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Arras por Foro de Espanha - Capítulo VI: Uma barregã rainha

O Douro é bem carregado e triste! A sua corrente rápida, como que angustiada pelos agudos e escarpados rochedos que a comprimem, volve águas turvas e mal-assombradas. Nas suas ribas fragosas raras vezes podeis saudar um sol puro ao romper da alvorada, porque o rio cobre-se durante a noite com o seu manto de névoas, e, através desse manto, a atmosfera embaciada faz cair sobre a vossa cabeça os raios do sol semimortos, quase como um frio reflexo de lua ou como a luz sem calor de tocha distante. É depois de alto dia que esse ambiente, semelhante ao que rodeava os guerreiros de Ossian, vos desoprime os pulmões, onde muitas vezes tem depositado já os germes da morte. Então, se, trepando a um pináculo das ribas, espraiais os olhos para a banda do sertão, lá vedes uma como serpente imensa e alvacenta, que se enrosca por entre as montanhas, e cujo colo está por baixo de vossos pés. É o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as águas que o geraram. O horizonte, até aí turvo, limitado, indistinto, expande-se ao longe: recortam-nos os cimos franjados das montanhas, que parecem engastadas na cortina azul do céu, e a terra, a perder de vista, afigura-se-nos como um mar de verdura violentamente agitado; porque em desenhar as paisagens do Douro a natureza empregou um pincel semelhante ao de Miguel Ângelo: foi robusta, solene e profunda.

Como sobre um circo convertido em naumaquia, o Porto ergue-se em anfiteatro sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de três províncias e tendo nas mãos as chaves dos haveres delas, o seu aspecto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada. Mas não o julgueis antes de o tratar familiarmente. Não façais cabedal de certo modo áspero e rude que lhe haveis de notar; trazei-o à prova, e achar-lhe-eis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do velho Portugal, talvez seja ele quem guarda ainda maior porção da desbaratada herança do antigo carácter português no que tinha bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas demasias de orgulho.

Nos fins do século décimo quarto, o Porto ia ainda longe da sorte que o aguardava. O fermento da sua futura grandeza estava no carácter dos seus filhos, na sua situação e nas mudanças políticas e industriais que depois sobrevieram em portugal. Posto que nobre e lembrado como origem do nome desta linhagem portuguesa, os seus destinos eram humildes, comparados com os da teocrática Braga, com os da cavaleirosa Coimbra, com os de Santarém, a cortesã, com os de Évora, a romana e monumental, com os de Lisboa, a mercadora, guerreira e turbulenta. Quem o visse, coroado da sua catedral, semiárabe, semigótica, em vez de alcácer ameiado; sotoposto, em vez de o ser a uma torre de menagem, aos dois campanários lisos, quadrangulares e maciços, tão diferentes dos campanários dos outros povos cristãos, talvez porque entre nós os arquitectos árabes quiseram deixar as almádemas das mesquitas estampadas, como ferrete da antiga servidão, na face do templo dos nazarenos; quem assim visse o "burgo" episcopal do Porto, pendurado à roda da igreja e defendido, antes por anátemas secerdotais que por engenhos de guerra, mal pensaria que desse burgo submisso nasceria um empório de comércio, onde, dentro de cinco séculos, mais que em nenhuma outra povoação do Reino, a classe, então fraca e não definida, a que chamavam burgueses, teria a consciência da sua força e dos seus direitos e daria a Portugal exemplos singulares de amor tenaz de independência e de liberdade.

