kms, desde o bairro da Bela Vista até ao Viso. Mais uma vez, perdera o transporte institucional, por força das tarefas familiares de que fora acometida.
Comecei por lhe perguntar, porque só chegava a meio da manhã e baixando a cabeça, como se tivesse motivo para se envergonhar, respondeu-me:
- Olha filha, porque tive de dar o pequeno-almoço aos meus irmãos e depois fui levá-los à escola da “Bela Vista”.
Para esta família africana, a deficiência mental de Eveline, em vez de ser apoiada e tida em linha de conta, é usada para cuidar dos irmãos mais novos, da casa e de todas as tarefas adicionais comuns em famílias numerosas e destruturadas.
Olhei-a, como se nunca a tivesse visto antes, embevecida, enquanto me presenteava com a flor cor de canela. Sorri e perguntei-lhe onde fora buscar aquelas flores tão frescas e viçosas e, embora, embaraçada e hesitante, surpreendeu-me com a imprevisível resposta, fruto da autenticidade que caracteriza a sua chamada “diferença”:
- Foi a Santa que me deu!
- Qual Santa, Eveline?
- A da capela dos mortos, eu fui lá e ela tinha muitas na jarra do altar. Mas descansa que eu pedi-lhe!
Confesso que por esta resposta eu não esperava, a flor pertencia à jarra da santinha da capela mortuária e agora estava ali na minha mão. . .
Eveline enlaçava-me com o braço esquerdo e ria deliciada, enquanto a mão direita segurava as outras duas flores, como se de um tesouro se tratasse.
Agradeci e coloquei a flor na jarra. Que importância tinha a sua proveniência?
A deficiência mental é feita de pureza e se fora a Santa quem lhe dera permissão para trazer as flores, quem era eu para a recusar?
- Sabes, Fana? A senhora que toma conta da capela é muito má, quando eu entro para rezar à santinha, ela chama-me “preta maluca” e manda-me ir embora. Diz que eu não posso estar ali, mesmo quando não estão lá mortos.
A jovem certificou-se de que a flor estava em porto seguro e eu senti-me abençoada por ter sido escolhida entre tantos simples mortais para ser fiel depositária de tão especial presente.
A pergunta fez-se necessária:
- Gostaste?
Eu respondi:
- Adorei querida, há em ti … um sol, como poderia não gostar?
Eveline dirigiu-se ao Centro de Actividades Ocupacionais e eu acompanhei-a com o olhar, a felicidade era tanta que eu podia ouvi-la cantarolar nos corredores da Associação, ao mesmo tempo que me pus a adivinhar a quem iria ofertar as outras duas gerberas, certamente à Monitora e à Ajudante da sua sala de aula.
Continuei o meu trabalho e durante uns bons dias lá fui trocando religiosamente a água à flor e agradecendo à Nossa Senhora a amizade sincera da minha encantadora “moreninha” .

Submited by

Viernes, Agosto 6, 2010 - 16:31
Sin votos aún

Nanda

Imagen de Nanda
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 12 años 2 días
Integró: 10/23/2009
Posts:
Points: 2469

Comentarios

Imagen de Librisscriptaest

Re: Há em ti...um sol

"fruto da autenticidade que caracteriza a sua chamada “diferença”:
- Foi a Santa que me deu!
- Qual Santa, Eveline?
- A da capela dos mortos, eu fui lá e ela tinha muitas na jarra do altar. Mas descansa que eu pedi-lhe!"
Esta historia, Nanda... Comoveu-me!
talvez tenha sido dos mais belos e puros presentes que se possa receber de alguém...
Tanta pureza, tanta humildade, tanta genuidade...
Deficiente mental?
Talvez a senhora da capela...
A Eveline tem a candura das almas puras, não é deficiente, diferente talvez!
Beijinho grande em ti!
Inês

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of Nanda

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia/Meditación Entre mim e o vento 5 4.856 02/27/2018 - 12:26 Portuguese
Poesia/Intervención Marioneta 2 3.637 02/27/2018 - 12:24 Portuguese
Poesia/General O Condão 1 3.177 08/28/2012 - 16:58 Portuguese
Poesia/Meditación Carruagem do tempo 1 3.882 07/09/2012 - 07:26 Portuguese
Poesia/Intervención Os renegados 3 3.891 07/02/2012 - 15:11 Portuguese
Prosas/Otros Em repúdio aos claustros (elegia a Junqueira Freire) 1 3.550 05/31/2012 - 13:51 Portuguese
Poesia/General Sons da cachoeira 4 3.975 05/25/2012 - 18:16 Portuguese
Poesia/Fantasía O derradeiro ato 2 3.225 04/28/2012 - 21:55 Portuguese
Poesia/Fantasía Poema de água mel 5 2.672 04/21/2012 - 21:25 Portuguese
Poesia/Meditación Rios d´ alma 3 2.702 03/24/2012 - 18:52 Portuguese
Poesia/Fantasía Alcateia 2 3.534 03/17/2012 - 17:09 Portuguese
Poesia/Meditación Ninguém se cruza por acaso 6 3.183 03/17/2012 - 14:58 Portuguese
Poesia/Meditación Inconfidências 5 3.140 03/10/2012 - 15:05 Portuguese
Poesia/Tristeza Nas asas da fantasia 2 3.804 03/01/2012 - 23:36 Portuguese
Prosas/Comédia Haja paciência... 1 2.892 01/12/2012 - 12:06 Portuguese
Poesia/Meditación (In)casta 0 3.808 12/11/2011 - 18:56 Portuguese
Fotos/Eventos Cont(r)o_versus 1 6.910 12/10/2011 - 20:29 Portuguese
Poesia/Dedicada Arrábida minha 2 3.336 11/26/2011 - 18:52 Portuguese
Poesia/Fantasía Astro rei 4 3.825 11/22/2011 - 15:41 Portuguese
Poesia/Fantasía Metáfora 2 3.224 11/06/2011 - 20:13 Portuguese
Poesia/General Ao sabor do tempo 1 3.824 10/16/2011 - 19:10 Portuguese
Poesia/General (In)coerência 2 2.781 10/01/2011 - 17:07 Portuguese
Poesia/Fantasía Fantasiando 4 3.289 09/27/2011 - 07:26 Portuguese
Poesia/Tristeza Fios de sargaços 1 3.432 09/25/2011 - 23:21 Portuguese
Poesia/Fantasía Basto-me! 2 4.094 09/24/2011 - 17:25 Portuguese