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Edgar Allan Poe – Contos de Terror, Mistério e Morte
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Berenice. Morela. O Visionário. O Rei Peste conto alegórico. Ligéia. Metzengerstein. A Queda do Solar de Usher. William Wilson. Eleonor. O Retrato Oval. A Máscara da Morte Rubra. O Coração Delator. O Gato Preto. O Poço e o Pêndulo. Uma História das Montanhas Ragged. O Enterro Prematuro. O Caixão Quadrangular. O Demónio da Perversidade. Revelação Mesmeriana. O Caso Do Senhor Valdemar. O Barril de Amontillado. Silêncio. Sombra. Hop-Frog. A Carta Furtada. O Escaravelho de Ouro. Os Crimes da Rua Morgue. O Mistério de Maria Roget. Tu és o homem.
Meus companheiros asseguravam-me que visitado o túmulo da minha amiga conseguiria, em parte, alívio para as minhas tristezas. Ebn Zaiat
A desgraça é variada. O infortúnio da terra é multiforme. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris, as suas cores são como as deste, variadas, distintas e, contudo, nitidamente misturadas. Arqueando-se sobre o vasto horizonte como o arco-íris! Como é que de um exemplo de beleza, derivei eu uma imagem de desencanto? Da aliança de paz, uma semelhança de tristeza? E que, assim como na ética o mal é uma consequência do bem, da mesma realidade, da alegria nasce a tristeza. Ou a lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje, ou as amarguras que existem agora têm a sua origem nas alegrias que podiam ter existido.
Ele mesmo, por si mesmo unicamente, eternamente Um e único- Platão
Era com sentimentos de profunda, embora singularíssima afeição que eu encarava minha amiga Morela. Levado a conhecê-la por acaso, há muitos anos, minha alma, desde o nosso primeiro encontro ardeu em chamas como nunca antes conhecera; não eram, porém as chamas de Eros, e foi amarga e atormentadora para meu espírito a convicção crescente de que eu não podia, de modo algum, olvidar de sua incomum significação, ou regular-lhe a vaga intensidade. Conhecemo-nos, porém, e o destino conduziu-nos juntos ao altar; mas nunca falei de paixão ou pensei em amor. Ela, contudo, evitava companhias e, ligando-se só a mim, fazia-me feliz. Maravilhar-se é uma felicidade; e é uma felicidade sonhar.
(…)colocava a mão fria sobre a minha e extraía das cinzas de uma filosofia morta algumas palavras profundas e singulares, cujo estranho sentido as gravava a fogo em minha memória.
Aquela identidade que se chama pessoal, Locke, penso, define-a com realismo, como consistindo na conservação do ser racional. E que por pessoa compreendemos uma essência inteligente dotada de razão, e desde que há uma consciência que sempre acompanha o pensamento, é ela que nos faz, a todos, sermos o que chamamos nós mesmos, distinguindo-nos por isso de outros pensamentos e dando-nos nossa identidade pessoal.
Fica a esperar-me aí! não deixarei de te encontrar nesse profundo vale. Henry King, Bispo de Chichester: Elegia sobre a morte da sua mulher.
Há seguramente outros mundos que não este…outros pensamentos que não os pensamentos da multidão... outras especulações que não as especulações dos sofistas. Quem discutirá então tua conduta? Quem te censurará por tuas horas visionárias, ou denunciará aquelas ocupações como uma perda de vida, quando eram apenas a superabundância de tuas energias eternas?
Quem não se lembra que em ocasiões de tragédia, os olhos, como um espelho partido, multiplicam as imagens de seu pesar e vêem, em numerosos lugares distantes, a desgraça que está ali próxima?
Quem não se lembra qua em ocasiões como esta, os olhos, como um espelho partido, multiplicam as imagens de seu pesar e vêem, em numerosos lugares distantes, a desgraça que está ali próxima?
Morrer rindo deve ser a mais gloriosa de todas as mortes gloriosas!
Sonhar tem sido a ocupação da minha vida. Armei, pois, para mim, como vê, um camarim de sonhos. Poderia construir um melhor no coração de Veneza? O senhor observa em torno de si, é verdade, uma mistura de adornos arquitectónicos. A castidade da lônia é ofendida pelas inscrições antediluvianas e as esfinges do Egipto que se estendem sobre tapetes dourados. Contudo, o efeito só é incongruente para o tímido. Conveniências de lugares, e especialmente de tempo, são os fantasmas que afastam a humanidade aterrorizada da contemplação do magnificente. Fui outrora decorador mas essa sublimação do disparate embotou a minha alma. Tudo isto é agora o mais apropriado para meu propósito. Como aqueles arabescados incensários, o meu espírito se estorce em labaredas e o delírio desta cena está-me amoldando para as mais insensatas visões daquela região de verdadeiros sonhos para onde estou agora partindo (morte).
Os deuses suportam nos reis, e permitem, as coisas que odeiam em meio à ralé- Buckhurst
(…) e quando se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe)…
E ali dentro está a vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade, bem como vigor? Porque Deus é apenas uma grande vontade, penetrando todas as coisas pela qualidade de sua aplicação. O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade. Joseph Glanvill
De todas as mulheres que tenho conhecido, era ela, a aparentemente calma, a sempre tranquila Ligéia, a mais violentamente presa dos tumultuosos abutres da paixão desenfreada.