A populosa e vasta cidade do Porto, que hoje se estende por mais de uma légua, desde o Seminário até além de Miragaia ou, antes, até à Foz, pela margem direita do rio, entranhando-se amplamente para o sertão, mostrava ainda nos fins do século décimo quarto os elementos distintos de que se compôs. Ao oriente, o "burgo do bispo", edificado pelo pendor do monte da Sé, vinha morre nas hortas que cobriam todo o vale onde hoje estão lançadas a Praça de D. Pedro e as Ruas das Flores e de S. João e que o separavam dos Mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco. Do poente, a povoação de Miragaia, assentada ao redor da Ermida de S. Pedro, trepava já para o lado do Olival e vinha entestar pelo norte com o couto de Cedofeita e pelo oriente com a vila ou burgo episcopal. A Igreja, o Município e a Monarquia, entre esses limites pelejaram por séculos as suas batalhas de predomínio, até que triunfou a Coroa. Então a linha que dividia as três povoações desapareceu ràpidamente debaixo dos fundamentos dos templos e dos palácios. O Porto constituiu-se a exemplo da unidade monárquica.

Era neste burgo eclesiástico, nesta cidade nascente, que por formoso dia de Janeiro da era de César de 1410 (1372) se viam varridas e cobertas de espadanas e flores as estreitas e tortuosas ruas que pela encosta do monte guiavam ao burgo primitivo fundado ou restaurado pelos Gascões, se não mentem memórias remotas. Na Rua do Souto, já assim chamada, talvez pela vizinhança de algum bosque de castanheiros, como principal entrada da povoação, andavam as danças judengas e folias mouriscas com músicas e trebelhos ou ogos, por entre o povo vestido de festa, o que era indício evidente de que se esperava el-rei, cuja vinda a qualquer povoação era o único motivo legal para fazer dançar e foliar judeus e mouros, que, decerto, não folgavam nada com estes forçados e dispendiosos sinais de contentamento público.

Com efeito, uma numerosa e esplêndida cavalgada vinha da banda do bailiado de Leça. El-rei D. Fernando ajuntara em Santarém os seus ricos-homens e conselheiros e, amestrado por Leonor Teles na arte de dissimular, recebera com todas as mostras de boa-vontade o infante D. Dinis e Diogo Lopes Pacheco, ao qual, para maior disfarce, não escasseara mercês. Depois, em folgares e caçadas vagueara pelo Reino com Dª Leonor, até que em Eixo fizera um como manifesto da resolução que tomara de a receber por mulher, o que neste dia cumprira na antiga igreja daquela célebre comenda dos Hospitalários. Era, pois, para celebrar esse matrimónio adúltero, agourado pelas maldições populares, que o bispo D. Afonso, menos escrupuloso que o povo de Lisboa acerca de adultérios, vestia de festa o seu mui canónico burgo.

A cavalgada que se vira descer ao longo do vale já atravessava o rio da vila pela ponte do Souto e encaminhava-se para uma antiga porta da povoação primitiva, porta conhecida ainda hoje, como então, pelo nome de Vandoma. Ao lado direito de el-rei ia Dª Leonor, a rainha de Portugal: ele montando em um cavalo de guerra; ela em um palafrém branco, levado de rédea desde a entrada da ponte pelo infante D. João, que familiarmente falava e ria com a formosa cavaleira. Da banda esquerda, o bispo D. Afonso, curvado e enfraquecido pela velhice, oscilava e fazia cortesias involuntárias a cada passada da mansíssima e veneranda mula episcopal. Junto ao velho prelado, o infante D. Dinis caminhava em silêncio, e no aspecto melancólico do mancebo divisava-se quão profunda tristeza lhe consumia o coração, vendo-se como atado ao carro triunfal da mulher que pouco a pouco se convertera em sua irreconciliável inimiga. Após estas principais personagens, via-se uma grande multidão de cavaleiros, clérigos, cortesãos, conselheiros, juízes da Corte; companhia esplêndida, por entre a qual brilhava o ouro, a prata e as variadas cores dos trajos de festa, que sobressaíam no chão negro das vestiduras roçagantes dos magistrados e clérigos. Adiante de el-rei, as danças dos mouros e judeus volteavam rápidas, ao som da viola ou alaúde árabe, das trombetas e das soalhas. Segundo o antigo uso, seguiam-se às danças coros de donzelas burguesas, que celebravam com seus cantos o amor e ventura dos noivos.

