A Cruz Mutilada

Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada

De esplêndidas igrejas;

Amo-te quando à noite, sobre a campa,

Junto ao cipreste alvejas;

Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,

As preces te rodeiam;

Amo-te quando em préstito festivo

As multidões te hasteiam;

Amo-te erguida no cruzeiro antigo,

No adro do presbitério,

Ou quando o morto, impressa no ataúde,

Guias ao cemitério;

Amo-te, ó cruz, até, quando no vale

Negrejas triste e só,

Núncia do crime, a que deveu a terra

Do assassinado o pó:

Porém guando mais te amo,

Ó cruz do meu Senhor,

É, se te encontro à tarde,

Antes de o Sol se pôr,

Na clareira da serra,

Que o arvoredo assombra,

Quando à luz que fenece

Se estira a tua sombra,

E o dia últimos raios

Com o luar mistura,

E o seu hino da tarde

O pinheiral murmura.

-

E eu te encontrei, num alcantil agreste,

Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas

Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua

Detrás do calvo cerro. A soledade

Não te pôde valer contra a mão ímpia,

Que te feriu sem dó. As linhas puras

De teu perfil, falhadas, tortuosas,

Ó mutilada cruz, falam de um crime

Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!

A tua sombra estampa-se no solo,

Como a sombra de antigo monumento,

Que o tempo quase derrocou, truncada.

No pedestal musgoso, em que te ergueram

Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,

Do presbitério rústico mandava

O sino os simples sons pelas quebradas

Da cordilheira, anunciando o instante

Da ave-maria; da oração singela,

Mas solene, mas santa, em que a voz do homem

Se mistura nos cânticos saudosos,

Que a natureza envia ao Céu no extremo

Raio de sol, pasmado fugitivo

Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste

Liberdade e progresso, e que te paga

Com a injúria e o desprezo, e que te inveja

Até, na solidão, o esquecimento!

-

Foi da ciência incrédula o sectário,

Acaso, ó cruz da serra, o que na face

Afrontas te gravou com mão profusa?

Não! Foi o homem do povo, a quem consolo

Na miséria e na dor constante hás sido

Por bem dezoito séculos: foi esse

Por cujo amor surgias qual remorso

Nos sonhos do abastado ou do tirano.

Bradando – esmola! a um; piedade! ao outro.

Ó cruz, se desde o Gólgota não foras

Símbolo eterno de urna crença eterna;

Se a nossa fé em ti fosse mentida,

Dos opressos de outrora os livres netos

Por sua ingratidão dignos de opróbio,

Se não te amassem, ainda assim seriam.

Mas és núncia do Céu, e eles te insultam,

Esquecidos das lágrimas perenes

Por trinta gerações, que guarda a campa.

Vertidas a teus pés nos dias torvos

Do seu viver d'escravidão! Deslembram-se

De que. se a paz doméstica, a pureza

Do leito conjugal bruta violência

Não vai contaminar, se a filha virgem

Do humilde camponês não é ludíbrio

Do opulento, do nobre, ó Cruz. to devem;

Que por ti o cultor de férteis campos

Colhe tranquilo da fadiga o prémio,

Sem que a voz de um senhor, qual dantes, dura

Lhe diga: «É meu, e és meu! A mim deleites,

Liberdade, abundância: a ti, escravo,

O trabalho. a miséria unido à terra,

Que o suor dessa fronte fertiliza,

Enquanto, em dia de furor ou tédio,

Não me apraz com teus restos fecundá-la.»

Quando calada a humanidade ouvia

Este atroz blasfemar, tu te elevaste

Lá do Oriente, ó Cruz, envolta em glória,

E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico:

«Mentira!», e o servo alevantou os olhos,

Onde a esperança cintilava, a medo,

E viu as faces do senhor retintas

Em palidez mortal, e errar-lhe a vista

Trépida, vaga. A cruz no céu do Oriente

Da liberdade anunciara a vinda.

Cansado, o ancião guerreiro, que a existência

Desgastou no volver de cem combates,

Ao ver que, enfim, o seu país querido

Já não ousam calcar os pés d'estranhos,

Vem assentar-se à luz meiga da tarde,

Na tarde do viver, junto do teixo

Da montanha natal. Na fronte calva,

Que o sol tostou e que enrugaram anos,

Há um como fulgor sereno e santo.

Da aldeia semideus, devem-lhe todos

D tecto, a liberdade, e a honra e vida.

Ao perpassar do veterano, os velhos

A mão que os protegeu apertam gratos;

Com amorosa timidez os moços

Saúdam-no qual pai. Nus largas noites

Da gelada estação, sobre a lareira

Nunca lhe falta o cepo incendiado;

Sobre a mesa frugal nunca, no estio,

Refrigerante pomo. Assim do velho

Pelejador os derradeiros dias

Derivam paru o túmulo suaves,

Rodeados de afecto, e quando à terra

A mão do tempo gastador o guia,

Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze

Flores, lágrimas, bênçãos, que consolem

Do defensor do fraco as cinzas frias.

Pobre cruz! Pelejaste mil combates,

Os gigantes combates dos tiranos,

E venceste. No solo libertado,

Que pediste? Um retiro no deserto,

Um píncaro granítico, açoutado

Pelas asas do vento e enegrecido

Por chuvas e por sóis. Para ameigar-te

Este ar húmido e gélido a segure

Não foi ferir do bosque o rei. Do Estio

No ardor canicular nunca disseste:

«Dai-me, sequer, do bravo medronheiro

O desprezado fruto!» O teu vestido

Era o musgo, que tece a mão do Inverno

E Deus criou para trajar as rochas.