(…) Não me faltava aquilo a que o mundo chama riqueza. Ligéia trouxera-me bem mais, muitíssimo mais do que cabe de ordinário à sorte dos humanos.
Onde estavam as almas da altiva família da noiva quando, movidas pela sede do ouro, permitiram que transpusesse o umbral dum aposento tão ataviado uma jovem e tão amada filha?
Em aposentos tais como aquele, numa câmara nupcial tal como aquela, passava eu, com Lady de Tremaine, as horas não sagradas do primeiro mês do nosso casamento, e passava-as com muita inquietação. Que minha mulher receava o violento mau-humor do meu temperamento, que me evitava e que me amava muito pouco eram coisas que eu não podia deixar de perceber. Mas isso me causava mais prazer que outra coisa. Eu detestava-a com um ódio que tinha mais de diabólico que de humano. Minha memória retornava (oh, com que intensa saudade!) a Ligéia, a bem-amada, a augusta, a bela, a morta. Entregava-me a orgias de recordações da sua pureza, da sua sabedoria, da sua nobre, da sua etérea natureza de seu apaixonado e idolátrico amor.
Na excitação de meus sonhos de ópio (pois vivia habitualmente agrilhoado às algemas da droga) gritava o seu nome em voz alta, durante o silêncio da noite, ou de dia, entre os recantos protectores dos vales, como se, pela ânsia selvagem, pela paixão solene, pelo ardor devorante de meu desejo pela morta, eu pudesse ressuscitá-la, nas sendas que abandonara nesta terra... será possível que para sempre?
Vivendo era o teu açoite – morto, serei a tua morte- Martinho Lutero
O horror e a fatalidade têm tido livre curso em todos os tempos. Porque então datar esta estória que vou contar? Basta dizer que, no período de que falo, havia, no interior da Hungria, uma crença bem assentada, embora oculta, nas doutrinas da metempsicose. Das próprias doutrinas, isto é, de sua falsidade, ou de sua probabilidade, nada direi. Afirmo, porém, que muito da nossa incredulidade (como diz La Bruyère, explicando todas as nossas infelicidades), “vient de ne pouvoir être Seul” (provém de não podermos estar sozinhos N.T).
É coisa sabida que vizinhos próximos raramente são amigos.
Seu coração é um alaúde pendurado; tão logo alguém o toca, ressoa - De Béranger
Contemplei o panorama em minha frente - a casa simples e os aspectos simples da paisagem da propriedade, as paredes soturnas, as janelas vazias, semelhando olhos, uns poucos canteiros de caniços e uns poucos troncos brancos de árvores mortas, com extrema depressão de alma que só posso comparar, com propriedade, a qualquer sensação terrena, lembrando os instantes após o sonho de ópio. Para quem dele desperta, a amarga recaída na vida quotidiana, o tombar do véu. Havia um enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coração, uma irreparável tristeza no pensamento, que nenhum incitamento da imaginação podia forçar a transformar-se em qualquer coisa de sublime.
Que dirá ela? Que dirá a horrenda consciência, aquele espectro no meu caminho?- Chambarlain
O pastor dessa igreja era o diretor da nossa escola. Com que profundo sentimento de maravilha e perplexidade tinha eu o costume de contemplá-lo do nosso distante banco na tribuna, quando, com passo solene e vagaroso, subia ele ao púlpito! Aquele personagem venerando, com seu rosto tão modestamente benigno, com trajes tão lustrosos e tão clericalmente flutuantes, com sua cabeleira tão cuidadosamente empoada, tão tesa e tão vasta, poderia ser o mesmo que, ainda há pouco, de rosto azedo e roupas manchadas de rapé, fazia executar, de palmatória em punho, as draconianas leis do colégio? Oh gigantesco paradoxo, por demais monstruoso para ser resolvido!
Encerrado entre as maciças paredes daquele venerável colégio, passei todavia, sem desgosto ou tédio, os anos do terceiro lustro de minha vida. O cérebro fecundo da infância não exige um mundo exterior de incidentes para com ele ocupar-se ou divertir-se; e a monotonia aparentemente triste de uma escola estava repleta de mais intensa excitação, que a que minha mocidade mais madura extraiu da luxúria ou minha plena maturidade do crime.
Em geral, os acontecimentos da primeira infância raramente deixam uma impressão definida sobre os homens, na idade madura. Tudo são sombras cinzentas recordações apagadas e imprecisas, indistinto amontoado de débeis prazeres e de fantasmagóricos pesares.
Se há na terra um despotismo supremo e absoluto, é o despotismo de um poderoso cérebro juvenil sobre o espírito menos enérgicos de seus companheiros.
(…) nos bolsos do meu roupão, certo número de baralhos exatamente iguais aos que utilizávamos em nossas reuniões, com a única excepção de que os meus eram da espécie chamada, tecnicamente, arredondées, sendo as cartas de figuras levemente convexas nas pontas e as cartas comuns levemente convexas nos lados. Com esta disposição, o ingénuo que corta, como de costume, ao comprido do baralho invariavelmente é levado a cortar dando figura a seu parceiro, ao passo que o jogador profissional, cortando na largura, com toda a certeza nada cortará para sua vítima que possa servir de vantagem no desenrolar do jogo.