Mas esse canto tinha o quer que era triste na toada. Triste era, também, o aspecto dos populares, que, sem um só grito de regozijo, se apinhavam para ver passar aquele préstito real. Mil olhos se cravavam no infante D. Dinis, cujo rosto melancólico revelava que os seus pensamentos eram acordes com os do povo, que por toda a parte não via neste consórcio senão um crime e uma fonte de desventuras. Os cortesãos, porém, fingiam não perceber o que se passava à roda deles e pareciam trasbordar de alegria. Muitos eram daqueles que mais contrários haviam sido aos amores de el-rei, mas, que, vendo, enfim, Dª Leonor rainha, voltavam-se para o sol que nascia e calculavam já quantas terras e que soma de direitos reais lhes poderia render da parte de um rei pródigo a sua mudança de opinião.

Entre estes não se via o tenaz e astuto Pacheco. Habituado ao trato da Corte por largos anos, experimentado em todos os enredos dos paços, hábil em traduzir sorrisos e gestos, palavras avulsas e discursos fingidos, não tardara em perceber que as mercês e agrados de el-rei e de Dª Leonor encobriam intentos de irrevogável vingança. Conhecendo que a sedição popular fora inútil e que, ainda renovada com mais fúria, não poderia resistir às armas de D. Fernando, havia-se afastado da Corte e, posto que só nos fins desse ano ele passasse a servir o seu antigo protector e amigo, D. Henrique de Castela, buscara entretanto esquivar-se ao ódio da nova rainha, conservando ao mesmo tempo a boa opinião entre o vulgo.

Abandonado assim do seu guia, o infante D. Dinis sofrera resignado um sucesso que não podia embargar; mas, digno filho de D. Pedro, conservara intacta a sua má vontade a Dª Leonor. Desamparado dos seus parciais, vendo, se não traída, ao menos quase morta e inactiva a aliança de Pacheco, e, para maior desalento, seu irmão mais velho, o infante D. João, ligado com essa mulher, da qual este príncipe mal pensava então lhe viria a última ruína; no meio de tantos desenganos, o infante, a princípio tímido e irresoluto, sentira crescer a ousadia com os perigos; sentira girar-lhe nas veias o sangue paterno. Obrigado a seguir a Corte, nunca Dª Leonor achara um sorriso nos seus lábios; nunca o vira conter diante dela um só sinal de desprezo. Assim, a cólera de el-rei contra seu irmão havia chegado ao maior auge, e os cálculos de fria e paciente vingança estavam resolvidos no ânimo de Leonor Teles.

A cavalgada tinha subido a encosta, atravessado a Porta de Vandoma, que em parte ainda subsiste, e passado em frente da Sé, junto da qual se dilatavam os paços episcopais. Aí as danças e folias pararam e fizeram por um momento silêncio. Então o infante D. João, tomando nos braços a formosa rainha, apeou-se do palafrém, e, após ela, el-rei saltou ligeiro do seu fogoso e agigantando ginete. Dentro em pouco toda a comitiva tinha desaparecido no profundo portal dos paços, e os donzéis conduziam os elegantes cavalos, as mulas inquietas e os mansos palafréns para as vastas e bem providas cavalariças do mui devoto e poderoso prelado da antiga Festabole.

O aposento principal dos paços, quadra vasta e grandiosa, estava de antemão ornado para receber os hóspedes reais do velho bispo D. Afonso. Um trono com dois assentos de espaldas indicava que a ele ia subir, também, uma rainha. Dª Leonor entrou seguida das cuvilheiras e donzelas da sua câmara; el-rei de todos os principais cavaleiros. Viam-se entre estes o alferes-mor Airas Gomes da Silva, ancião venerável, que fora aio do rei, quando infante, o orgulhoso mordomo-mor D. João Afonso Telo, Gil Vasques de Resende, aio do infante D. Dinis, o prior da Ordem do Hospital, Álvaro Gonçalves Pereira, e muitos outros fidalgos que ou seguiam a Corte ou tinham vindo assistir às bodas reais.

