Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo IV : Continuação da história da utopia

Compreende-se que a coisa fosse muito mal recebida. Todos os proprietários de navios ide carreira entre a ilha guernesiana e a costa francesa clamaram imediatamente. Denunciaram aquele atentado feito às Santas Escrituras e ao monopólio. Alguns templos fulminaram. Um reverendo, por nome Elihu, chamou ao vapor uma libertinagem. O barco a vela foi declarado ortodoxo. Viu-se distintamente que eram pontas do diabo as pontas dos bois que o vapor trazia e desembarcava. Durou o protesto um bom par de dias. Mas a pouco e pouco foram vendo que os tais bois chegavam menos estafados, e vendiam-se melhor, por ser a carne mais tenra;, que também para os homens eram menores os riscos do mar; que a passagem, menos dispendiosa, era segura e mais curta; que eram fixas as horas da saída e da chegada; que o peixe, viajando mais depressa, chegava mais fresco, e que se podia levar aos mercados franceses as sobras das grandes pescas, tão freqüentes em Guernesey; que a manteiga das admiráveis vacas de Guernesey fazia mais rapidamente o trajeto no Devil Boat que nas chalupas à vela, e não perdia na qualidade, de maneira que afluíam as encomendas de Dinan, de Saint-Brieuc e de Rennes; finalmente que, graças ao que se chamava Galeota de Lethierry, havia segurança de viagem, regularidade de comunicação, tráfego fácil e pronto, aumento de circulação, multiplicação de mercados, extensão de comércio; em suma, que era preciso aproveitar o Devil-Boat que violava a Bíblia e enriquecia a ilha. Alguns espíritos fortes arriscaram- se a aprovar o vapor com certa precaução. O Sr. Landoys, o escrevente, votou ao navio a sua estima. Era imparcialidade, porque ele não gostava de Lethierry: primeiro, porque Lethierry era Mess, e Landoys era apenas senhor; depois porque, embora escrevente em Saint-Pierre-Port, Landoys era paroquiano de Saint-Sampson; ora, na paróquia, só havia dois homens sem preconceitos, Lethierry e Landoys; o menos que podia acontecer era que um detestasse o outro. A bordo do mesmo navio distanciam-se duas criaturas.

Contudo, o Sr. Landoys teve o cavalheirismo de aprovar o vapor.

Outras pessoas o imitaram. Insensivelmente, o fato foi subindo; os fatos são como as marés; e, com o tempo, com o sucesso continuado e crescente, com a evidência do serviço prestado, o aumento da comodidade pública, lá veio um dia em que, à exceção de alguns homens de juízo, toda a gente admirou a Galeota de Lethierry.

Hoje seria menos admirada. Aquele vapor de há quarenta anos faria sorrir os nossos atuais construtores. Era uma maravilha disforme, um prodígio raquítico.

Entre os nossos grandes paquetes transatlânticos de hoje e o navio de rodas e fogo que Dionísio Papin fez manobrar na Fulde em 1707, não há menor distância que entre a nau Montebello, de 200 pés de comprimento, 50 de largura, com lima verga de 115 pés, arqueando 2 000 toneladas, levando 1 100 homens, 120 peças, 10 000 balas e 160 volumes de metralha, deitando 3 300 litros de ferro por banda e desenrolando ao vento em viagem 5 600 metros de lona, e o dromon dinamarquês do II século, que se achou cheio de pedras, arcos e clavas, nos atoleiros de Wester-Satrup, e depositado na municipalidade de Flensburgo.

Cem anos justos, 1707-1807, separam o primeiro barco de Papin do primeiro navio de Fulton. A Galeota de Lethierry era decerto um progresso sobre aqueles dois esboços, mas era esboço também.

Nem por isso deixava de ser uma obra-prima. Todo embrião de ciência tem este duplo aspecto: monstro, como feto; maravilha, como germe.

Submited by

Domingo, Mayo 24, 2009 - 15:10

Poesia Consagrada :

Sin votos aún

VictorHugo

Imagen de VictorHugo
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 13 años 19 semanas
Integró: 12/29/2008
Posts:
Points: 159

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of VictorHugo

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Fotos/Perfil Victor Hugo 0 975 11/23/2010 - 23:36 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo VII : Compradores noturnos e vendedor tenebroso 0 1.133 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo VIII : Carambola da bola vermelha e da bola preta 0 980 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo IX : Informação últil às pessoas que esperam ou receiam cartas de além-mar 0 1.284 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quarto: “O Bagpipe” - Capítulo III : A Canção Bonny Dundee acha um Eco na Colina 0 1.176 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quarto: “O Bagpipe” - Capítulo IV : Justa Vitória é Sempre Malquista 0 983 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quarto: “O Bagpipe” - Capítulo V : Fortuna dos Náufragos Encontrando a Chalupa 0 1.198 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quarto: “O Bagpipe” - Capítulo VI : Boa Fortuna de Aparecer a Tempo 0 1.090 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo I : A Palestra na pousada João 0 1.076 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo II : Clubin descobre alguém 0 1.242 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo III : Clubin leva uns objectos e não os traz 0 1.138 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo IV : Plainmont 0 1.119 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo V: Os Furta- Ninhos 0 1.268 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quinto : O Revólver - Capítulo VI: A Jacressarde 0 1.043 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo VI : Lethierry entra na glória 0 780 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo VII : O mesmo padrinho e a mesma padroeira 0 722 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo VIII : A melodia Bonny Dundee 0 675 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo IX : O homem que advinhou quem era Rantaine 0 738 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo X : Narrativas de viagens de longo curso 0 639 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo XI : Lance de olhos aos maridos eventuais 0 791 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo XII : Exceção no caráter de Lethierry 0 1.143 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Terceiro:Durande e Déruchette - Capítulo XIII : O desleixo faz parte da graça 0 1.040 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quarto: “O Bagpipe” - Capítulo I : Primeiros Rubores de Aurora ou de Incêndio 0 1.122 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Quarto: “O Bagpipe” - Capítulo II : Gilliatt vai Entrando Passo a Passo no Desconhecido 0 1.051 11/19/2010 - 15:54 Portuguese
Poesia Consagrada/Cuento Victor Hugo: Os trabalhadores do Mar – Primeira Parte: O Senhor Clubin : Livro Primeiro: Elementos de uma má reputação - Capítulo VII : Casa embruxada, morador visionário 0 845 11/19/2010 - 15:54 Portuguese