Provenho de uma raça notável pelo vigor da imaginação e pelo ardor da paixão. Chamaram-me de louco; mas a questão ainda não está resolvida: se a loucura é ou não a inteligência sublimada, se muito do que é glorioso, se tudo o que é profundo não brota do pensamento enfermo, da maneira do espírito exaltado, a expensas da inteligência geral. Os que sonham de dia conhecem muitas coisas que escapam aos que sonham somente de noite. Nas suas visões nevoentas, logram vislumbres de eternidade, e sentem viva emoção, ao despertar, por descobrirem que estiveram no limiar do grande segredo. Aos poucos, vão aprendendo algo da sabedoria, o que é bom, e muito mais do simples conhecimento, o que é mau. Penetram, contudo, sem leme e sem bússola, no vasto oceano da "luz inefável".
(…)Era pois terrível coisa para essa mulher ouvir o pintor exprimir o desejo de pintar o próprio retrato de sua jovem esposa. Ela era, porém, humilde e obediente, sentava-se submissa durante horas no escuro e alto quarto do torreão, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa, sobre a alva tela. Mas ele, o pintor, regozijava-se com a sua obra, que continuava de hora em hora, de dia em dia, e era um homem apaixonado, rude e extravagante, que vivia perdido em devaneios; assim não percebia que a luz que caía tão lívida naquele torreão solitário ia murchando a saúde e a vivacidade de sua esposa, visivelmente definhando para todos, menos para ele. Contudo, ela continuava ainda e sempre a sorrir, sem se queixar, porque via que o pintor (que tinha alto renome) trabalhava com fervoroso e ardente prazer e porfiava, dia e noite, por pintar quem tanto o amava, mas que todavia, se tornava cada vez mais triste e fraca.(…) E não percebia que as tintas que espalhava sobre a tela eram tiradas das faces daquela que se sentava a seu lado. E quando já se haviam passado várias semanas e muito pouco a fazer, exceto uma pincelada sobre a boca e um colorido nos olhos, a alegria da mulher de novo bruxuleou, como a chama dentro de uma lâmpada. E então foi dada a pincelada e completado o colorido. E durante um instante o pintor ficou extasiado diante da obra que tinha realizado mas em seguida, enquanto ainda contemplava, pôs-se a tremer e, pálido, horrorizado, exclamou em voz alta: "Isto é na verdade a própria vida. Voltou-se, subitamente, para ver a sua bem-amada... Estava morta!
Há no coração dos mais levianos fibras que não podem ser tocadas sem emoção. Mesmo para os mais divertidos, para quem a vida e a morte são idênticos brinquedos assuntos com os quais não se pode brincar.
Há qualquer coisa no amor sem egoísmo e abnegado de um animal que atinge diretamente o coração de quem tem tido frequentes ocasiões de experimentar a amizade mesquinha e a fidelidade frágil do simples Homem.
Certa noite, de volta a casa, bastante embriagado, de uma das tascas dos subúrbios, supus que o gato evitava minha presença. Agarrei-o, mas, nisto, amedrontado com a minha violência ele me deu uma leve dentada na mão. Uma fúria diabólica apossou-se instantaneamente de mim. Cheguei a desconhecer-me. Parecia que a alma original me havia abandonado de repente o corpo e uma maldade mais do que satânica, saturada de álcool, fazia vibrar todas as fibras de meu corpo. Tirei do bolso do colete um canivete, abri, agarrei o pobre animal pela garganta e, deliberadamente, arranquei-lhe um dos olhos da órbita! Coro, abraso-me, estremeço ao narrar a condenável atrocidade.
Quando, com a manhã, me voltou a razão, quando, com o sono desfiz os fumos da noite de orgia, experimentei uma sensação meio de horror, meio de remorso pelo crime de que me tornara culpado. Mas era, quando muito, uma sensação fraca e equívoca e a alma permanecia insensível. De novo mergulhei em excessos e logo afoguei no vinho toda a lembrança do meu acto. Enquanto isso o gato, pouco a pouco, foi sarando. A órbita do olho arrancado tinha, é verdade, uma horrível aparência, mas ele parecia não sofrer mais nenhuma dor. Andava pela casa como de costume, mas, como era de esperar, fugia com extremo terror à minha aproximação.
Restava-me ainda bastante de meu antigo coração, para que me magoasse, a princípio, aquela evidente aversão por parte de uma criatura que tinha sido outrora tão amada por mim. Mas esse sentimento em breve deu lugar à irritação. E então apareceu, como para minha queda final e irrevogável, o espírito da perversidade. Desse espírito não cuida a filosofia. Entretanto, tenho menos certeza da existência da minha alma do que de ser essa perversidade um dos impulsos primitivos do coração humano, uma das indivisíveis faculdades primárias, ou sentimentos, que dão direção ao caráter do homem.
Quem não se achou centenas de vezes a cometer um acto vil ou estúpido, sem outra razão senão a de saber que não devia cometê-lo ? Não temos nós uma perpétua inclinação apesar do nosso melhor bom-senso, para violar o que é a lei, pelo simples facto de compreendermos que ela é a Lei? O espírito de perversidade, repito, veio a causar, a minha derrocada final. Foi esse anelo insondável da alma, de torturar-se a si próprio, de violentar a sua própria natureza, de praticar o mal pelo mal, que me levou a continuar e, por fim, a consumar a tortura que já havia infringido ao inofensivo animal.