Guiada por D. Fernando, Leonor Teles subiu com passo firme os degraus do trono. Como o navegante, que, afrontando temporais desfeitos por mares incógnitos e aprocelados e chegando ao porto longínquo, quase que não crê pisar a terra de seus desejos, assim esta mulher ambiciosa e audaz parecia duvidar da realidade da sua elevação. A alma sorria-lhe a mil esperanças; a vida trasbordava nela. A seu lado um rei, a seus pés um reino! Era mais que embriaguez; era delírio. Ela sentia um novo afecto, um como desejo de perdão aos seus inimigos! Tremeu de si mesma e, convocando todas as forças do coração, salvou a sua ferocidade hipócrita, que parecia querer abandoná-la. Era severo o seu aspecto quando esses pensamentos estranhos lhe passaram pelo espírito; mas o sorriso tornou a espraiar-se-lhe no rosto quando o instinto de tigre pôde fazê-la triunfar desse momento em que a generosidade costuma acometer com violência as almas vingativas e ferozes, o momento em que se realiza a suma ventura por largo tempo sonhada.

Do alto do trono e em pé, D. Fernando estendeu a mão: o tropel de cortesãos e cavaleiros, de donas e donzelas formaram aos lados da espaçosa sala fileiras esplêndidas, imóveis e silenciosas: e el-rei volveu olhar lentos para um e outro lado e disse:

— Ricos-homens, infanções e cavaleiros de Portugal, um dos mais nobres sacramentos que Deus neste mundo ordenou foi o matrimónio: como para os outros homens, para os reis se instituiu ele; porque por ele as coroas se perpetuam na linhagem real. É por isso que eu desposei hoje a mui ilustre Dona Leonor, filha de Dom Afonso Telo, descendente dos antigos reis e ligada com os mais nobres de entre vós pelo dívido do sangue. Assim, a rainha de Portugal será mais um laço que vos una a mim como parentes, que de hoje avante sois meus. Leais, como tendes sido a vosso rei pelo preito que lhe fizestes, muito mais o sereis por este novo título. Em que pês a traidores, Dona Leonor Teles é minha mulher! Fidalgos portugueses, beijai a mão à vossa rainha.

O velho alferes-mor, Airas Gomes, aproximou-se então do trono, à voz do seu moço pupilo; ajoelhou e beijou à mão a Dª Leonor; mas o olhar que lançou para el-rei era como o de pedagogo que de mau humor se acomoda ao capricho infantil de um príncipe. Ao volver de olhos do ancião, D. Fernando corou e voltou o rosto.

O infante D. João, porém, dobrando o joelho aos pés da formosa rainha, parecia trasbordar de alegria. Contemplando-o, Leonor Teles deixou assomar aos lábios um daqueles ambíguos e quase imperceptíveis sorrisos que, vindos dela, sempre tinham uma significação profunda. Porventura que no infante D. João ela já não via mais que o precursor da humilhação de D. Dinis, do seu capital inimigo.

Após o infante, os fidalgos vieram sucessivamente curvar-se ante Dª Leonor. Boa parte deles era como capitães vencidos seguindo ao capitólio um triunfador romano. Podia com efeito dizer-se que, mau grado desses que se rojavam a seus pés, ela conquistara o trono.

Toda a comprida fileira de nobres oficiais da Coroa tinha passado e ajoelhado no estrado real. Faltava um; e era este, que, menosprezando tantas frontes ilustres por valor ou ciência, por fidalguia ou riqueza, inclinadas perante ela, a mulher orgulhosa e implacável esperava cogitando no momento em que o mancebo ainda impúbere, sem renome, sem poderio, célebre só por seu berço e pelo desgraçado drama da morte de Dª Inês, viesse tributar homenagem à que representava uma papel análogo ao daquela desventurada, salvo na sinceridade do amor e na inocência da vida.