Filha do céu, o céu era o seu tecto,

Teu escabelo o dorso da montanha.

Tempo houve em que esses braços te adornava

C'roa viçosa de gentis boninas,

E o pedestal te rodeavam preces.

Ficaste em breve só, e a voz humana

Fez, pouco a pouco, junto a ti silêncio.

Que te importava? As árvores da encosta

Curvavam-se a saudar-te, e revoando

As aves vinham circundar-te de hinos.

Afagava-te o raio derradeiro,

Frouxo do Sul ao mergulhar nos mares.

E esperavas o túmulo. O teu túmulo

Devera ser o seio destas serras,

Quando, em Génesis novo, à voz do Eterno,

Do orbe ao núcleo fervente, que as gerara,

Elas nus fauces dos bolcões descessem.

Então para essa campa flores, bênçãos,

Ou é saudade lágrimas vertidas,

Qual do velho soldado a lousa pede,

Não pediras à ingrata raça humana,

Ao pé de ti no seu sudário envolta.

-

Este longo esperar do dia extremo,

No esquecimento do ermo abandonada,

Foi duro de sofrer aos teus remidos,

Ó redentora cruz. Eras, acaso,

Como um remorso e acusação perene

No teu rochedo alpestre, onde te viam

Pousar tristonha e só? Acaso, à noite,

Quando a procela no pinhal rugia,

Criam ouvir-te a voz acusadora

Sobreelevar à voz da tempestade?

Que lhes dizias tu? De Deus falavas,

E do seu Cristo, do divino mártir,

Que a ti, suplício e afronta, a ti maldita

Ergueu, purificou, clamando ao servo,

No seu transe: «Ergue-te, escravo!

És livre, como é pura a cruz da infâmia.

Ela vil e tu vil, santos, sublimes

Sereis ante meu Pai. Ergue-te, escravo!

Abraça tua irmã: segue-a sem susto

No caminho dos séculos. Da Terra

Pertence-lhe o porvir, e o seu triunfo

Trará da tua liberdade o dia.»

Eis porque teus irmãos te arrojam pedras,

Ao perpassar, ó cruz! Pensam ouvir-te

Nos rumores da noite, a antiga história

Recontando do Gólgota, lembrando-lhes

Que só ao Cristo a liberdade devem,

E que ímpio o povo ser é ser infame.

Mutilado por ele, a pouco e pouco,

Tu em fragmentos tombarás do cerro,

Símbolo sacrossanto. Hão-de os humanos

Aos pés pisar-te; e esquecerás no mundo.

Da gratidão a dívida não paga

Ficará, ó tremenda acusadora,

Sem que as faces lhes tinja a cor do pejo;

Sem que o remorso os corações lhes rasgue.

Do Cristo o nome passará na Terra.

-

Não! Quando, em pó desfeita, a cruz divina

Deixar de ser perene testemunha

Da avita crença, os montes, a espessura,

O mar, a Lua, o murmurar da fonte,

Da natureza as vagas harmonias,

Da cruz em nome, falarão do Verbo.

Dela no pedestal, então deserto,

Do deserto no seio, ainda o poeta

Virá, talvez, ao pôr do Sol sentar-se;

E a voz da selva lhe dirá que é santo

Este rochedo nu, e um hino pio

A solidão lhe ensinará e a noite.

Do cântico futuro unta toada

Não sentes vir, ó cruz, de além dos tempos

Da brisa do crepúsculo nus asas?

É o porvir que te proclama eterna;

É a voz do poeta a saudar-te.

-

Montanha do Oriente,

Que, sobre as nuvens elevando o cume,

Divisas logo o Sol, surgindo a aurora,

E que, lá no Ocidente,

Última vez seu radioso lume,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Rochedo, que descansas

No promontório nu e solitário,

Como atalaia que o oceano explora,

Alheio ás mil mudanças

Que o mundo agitam turbulento e vário,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Sobros, robles frondentes,

Cuja sombra procura o viandante,

Fugindo ao Sol a prumo que o devora,

Nesses dias ardentes

Em que o Leão nos céus passa radiante,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó mato variado,

De rosmaninho e murta entretecido,

De cujas ténues flores se evapora

Aroma delicado,

Quando és por leve aragem sacudido,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Ó mar, que vais quebrando

Rolo após rolo pela praia fria,

E fremes som de paz consoladora,

Dormente murmurando

Na caverna marítima sombria,

Em li minha alma a eterna cruz adora.

Ó Lua silenciosa,

Que em perpétuo volver. seguindo a Terra,

Esparzes tua luz ameigadora

Pela serra formosa,

E pelos lagos que em seu seio encerra,

Em ti minha alma a eterna cruz adora.

Debalde o servo ingrato

No pó te derribou

E os restos te insultou,

Ó veneranda cruz:

Embora eu te não veja

Neste ermo pedestal;

És santa, és imortal;

Tu és a minha luz!

Nas almas generosas

Gravou-te a mão de Deus,

E, à noite, fez nos céus

Teu vulto cintilar.

Os raios das estrelas

Cruzam o seu fulgor;

Nas horas do furor

As vagas cruza o mar.

Os ramos enlaçados

Do roble, choupo e til

Cruzando em modos mil,

Se vão entretecer.

Ferido, abre-o guerreiro

Os braços, solta um ai,

Pára, vacila, e cai

Para não mais se erguer.

Cruzado aperta ao seio

A mãe o filho seu,

Que busca, mal nasceu,

Fontes da vida e amor.

Surges; símbolo eterno,

No Céu, na Terra e mar,

Do forte no expirar,

E do viver no alvor!

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Sábado, Abril 11, 2009 - 23:28

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AlexandreHerculano

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