Certa manhã, a sangue-frio, enrolei em seu pescoço e enforquei-o no ramo de uma árvore, enforquei-o com as lágrimas jorrando-me dos olhos e com o mais amargo remorso no coração. Enforquei-o porque sabia que ele me tinha amado e porque sentia que ele não me tinha dado razão para ofendê-lo. Enforquei-o porque sabia que, assim fazendo, estava cometendo um pecado, um pecado mortal, que iria pôr em perigo a minha alma imortal, colocando-a - se tal coisa fosse possível - mesmo fora do alcance da infinita misericórdia do mais misericordioso terrível Deus.
(…)E então eu- homem formado à imagem do Deus Altíssimo- era em verdade um desgraçado, mais desgraçado que a própria desgraça humana.
Nem mesmo no túmulo tudo está perdido! De outra forma, não haveria imortalidade para o homem.
O que eu via, o que eu ouvia, o que eu sentia, nada tinham da sensação inconfundível do sonho. Tudo era rigorosamente real. A princípio, duvidando de que estivesse realmente acordado, iniciei uma série de experiências que logo me convenceram de que estava efetivamente desperto. Ora, quando alguém sonha, e no sonho suspeita de que está sonhando, a suspeita nunca deixa de confirmar-se e o dormente é quase imediatamente despertado. De modo que Novalis não erra em dizer que : nós estamos quase despertando, quando sonhamos que estamos sonhado; Tivesse-me ocorrido a visão como a descrevo sem que a suspeitasse de ser sonho, então um sonho ela poderia verdadeiramente ter sido, mas, ocorrendo como ocorreu, e suspeitada como era, sou forçado a classificá-la entre outros fenómenos…
Há certos temas de interesse totalmente absorventes mas por demais horríveis para os fins da legítima ficção. O simples romancista deve evitá-los se não deseja ofender ou desgostar. Só devem ser convenientemente utilizados quando a severidade e a imponência da verdade os santificam e sustentam. Estremecemos, por exemplo, com o mais intenso "pesar agradável", diante das narrativas da Passagem do Beresina, do Terremoto de Lisboa, da peste de Londres, do Massacre de São Bartolomeu, ou do asfixiamento de cento e vinte três prisioneiros da Caverna Negra em Calcutá. Mas, nessas narrativas é o facto, é a realidade, é a história o que excita. Como invenções, olhá-las-íamos com simples aversão.
Mencionei algumas, apenas, das mais proeminentes e augustas calamidades que a história registra. Mas nelas existe a extensão, bem como o caráter, de calamidade, que tão vivamente impressiona a fantasia.
Não é necessário lembrar ao leitor que, do longo e pavoroso catálogo das misérias humanas, poderia eu ter selecionado numerosos exemplos individuais mais repletos de sofrimento essencial que qualquer daqueles vastos desastres generalizados. A verdadeira desgraça, na verdade, o derradeiro infortúnio, é particular e não difuso. Demos graças a um Deus misericordioso pelo facto de serem os espantosos extremos da agonia suportados pelo homem-unidade e não pelo homem-massa!
Há momentos em que, mesmo aos olhos serenos da razão, o mundo de nossa triste Humanidade pode assumir o aspecto de um inferno (…)
(…)Teria sido mais acertado, teria sido mais seguro, classificar (se podemos classificar) sobre a base daquilo que o homem, usual ou ocasionalmente, fez e estava sempre ocasionalmente fazendo do que sobre a base daquilo que supomos que a Divindade tencionava que ele fizesse. Se não podemos compreender Deus nas suas obras visíveis, como então compreendê-lo nos seus inconcebíveis pensamentos que dão vida às suas obras? Se não podemos compreendê-lo nas suas criaturas objetivas, como compreendê-lo então nas suas disposições de ânimo substantivas e nas suas fases de criação?
(…) um princípio inato e primitivo da ação humana, algo de paradoxal que podemos chamar de perversidade (…) Sob a sua influência agimos sem objectivo compreensível, ou, se isto for entendido como uma contradição nos termos, podemos modificar a tal ponto a proposição que digamos que sob sua influência nós agimos pelo motivo de não devermos agir.
Em teoria, nenhuma razão pode ser mais desarrazoada; mas, de fato, nenhuma há mais forte. Para certos espíritos, sob determinadas condições, torna-se absolutamente irresistível. Com a mesma certeza com que respiro, tenho a certeza de ser muitas vezes o engano ou o erro de qualquer acção a força inconquistável que nos empurra, e a única que nos impele a continuá-lo. E não admitirá análise ou resolução em elementos ulteriores esta acabrunhante tendência de praticar o mal pelo mal. É um impulso radical, primitivo, elementar.
Não há homem que, em algum momento, não tenha sido atormentado, por exemplo, por um agudo desejo de torturar um ouvinte por meio de circunlóquios. Sabe que desagrada. Tem toda a intenção de desagradar. Em geral é conciso, preciso e claro. Luta em sua língua por expressar-se na mais lacónica e luminosa linguagem. Só com dificuldade consegue evitar que ela desborde. Teme e conjura a cólera daquele a quem se dirige. Contudo, assalta-o o pensamento de que essa cólera pode ser produzida por meio de certas tricas e parêntesis. Basta esta ideia. O impulso converte-se em desejo, o desejo em vontade, a vontade numa ânsia incontrolável, e a ânsia (para profundo remorso e mortificação de quem fala e num desafio a todas as consequências) é satisfeita.