Mas esse para quem Dª Leonor mais de uma vez volvera ràpidamente os olhos considerava com os braços cruzados aquele espectáculo em perfeita imobilidade, de que ùnicamente saíra quando Gil Vasques de Resende, que estava a seu lado, se afastara, caminhando para os degraus do estrado. O mancebo apertara a mão do idoso aio, trémula da idade, com a mão ainda mais trémula de cólera. Na conta de pai o tinha; venerava-o como filho, e a ideia de o ver prostituir os seus cabelos brancos aos pés de uma adúltera o levara a esse movimento involuntário; involuntário, porque ele naquela postura e naquela hora não fazia senão coligir todas as forças da alma para salvar a honra do nome de seus avós, do nome dos reis portugueses, esquecida por um de seus irmãos e, talvez, mercadejada por outro em troco de valimento infame. O velho entendeu o que significava este convulso apertar de mão: duas lágrimas lhe caíram pelas faces; mas obedeceu a el-rei.

Só faltava D. Dinis, que continuara a ficar imóvel. Houve um momento de silêncio sepulcral na vasta sala, e este silêncio era para todos indefinido, mas terrível.

D. Fernando pôs-se a olhar fito para seu irmão, enleado, ao que parecia, em cismar profundo.

Dentro de pouco, poder-se-ia crer que todos os fidalgos que povoavam aquela vasta quadra estavam convertidos em pedra semelhante à das colunas góticas que sustinham as voltas pontiagudas do tecto, se não fosse o respidar ansiado e rápido que lhes fazia ranger sobre os peitos e ombros os seus ricos briais.

Os lábios de el-rei tremeram, como a superfície do mar encrespada pela leve e repentina aragem que precede imediatamente o tufão. Depois, entreabrindo-os, com os dentes cerrados, murmurou:

— Infante Dom Dinis, beijai a mão à vossa rainha.

Foi um só o volver de todos os olhos para o moço infante: o sussuro das respirações cessara.

D. Dinis não respondeu; encaminhou-se para o meio do aposento: parou defronte do trono e, olhando em redor de si, perguntou com sorriso de amargo escárnio:

— Onde está aqui a rainha de Portugal?

— Infante Dom Dinis! - disse el-rei, cujo rosto o furor mal reprimido demudara. - Sofredor e bom irmão tenho sido por largo tempo: não queirais que seja hoje só juiz inflexível do filho querido daquele que também me gerou! Infante Dom Dinis!, beijai a mão da mui nobre e virtuosa Dona Leonor Teles, como fez vosso irmãos mais velho, de quem deveríeis haver vergonha.

— Nunca um neto de Dom Afonso do Salado - replicou o infante, com aparente tranquilidade - beijará a mão da que el-rei seu irmão e senhor que chamar rainha. Nunca Dom Dinis de Portugal beijará a mão da mulher de João Lourenço da Cunha. Primero ela descerá desse trono e virá ajoelhar a meus pés; que de reis venho eu, não ela.

— De joelhos, dom traidor! - gritou D. Fernando, pondo-se em pé e descendo dois degraus do estrado. - De joelhos, vil parceiro de revéis sandeus! Se a taberna de Folco Taca vos ouviu fazer preito infame aos peões de Lisboa, quebra-lo-eis diante do vosso rei: quebra-lo-eis, que vo-lo digo eu!

D. Dinis viu então que todos os seus passos estavam descobertos: achava-se, por isso, à borda de um abismo. Hesitou um momento; mas lembrou-se de que era neto do herói do Salado e precipitou-se na voragem.

— Vil é a mulher barregã e adúltera, e essa é ambas as cousas. Traidor seria um rei de Portugal que assentasse o adultério no trono, e vós o fizestes, rei desonrado e maldito de vosso Deus e do vosso povo! Quem neste lugar é o vil e o traidor?

O infante, acabando de proferir estas palavras, abaixou a cabeça e deixou descair os braços. Ele bem sabia que se seguia o morrer.

