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O Bobo - Capítulo X: Generosidade

Acompanhando o conde de Trava, Garcia Bermudes atravessou a série dos aposentos que precediam o quarto da rainha, até uma pequena sala imediata à antecâmara real. Apenas os dois cavaleiros chegaram ali, um donzel que estava em pé junto da porta fronteira à da entrada, afastando um rico pano que mascarava esta e curvando-se respeitosamente, proferiu algumas palavras que os dois não perceberam. Pouco tardou que D. Teresa aparecesse. Trajava ainda o vestuário esplêndido com que assistira ao banquete, e a viveza desacostumada que conservava no olhar fazia crer que a irritação do seu espírito, despertada pelas últimas novas recebidas do arraial do infante, não havia inteiramente cessado. O numeroso séquito das suas donas e donzelas não a acompanhava, e com tremor involuntário Garcia notou que Dulce era quem unicamente a seguia.

Apenas entrou, a rainha encaminhou-se para os dois, que sucessivamente lhe beijaram a mão ainda formosa. Depois, dirigindo-se a Garcia Bermudes, mas volvendo rapidamente os olhos de quando em quando para o conde, lhe disse:

— Cavaleiro, leal é o teu coração, o teu braço esforçado, tua condição nobre e altiva: por isso te escolhi para alferes da minha hoste. Houve um tempo em que a filha de Afonso de Leão mal sofrera que outra voz diferente da sua surgisse no meio do silêncio dos cavaleiros de Portugal atentos ao brado de acometer. Esse tempo já lá vai! Hoje não sou mais que pobre viúva a quem filho ingrato quer privar da herança que recebi dos reis de quem descendo. A ti e ao nobre conde de Portugal e Coimbra pertence o salvar-me. Ele será o teu primeiro homem de armas, e como ele todos os que ainda não desmentiram o preito que me devem te obedecerão. Assim começo eu a provar-te quanto prezo um dos mais ilustres cavaleiros de Espanha.

Arainha fez uma pausa. O alferes-mor aproveitou aquela interrupção, e respondeu visivelmente perturbado:

— De mais, senhora, me tendes provado a vossa talvez infundada estima: maior do que a realidade me tendes feito acreditar o esforço do meu braço. Encontrando por vós uma honrada morte no campo da batalha eu só poderei mostrar que era, pela lealdade, se não digno de tantas honras, ao menos digno da vossa confiança.

— Não falemos de morte! - atalhou D. Teresa. - Tais pensamentos são de mau agouro nas vésperas de combater. A tua vida me é cara, e brevemente ela te não pertencerá toda a ti. A mais grata recompensa da tua lealdade, alferes-mor de Portugal, vais tê-la.

D. Teresa tomou então pela mão a filha de D. Gomes Nunes e, fazendo-a adiantar alguns passos, prosseguiu:

— Esta é a recompensa!

O conde, que preparara aquela cena, dava todos os sinais de contentamento ao ver o espanto de Garcia Bermudes que recuara ao ouvir semelhantes palavras. Fernando Peres obtivera com grande dificuldade que D. Teresa assim constrangesse Dulce a dar a mão de esposa a um homem que não amava. Não lhe escondera ele que isto era uma violência; e sem o desgraçado predomínio que tinha no coração da rainha as suas diligências sairiam baldadas. Por isso com sobeja razão exultava.

Uma palidez mortal cobrira o rosto de Dulce ao ouvir as palavras da sua mãe adoptiva, que lançara para ela o olhar que o algoz noviço volve para a sua vítima antes de desfechar o golpe. A rainha sentiu-lhe palpitar o terror na mão que tinha apertada na sua.

— Oh, senhora! - murmurou a donzela, alevantando os olhos para a rainha, com uma inflexão de voz tão meiga, tão tímida e tão dolorosa, que a bela infanta sentiu apertar-se-lhe o coração.

— Vamos, formosa Dulce - interrompeu Fernando Peres, que leu no gesto de D. Teresa o vacilar da sua alma -, sê connosco sincera. São mal cabidas aqui palavras fingidas de desamor. Certo que tu suspiravas pelo momento em que pudesses chamar teu um dos mais gentis e esforçados cavaleiros de Espanha. Esse momento chegou...

— Mas... senhor conde! - interrompeu balbuciando o alferes-mor.