Temos diante de nós uma tarefa que deve ser rapidamente executada. Sabemos que retardá-la será ruinoso. A mais importante crise de nossa vida requer, imperiosamente, energia imediata e acção. Inflamamo-nos, consumimo-nos na avidez de começar o trabalho, abrasando-se toda a nossa alma na antecipação de seu glorioso resultado. É forçoso, é urgente que ele seja executado hoje, e contudo, adiamo-lo para amanhã. Por quê isso? Não há resposta senão a de que sentimos a perversidade do acto, usando o termo sem compreender-lhe o princípio.
Chega o dia seguinte e com ela a mais impaciente ansiedade de cumprir o nosso dever, mas com todo esse aumento de ansiedade chega também um indefinível e positivamente terrível, embora insondável, anseio extremo de adiamento. E quanto mais o tempo foge, mais força vai tomando esse anseio.
A última hora para agir está iminente. Trememos à violência do conflito que se trava dentro de nós, entre o definido e o indefinido, entre a substância e a sombra. Mas se a contenda se prolonga a este ponto, é a sombra quem prevalece. Foi vã a nossa luta. O relógio bate e é o dobre de finados de nossa felicidade.
Ao mesmo tempo é a clarinada matinal para o fantasma que por tanto tempo nos intimidou. Ela voa. Desaparece. Estamos livres. Volta a antiga energia. Trabalharemos agora. Ai de nós porém, é tarde demais!
Estamos à borda dum precipício. Perscrutamos o abismo e vem-nos a náusea e a vertigem. O nosso primeiro impulso é fugir ao perigo. Inexplicavelmente, porém, ficamos. Pouco a pouco, a nossa náusea, a nossa vertigem, o nosso horror confundem-se numa nuvem de sensações indefiníveis. Gradativamente, e de maneira mais imperceptível, essa nuvem toma forma, como a fumaça da garrafa donde surgiu o génio nas Mil e uma Noites. Mas fora dessa nossa nuvem à borda do precipício, uma forma se torna palpável, bem mais terrível que qualquer génio ou qualquer demónio de fábulas. Contudo não é senão um pensamento, embora terrível, e um pensamento que nos gela até à medula dos ossos com a feroz volúpia do seu horror. É , simplesmente, a ideia do que seriam nossas sensações durante o mergulho precipitado duma queda de tal altura.
E esta queda, este aniquilamento vertiginoso, envolve essa mais espantosa e mais repugnante de todas as espantosas e repugnantes imagens de morte e de sofrimento que jamais se apresentaram à nossa imaginação, faz com que mais vivamente a desejemos. E porque nossa razão nos desvia violentamente da borda do precipício, por isso mesmo mais impetuosamente nos aproximamos dela. Não há na natureza paixão mais diabolicamente impaciente como a daquele que, tremendo à beira dum precipício, pensa dessa forma em nele se lançar. Deter-se, um instante que seja, em qualquer concessão a essa ideia é estar inevitavelmente perdido, pois a reflexão ordena-nos que fujamos sem demora e, portanto, digo-o, é isto mesmo que não podemos fazer. Se não houver um braço amigo que nos detenha, ou se não conseguirmos, com súbito esforço recuar da beira do abismo, nele nos atiraremos e destruídos estaremos.
Examinando ações semelhantes(…) descobriremos que elas resultam tão-somente do espírito de Perversidade. Nós as cometemos porque sentimos que não deveríamos fazê-lo. Além, ou por trás disso, não há princípio inteligível, e nós podíamos, de fato, supor que essa perversidade é uma direta instigação do demônio se não soubéssemos, realmente, que esse princípio opera em apoio do bem.
" Morte por visita de Deus." (Death Visitation of God é a expressão com que os médicos legistas indicam, nos atestados de óbito, a morte natural. N.T.)
P. -Que perguntarei então?
V. - Deve começar pelo começo.
P. - O começo? Mas onde é o começo?
V. - O começo, como sabe, é Deus.
P. - Que é Deus, então? Deus é espírito?
V. - Enquanto estava desperto(…), eu sabia o que queria dizer com a palavra "espírito", mas agora parece-me apenas uma palavra tal, por exemplo, como verdade, beleza: quero dizer, uma qualidade.
P. - Não é Deus imaterial?
V. - Não há imaterialidade; é uma simples palavra. O que não é matéria não é absolutamente, a menos que as qualidades coisas.
P. - Deus, então, é material?
V. - Não.
P - Então que é ele? V - Vejo... mas é uma coisa difícil de dizer. Ele não é espírito, porque existe. Nem é matéria, tal como você entende. Mas há gradações da matéria de que o homem não conhece nada, a mais densa impelindo a mais sutil, a mais sutil invadindo a mais densa. A atmosfera, por exemplo, movimenta o princípio elétrico, ao passo que o princípio elétrico penetra a atmosfera. Estas gradações da matéria aumentam em raridade ou subtileza até chegarmos a uma matéria imparticulada - sem partículas -, indivisível - una - e aqui a lei de impulsão e de penetração é modificada. A matéria suprema ou não particulada não somente penetra todas as coisas, mas movimenta todas as coisas, e assim é todas as coisas em si mesma. Esta matéria é Deus. Aquilo que os homens tentam personificar na palavra "pensamento" é esta matéria em movimento.