Apenas el-rei se alevantara, Dª Leonor, cujas faces se haviam tingido da amarelidão da morte, tinha-se erguido também. Naquele rosto, semelhante ao de uma estátua de sepulcro, apenas se conhecia o viver no profundar, cada vez maior, das duas rugas frontais que se lhe vinham juntar entre os sobrolhos.

Ouvindo as derradeiras e fulminantes palavras de D. Dinis, el-rei soltara um destes rugidos de desesperação e cólera humanas que nem o rugido da mais brava fera pode igualar; grito de ventríloquo, que é como o estridor de todas as fibras do coração que se despedaçam a um tempo; gemido como o do rodado ao primeiro giro do instrumento do suplício: rugido, grito, gemido, conglobados num só hiato, fundidos num som único pela raiva, pelo ódio, pela angústia - brado que só terá eco pleno no bramido que há-de soltar o réprobo quando no derradeiro juízo o julgador dos mundos lhe disser: "Para ti as penas eternas."

O brado de D. Fernando fizera tremer os mais esforçados cavaleiros que se achavam presentes: o movimento que o seguiu fez gelar o sangue em todas as veias.

Como um relâmpago ele tinha arrancado da cinta o agudo bulhão e, com os olhos desvairados, encaminhava-se para o meio da sala, onde seu irmão o esperava imóvel, com a mão sobre o peito, como se dissesse: "Aqui!"

Mas D. Fernando não pôde oferecer nas aras do adultério um fratricídio; uma barreira se tinha alevantado a seus pés. Era um velho de fronte calva e de longas melenas brancas e desbastadas pelos anos: era aquele que lhe fora mais que pai e que ele respeitava mais que a memória deste; era o seu alferes-mor, o venerável Airas Gomes, que, ajoelhado, lhe clamava com vozes truncadas de soluços e lágrimas:

— Senhor!, que é vosso irmão!

— É um covarde traidor, que deve morrer! Irmão!? Mentes, velho! Ele já o não é!

À palavra "mentes!" um relâmpado de vermelhidão passou pelas faces cavadas do antigo cavaleiro: abaixou os olhos e correu-os pela espada. Fora esta a primeira vez que ela ficara na bainha depois de tão funda afronta. Mas aquele era o momento dos grandes sacrifícios. Airas Gomes replicou, alimpando as lágrimas:

— Nunca vos menti, senhor, nem quando éreis na puerícia, nem depois que sois meu rei. Sabei-lo. Criminoso ou inocente, Dom Dinis é filho de meu bom senhor Dom Pedro. A vosso pai servi com lealdade; por vós já me andou arriscada a vida. Hoje tendes por defensores todos os cavaleiros de Portugal, ele é que não tem, talvez, um só. Senhor rei, ficai certo de que, para assassinar vosso irmão, vos é mister passar por cima do caáver de vosso segundo pai.

Atalhado assim o primeiro ímpeto, o carácter do moço monarca revelou-se inteiro neste momento. Comoveu-o a postura do venerando ancião, que pela primeira vez via a seus pés, e, com a irresolução pintada nos olhos, fitou-os em Leonor Teles.

Por uma reflexão instantânea, a hiena previra que o sangue derramado pelo fratricida não cairia sòmente sobre a cabeça deste, mas também sobre a dela. Naquele rosto, então semelhante ao de uma estátua, D. Fernando não pôde ler a sentença do infante, bem que lá no fundo do coração ela estivesse escrita com sangue.

Entretanto os cortesãos, que no furor rompente de el-rei haviam ficado estupefactos e quedos, vendo-o vacilar, rodearam o infante. O velho Gil Vasques de Resende, que ia interpor-se, também, entre D. Dinis e el-rei, quando este arrancara o punhal, parara ao ver a heróica resolução do alferes-mor; mas, ao hesitar de D. Fernando, correra a abraçar-se com o seu pupilo, que, no meio de tantos ânimos agitados por paixões diversas, era quem ùnicamente parecia tranquilo e alheio ao terror que se pintava em todos os semblantes.