— Basta, Garcia Bermudes - prosseguiu o conde, carregando o sobrolho. - És meu amigo, e a mui excelente rainha oferece-te para mulher a sua filha adoptiva, a herdeira do nome dos Bravais. Não é digna de ti? Não és tu digno dela? Esta união prender-te-á mais, se é possível, à terra que tomaste por pátria, e eu assim to ordeno. Sei que era esse o pensamento contínuo do teu espírito, o alvo a que tendiam todos os afectos do teu coração.

O leitor conhece já o carácter de Dulce: o primeiro instante de uma situação arriscada era para ela o da fraqueza mulheril, mas era só um instante. Mediu o abismo que se lhe abria debaixo dos pés... Um dia mais, e estava salva! Era necessário resistir: era necessário coligir todas as forças da sua alma. Trémula, mas com energia, atalhou Fernando Peres:

— Não, senhor de Trava! Aquela que foi segunda mãe de Dulce; aquela que sempre se lhe mostrou generosa e indulgente; a rainha de Portugal, tem direito a dispor da sua mão; tem direito a recalcar-me no fundo da alma todos os afectos, a fazer-me devorar em silêncio as minhas lágrimas. Se não pudesse dobrar-lhe a vontade, se ela fosse inflexível, obedecer-lhe-ia... ou morreria talvez! Mas vós, senhor conde, qual é o vosso título para constranger minha vontade? Fostes vós que honrastes o solar dos Bravais? Recebeu D. Gomes Nunes algum préstamo de vossa mão? Que vale que vós digais: "ordeno-o", se eu, nobre e livre, se eu, neta dos Godos, vos responder: "não será"?

A rainha olhava atónita para Dulce, cuja palidez e voz trémula desmentia a resolução das suas palavras. O furor do conde, cujo ânimo os acontecimentos desse dia tinham sobejamente irritado, ouvindo aquelas expressões que tocavam as raias do desprezo, rebentou subitamente. Esqueceu-se do fingido respeito que em toda a parte mostrava pela rainha, e principalmente na sua presença, para só se lembrar de que realmente ele era o verdadeiro senhor nos paços de Guimarães, desde que D. Teresa lhe entregara corpo e alma.

— Quem é que ousa aqui dizer "não será" ao conde de Portugal e Coimbra? - bradou ele com um rugido feroz que fez tremer a donzela. - Quem ousa nestes paços resistir à minha vontade? - E depois de uma breve pausa prosseguiu, dando uma risada: - Ah, sois vós, nobre herdeira dos Bravais, vós a que não tendes nenhum préstamo de minhas mãos! Sois vós a que recusais obedecer-me?

Depois de outra vez ficar alguns momentos calado, continuou em tom de mofa:

— Podeis, senhora, ordenar que soem as trombetas e timbales nos vossos castelos e honras, que os vossos alcaides juntem os cavaleiros, os vossos vílicos os besteiros, archeiros e fundibulários; que os vossos alferes desenrolem os balções dos Bravais, para marcharem contra o mísero conde de Portugal em lide de homizio! "Não, senhor de Trava"!? Sim, vos digo eu, donzela! Sim, que é força assim seja! Dizei-me só por muita mercê: é o pudor virginal quem vos obriga a rejeitardes a mão de tão gentil cavaleiro?

Fernando Peres cruzou os braços e cravou na donzela o seu olhar de gerifalte. Dulce, aterrada com as palavras e gestos daquele homem orgulhoso, tinha caído de joelhos aos pés da rainha e, apertando-lhe com as mãos convulsas a barra do epitógio, exclam ou:

— Oh! Salvai-me, salvai-me!

Dolorosa era a situação de D. Teresa. Amava sinceramente Dulce; mas entre ela e o conde havia laços que não podia, que não quisera quebrar. Aquelas expressões insolentes de Fernando Peres, a audácia com que ele substituía a própria vontade à sua, tinham uma significação terrível; despertavam-lhe recordações e remorsos!

O primeiro impulso do seu espírito altivo foi a indignação; mas a vergonha, talvez o temor, lhe embargou o manifestá-la. Abaixou o rosto, e duas lágrimas lhe escorregaram pelas faces.

O alferes-mor, porém, a fez sair daquele estado violento.

— Não - disse ele aproximando-se de Dulce -, não serás minha vítima! Garcia Bermudes nunca se esquecerá do dever de cavaleiro. Seria acaso a minha vida mais risonha possuindo-te, quando o teu coração... me rejeita? Sê livre! Recuso a posse de Dulce, rainha de Portugal!

A pobre donzela largou os vestidos de D. Teresa, e pegando na mão do cavaleiro beijou-a soluçando!