P. - Os metafísicos sustentam que toda ação é redutível a movimento e pensamento, e que este é a origem daquele.
V. - Sim. E agora vejo a confusão de ideias. O movimento é a ação do espírito e não do pensamento. A matéria imparticulada ou Deus, em estado de repouso (tanto quanto podemos concebê-lo ) é o que os homens chamam espírito. E o poder do auto movimento (equivalente com efeito à volição humana) é, na matéria imparticulada, o resultado de sua unidade e de sua omnipotência; como não sei, e agora vejo claramente que jamais o saberei. Mas a matéria imparticulada, posta em movimento por uma lei ou qualidade existente dentro de si mesma, é pensamento.
P. Poderá dar-me a ideia mais precisa do que chama você matéria imparticulada?
V. As matérias de que o homem tem conhecimento escapam aos sentidos gradativamente. Temos, por exemplo, um metal, um pedaço de madeira, uma gota de água, a atmosfera, um gás, o calórico, a eletricidade, o éter luminoso. Ora, chamamos todas essas coisas matérias e abrangemos toda a matéria numa definição geral; mas a despeito disto, não pode haver duas ideias mais essencialmente distintas do que a que ligamos a um metal e a que ligamos ao éter luminoso. Quando alcançamos este último, sentimos uma inclinação quase irresistível a classificá-lo como espírito ou como o nada. A única consideração que nos retém é nossa concepção de sua constituição atómica, e aqui mesmo temos necessidade de buscar auxilio na nossa noção de um átomo, como algo que possui, com pequenez infinita, solidez, palpabilidade, peso. Suprimamos a ideia do éter como uma entidade ou, pelo menos, como matéria. À falta de melhor palavra podemos denominá-lo espírito. Dê agora um passo para além do éter luminoso. Conceba uma matéria como muito mais rarefeita do que o éter, assim como o éter é muito mais rarefeito do que o metal, e chegaremos imediatamente (a despeito de todos os dogmas da escola) a uma única massa, uma matéria imparticulada. Pois, embora possamos admitir infinita pequenez nos próprios átomos, a infinidade da pequenez nos espaços entre eles é um absurdo. Haverá um ponto, haverá um grau de rarefação no qual, se os átomos são suficientemente numerosos, os interespaços devem desaparecer e a massa unificar-se de todo. Mas, sendo agora posta de lado a consideração da constituição atômica, a natureza da massa resvala inevitavelmente para aquilo que concebemos como espírito. E claro, que ela é tão matéria ainda quanto antes. A verdade é que não se pode conceber o espírito sem que seja possível imaginar o que não é. Quando nos lisonjeamos por haver formado essa concepção, apenas iludimos a nossa inteligência com a consideração da matéria infinitamente rarefeita.
P. - Parece-me haver uma insuperável objeção à ideia de unidade absoluta, e ela é a da bem pouca resistência sofrida pelos corpos celestes nas suas revoluções pelo espaço, resistência agora verificada, é verdade, como existente em certo grau, mas que é, não obstante, tão leve a ponto de ter sido completamente desdenhada pela sagacidade do próprio Newton. Sabemos que a resistência dos corpos está principalmente com a sua densidade. A absoluta unificação é a absoluta densidade. Onde não há interespaços não pode haver passagem. Um éter absolutamente denso oporia um obstáculo infinitamente mais eficaz à marcha de um astro do que o faria um éter de diamante ou de ferro.
V. - Sua objeção é respondida com uma facilidade que está quase na razão da sua aparente irresponsabilidade. Quanto à marcha de um astro, não faz diferença se o astro passa através do éter ou se o éter através dele. Não há erro astronómico mais inexplicável do que o que relaciona o conhecido retardamento dos cometas com a ideia de sua passagem através de um éter; porque, por mais rarefeito que se suponha esse éter, oporia ele obstáculo a qualquer revolução sideral em um período bem mais breve do que tem sido admitido por aqueles astrônomos que têm tentado tratar pela rama um ponto que eles acham impossível compreender. O retardamento realmente experimentado é, por outro lado, quase igual àquele que pode resultar da fricção do éter na sua passagem instantânea através do orbe. No primeiro caso, a força retardadora é momentânea e completa dentro de si mesma; no outro, é infinitamente crescente.
P. - Mas, em tudo isso, nesta identificação da simples matéria como Deus, não haverá algo de irreverência?
V. - Pode dizer por que a matéria seria menos respeitada do que o pensamento? Mas você esquece que a matéria de que falo é, a todos os respeitos, o verdadeiro "pensamento" ou "espírito" das escolas, no que se refere às suas altas capacidades, e é, além disso a "matéria" dessas escolas ao mesmo tempo. Deus com todos os poderem atribuídos ao espírito não é senão a perfeição da matéria.
P. - Você afirma então que a matéria imparticulada em movimento é pensamento?
V. - Em geral, esse movimento é o pensamento universal da mente universal. Esse pensamento cria. Todas as coisas criadas são apenas os pensamentos de Deus.
P. - Você diz "em geral".
V. - Sim. A mente universal é Deus. Para as novas individualidades a matéria é necessária.
P. - Mas você agora fala de "espírito" e "matéria", como fazem os metafísicos.
V. - Sim, para evitar confusão . Quando eu digo espírito, significa a matéria imparticulada ou suprema; por matéria, entendo todas as outras espécies.