Finalmente, el-rei meteu vagarosamente o punhal no cinto e, com voz pausada, mas trémula e presa, disse:

— Que esse mal-aventurado sai de ante mim.

O tom em que estas poucas palavras foram proferidas fez vergar o ânimo de D. Dinis, cujo coração, antes disso, parecera de bronze. Os olhos arrasaram-se-lhe de água. Sentira que, até então, era uma cólera cega, repentina, insensata, que o ameaçava: agora, porém, no modo e na expressão de D. Fernando vira claramente que era um amor de irmão que expirava.

Com a cabeça pendida em cima do ombro de Gil Vasques de Resende, saiu do aposento.

Era, talvez, o velho o único amigo que lhe restava no mundo.

Dª Leonor levou ambas as mãos ao rosto, e via-se-lhe arquejar o colo formoso, agitado por mal contido suspiro.

"Coração compadecido e generoso!", pensou lá consigo o alferes-mor, que havia pouco a tratara de perto pela primeira vez.

"Hora maldita e negra, em que perdi metade de minha tão espera vingança", pensava Leonor Teles, e o choro rebentou-lhe com violência.

— Não te aflijas, Leonor - disse D. Fernando, apertando-a ao peito. - Que nunca mais eu o veja, e viva, se puder, em paz!

Mas as lágrimas correram ainda com mais abundância e amargura.

O resto daquele dia foi triste: triste o banquete e o sarau. A atmosfera em que respirava a nova rainha tinha o que quer que fosse pesado e mortal, que resfriava todos os corações.

À meia-noite, por um claro luar de céu limpo de Inverno, uma barca subia com dificuldade a corrente rápida do Douro: à popa viam-se reluzir, nas toucas e mantos negros de dois cavaleiros que aí iam sentados, as orlas e bordaduras de ouro e prata: um dos remeiros cantava uma cantiga melancólica, a que respondia o companheiro, e dizia assim:

"Mortos me são padre e madre:
Eu tamanho fiquei.
Irmãos meus mal me quiseram.
Eu mal não lhes quererei.

Vou-me correr esse mundo;
Sabe Deus se o correrei!
A alma deixo-a cá presa;
O corpo só levarei.

De meus avós nos solares
Nasci: dous dias passei:
Meus irmãos, nada vos tenho
Senão o nome que herdei."

Esta cantiga, cuja toada monótona repercutia nos rochedos aprumados das margens, foi interrompida por doloroso suspiro. Um dos cavaleiros o dera.

Os remeiros calaram-se: arrancaram da voga com mais ânsia e, depois, continuaram:

"Se fui rico, ora sou pobre:
Choro hoje, se já folguei:
Vilas troquei por desvios;
Muito fui: nada serei.

Sem padre, madre ou irmãos
A quem me socorrerei?
A ti, meu Senhor Jesus:
Senhor Jesus, me acorrei!"

Um gemido mais angustiado, que saiu envolto em soluços, cortou de novo a cantiga: era do mesmo que já a interrompera. O seu companheiro bradou aos barqueiros, com a voz trémula e cansada de um ancião:

— Calai-vos aí com vossas trovas malditas!

Os remeiros vogaram em silêncio; mas pensaram lá consigo que muito danadas deviam ser as almas de cavaleiros que assim maldiziam tão devoto trovar.

Repararam, porém, que, dos dois desconhecidos, o que suspirava e gemera lançara os braços ao pescoço do que falara, e que este, afagando-o, lhe dizia:

— Quando todos, senhor, vos abandonarem não vos abandonarei eu; que o devo ao amor com que vos criei e à esclarecida e santa memória de vosso virtuoso pai.

Então os barqueiros, bem que rudes, desconfiaram de que podia muito bem ser que não fossem duas almas danadas aquelas, mas sim mal-aventuradas.

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sábado, abril 11, 2009 - 22:35

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