— Eu te amarei como um irmão! - exclamou ela. - Eu te adorarei como um deus. Oh! tu sabes que só assim...

— Silêncio!... - interrompeu nobremente o cavaleiro: porque percebeu que Dulce na agitação em que se achava ia trair-se a si própria e revelar o seu segredo.

O conde continuava a contemplar esta cena com os braços cruzados e com um riso cruel nos lábios. Dirigindo-se então à rainha, prosseguiu no mesmo tom de ironia amarga:

— Bem se vê, senhora, que o vosso alferes-mor foi armado cavaleiro pelo Cid Rui Dias. Guarda puras as tradições daquele espelho brilhante de todas as cavalarias. Mas eu fraco mortal, que não ponho tão alto a mira, penso mais tranquilamente! Garcia Bermudes! Dulce! Escutai o que vos digo: são as minhas derradeiras palavras. Amanhã a estas horas o alferes-mor de Portugal terá uma esposa, e esta esposa será a nobre e rica herdeira dos Bravais.

E voltando-se para D. Teresa ajoelhou, beijou-lhe a mão, e disse:

— Espero que a mui excelente rainha, no momento em que vai recolher-se à sua câmara, permitirá que o mais leal dos seus vassalos se retire também para não perturbar os colóquios de dois amantes na véspera do seu noivado.

A inflexão que o conde dera a estas últimas frases tinha o que quer que era atroz e diabólico. D. Teresa estremeceu como sacudida por uma corrente eléctrica e, atravessando vagarosamente a sala, desapareceu.

Fernando Peres, encaminhando-se para o lado oposto, ouviu Garcia Bermudes repetir com voz firme:

— Não: tu nunca serás minha.

O conde voltou a cabeça sem parar, encolheu os ombros e saiu.

Dulce, que ficara na postura em que se achava com a mão do alferes-mor entre as suas e a fronte pendida sobre ela, alevantou então os olhos e fitou-os no cavaleiro: o rosto deste era solene e triste.

— Estás satisfeita, Dulce? - perguntou o aragonês.

— Tu és bom e generoso, Garcia! Tu és bom e generoso! - murmurou a filha de Gomes Nunes. - Pudera eu oferecer-te um coração ainda virgem! Oh, de quanto amor eu cercaria os teus dias!

— Basta! - interrompeu o cavaleiro perturbado. - Que te importa, anjo do céu, se ao passares na Terra os raios da tua luz devoraram uma existência? Que importa?!... Oh, que nesta idade de vida e de esperança custa muito a morrer!

O alferes-mor levou as mãos ao rosto. Era porventura uma lágrima, e o mancebo envergonhava-se dessa lágrima neste doloroso momento; porque não era só doloroso, mas também grave e solene.

— Oh Garcia, Garcia! - replicou Dulce. - Qual gratidão poderá exceder a nossa para contigo?! Tu me salvaste e o salvaste a ele. Egas ser-te-á amigo, irmão, servo...

— Que nome saiu da tua boca?! - bradou o aragonês com olhos subitamente acesos de furor. - Irmão! amigo! Amaldiçoada a hora em que entre nós se dissessem essas infernais palavras! Cuidas tu que o amar-te, a ponto de renegar da minha alma, da minha perpétua felicidade, é não o detestar a ele?...

Aqui, apertando com força o braço de Dulce e fazendo-a erguer, continuou com voz presa:

— Olha, Dulce, amanhã... Mas não!... Se a sua vida for assaz larga para te possuir... e essa vida provará talvez que ele é um covarde... dize-lhe que se algum dia duas hostes estiverem frente a frente em lide ou arrancada, e eu for em uma e ele noutra, que fuja do sítio onde vir esvoaçar o balção de Garcia Bermudes... Que fuja! porque há aí uma espada que tem sede do seu sangue; porque há aí lábios que lho beberiam; porque bate aí impetuoso o coração de um seu inimigo mortal! E dize-lhe mais... que este inimigo sou eu! dize-lhe que não há sobre a Terra um lugar onde caibam ele, eu, e o meu ódio!

Proferindo estas palavras, o gesto do cavaleiro estava demudado. Afastou de si a donzela com violência, e dirigiu-se rapidamente à porta dos aposentos exteriores.

Um gemido de profunda agonia bateu ainda nos seus ouvidos ao atravessar a sala imediata; e o desgraçado fugiu. Arrastava-o a desesperação.

Aquele gemido partira do seio de Dulce, que dera em terra como se fora morta.

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sábado, abril 11, 2009 - 23:53

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