P. - Você dizia que "para novas individualidades a matéria é necessária".
V. - Sim, pois o espírito, existindo incorporeamente, é simplesmente Deus. Para criar seres individuais pensantes foi necessário encarnar porções do espírito divino. Por isso o homem é individualizado. Desvestido do invólucro corpóreo seria Deus. Ora, o movimento particular das porções encarnadas da matéria imparticulada é o pensamento do homem, assim como o movimento do todo é o de Deus.
P. - Diz você que desvestido do corpo o homem seria Deus?
V. - Eu não podia ter dito isso. É um absurdo.
P. - Você disse que "desvestido do invólucro corpóreo o homem seria Deus".
V. - Isto é verdade. O homem, assim despojado seria Deus, seria desindividualizado. Mas ele nunca pode ser assim despojado - pelo menos nunca será - a menos que devêssemos imaginar uma ação de Deus voltando sobre si mesma, uma ação fútil e sem objetivo. O homem é uma criatura. As criaturas são pensamentos de Deus. E é da natureza do pensamento ser irrevogável.
P.- Não compreendo. Você diz que o homem nunca se despojará do corpo?
V. - Digo que ele nunca estará sem corpo.
P. - Explique-se.
V. - Há dois corpos: o rudimentar e o completo, correspondendo às duas condições da lagarta e da borboleta. O que chamamos "morte" é apenas a dolorosa metamorfose. Nossa atual encarnação é progressiva, preparatória, temporária. A futura é perfeita, final, imortal. A vida derradeira é o fim supremo.
P. - Mas nós temos conhecimento palpável da metamorfose da lagarta.
V. - "Nós", certamente, mas não a lagarta. A matéria de que nosso corpo rudimentar é composta está ao alcance dos órgãos rudimentares que estão adaptados à matéria de que é formado o corpo rudimentar, mas não à de que é composto o corpo derradeiro. O corpo derradeiro escapa assim aos nossos sentidos rudimentares e percebemos apenas o casulo que abandona, ao morrer, a forma interior, e não essa própria forma interior; mas esta forma interior, bem como o casulo, é apreciável por aqueles que já adquiriram a vida derradeira.
P. - Você disse muitas vezes que o estado magnético se assemelha muito de perto à morte. Como é isso?
V. - Quando digo que ele se assemelha à morte, quero dizer que se parece com a vida derradeira, pois quando estou no sono magnético os sentidos de minha vida rudimentar ficam suspensos e percebo as coisas externas diretamente, sem órgãos, por um meio que empregarei na vida derradeira e inorgânica.
P.- Inorgânica?
V.- Sim. Os órgãos são aparelhos pelos quais o indivíduo é posto em relação sensível com certas categorias e formas da matéria, com exclusão de outras categorias e formas. Os órgãos do homem estão adaptados à sua condição rudimentar e a ela somente; sua condição última, sendo inorgânica, é de compreensão ilimitada em todos os pontos, exceto um: a natureza da vontade de Deus. Isto é, matéria imparticulada. Você pode ter uma ideia distinta do corpo derradeiro concebendo-o como sendo totalmente cérebro. "Ele" não é isso; mas uma concepção dessa natureza aproximará você de uma compreensão do que ele "é". Um corpo luminoso comunica vibração ao éter luminoso. As vibrações geram outras semelhantes na retina; estas, por sua vez, comunicam outras semelhantes ao nervo ótico; o nervo leva outras semelhantes ao cérebro; o cérebro também outras iguais à matéria imparticulada que o penetra. O movimento desta última é pensamento, do qual a percepção é a primeira vibração. Este é o modo pelo qual o pensamento da vida rudimentar se comunica com o mundo exterior e este mundo exterior é limitado, para a vida rudimentar, pelas reações de seus órgãos. Mas, na vida derradeira e inorgânica, o mundo exterior comunica-se com o corpo inteiro (que é de uma substância afim da do cérebro como já disse), sem nenhuma outra intervenção que não a de um éter infinitamente mais rarefeito, do que mesmo o éter luminífero e com esse éter, em uníssono com ele, todo o corpo vibra, pondo em movimento a matéria imparticulada que o penetra. É à ausência de órgãos reactivos, contudo, que devemos atribuir a quase ilimitada percepção da vida derradeira. Para os seres rudimentares os órgãos são as gaiolas necessárias para encerrá-los até que estejam emplumados.
P. - Você fala de seres rudimentares. Há outros seres rudimentares e pensantes além do homem?
V. - A conglomeração numerosa de matéria dispersa em nebulosas, planetas, sóis e outros corpos que nem são nebulosa, nem planetas, tem como único fim suprir o pabulam para a reação dos órgãos de uma infinidade de seres rudimentares. Sem a necessidade do rudimentar, anterior à vida derradeira, não teria havido corpos tais como esses. Cada um deles é ocupado por uma distinta variedade de criaturas orgânicas, rudimentares e pensantes. Em todas, os órgãos variam com os característicos do habitáculo. Na morte ou metamorfose, estas criaturas, gozando da vida derradeira da imortalidade - e conhecedoras de todos os segredos, menos o único, operam todas as coisas e se movem por toda a parte por simples ato de vontade. Habitam, não as estrelas, que para nós parecem as únicas coisas tangíveis e para conveniência, cegamente cremos que o espaço foi criado, mas o próprio espaço, esse infinito cuja imensidão verdadeiramente substantiva absorve as sombras estelares, apagando-as como não entidades da visão dos anjos.
P. - Você diz que "sem a necessidade da vida rudimentar” não teria havido estrelas. Mas qual a razão dessa necessidade?
V. - Na vida inorgânica, bem como geralmente na matéria inorgânica, nada há que impeça a ação de uma lei simples e única: a Divina Vontade. Com o fim de criar um empecilho, a vida orgânica e a matéria (complexas, substanciais e oneradas por leis ) foram criadas.
P. - Mais ainda, que necessidade havia de criar esse empecilho?
V. - O resultado da lei inviolada é perfeição, justiça, felicidade negativa. O resultado da lei violada é imperfeição, injustiça, dor positiva. Por meio dos empecilhos produzidos pelo número, complexidade e substancialidade das leis da vida orgânica e da matéria, a violação da lei se torna, até certo ponto, praticável. Esta dor, que na vida inorgânica é impossível, torna-se possível na orgânica.
P. - Mas em vista de que resultado bom se torna possível a dor?
V. - Todas as coisas são boas ou más por comparação. Uma análise suficiente mostrará que o prazer, em todos os casos é apenas o contraste da dor. Prazer positivo é mera ideia. Para ser feliz até certo ponto, devemos ter sofrido na mesma proporção. Jamais sofrer equivaleria a não ter jamais sido feliz. Mas está demonstrado que na vida inorgânica a dor não pode existir; daí a necessidade da dor para a vida orgânica. A dor da vida primitiva da terra é a única base da felicidade da derradeira vida no Céu.
P. - Contudo, ainda há uma de suas expressões que não acho possibilidade de compreender: "a imensidão verdadeiramente substantiva do infinito".
V. - É provavelmente, porque não tem a concepção suficientemente genérica do próprio termo substância. Não devemos olhá-la como uma qualidade, mas como um sentimento: é a percepção, nos seres pensantes, da adaptação da matéria à organização deles. Há muitas coisas sobre a Terra que seriam nada para os habitantes de Vénus; muitas coisas visíveis e tangíveis em Vénus que não poderíamos ser levados a apreciar como absolutamente existentes. Mas para os seres inorgânicos - para os anjos - o todo da matéria imparticulada é substância, isto é, o todo do que chamamos "espaço" é para eles a mais verdadeira substancialidade; os astros, entretanto, do ponto de vista de sua materialidade, escapam ao sentido angélico, justamente na mesma proporção em que a matéria imparticulada, do ponto de vista de sua imaterialidade, escapa ao sentido orgânico.
Mas quando se aventurou ele a insultar-me, jurei vingar-me. Vós, que tão bem conheceis a natureza de minha alma, não havereis de supor, porém, que proferi alguma ameaça. Afinal, deveria vingar-me. Isso era um ponto definitivamente assentado, mas essa resolução, definitiva, excluía ideia de risco. Eu devia não só punir, mas punir com impunidade. Não se desagrava uma injúria quando o castigo cai sobre o desagravante. O mesmo acontece quando o vingador deixa de fazer sentir sua qualidade de vingador a quem o injuriou.(…)
Se é a brincadeira que faz engordar ou se há algo na própria gordura que predispõe à pilhéria, nunca fui capaz de determiná-lo totalmente, mas o certo é que um trocista magro é uma rara avis in terris.
O tempo que é muito mais lento de passar nas cortes que em qualquer outra parte.
(…) tinha o cacoete de chamar de "esquisito" tudo quanto além de sua compreensão e por isso vivia em meio duma completa legião de "esquisitices"
- O menino a quem me refiro ganhava todas as bolas da escola. Tinha ele, sem dúvida algum meio de adivinhação e este consistia na simples observação e comparação da astúcia de seus adversários.
- Uma identificação do intelecto do raciocinador com o de seu antagonista-disse eu
Quando perguntei ao menino por que era efetuada aquela perfeita identificação na qual consistia seu êxito, recebi a resposta que se segue: “Quando eu quero descobrir quando alguém é sensato, ou estúpido, ou bom, ou perverso, ou quais são seus pensamentos no momento, componho a expressão de meu rosto, tão cuidadosamente quanto possível, de acordo a expressão dele, e então espero ver que pensamentos ou sentimentos são despertados na minha mente ou no meu coração, como para se equiparar ou corresponder à "minha fisionomia"
- E a identificação - disse eu - do intelecto do raciocinador com o de seu adversário depende, se bem o compreendo, da exatidão com que é apreciado o intelecto do adversário.
- Para seu valor prático, depende efetivamente disso -respondeu Dupin -, e se o Chefe de Polícia e a sua corte são frequentemente mal sucedidos é, primeiro, por falta dessa identificação, e, em segundo lugar, pela má apreciação, ou antes, não apreciação do intelecto com que se estão medindo. Consideram somente as suas próprias ideias engenhosas e, na procura do oculto, só cuidam dos meios de que eles se teriam servido ocultá-lo. Têm bastante razão nisto de ser sua própria engenhosidade uma representação fiel da massa; mas quando a astúcia do malfeitor é particular, é de caráter diverso da deles, o malfeitor naturalmente os "enrola". Isso sempre acontece quando essa astúcia está acima da deles e, muito comumente, quando está abaixo. Eles não variam de princípios em suas investigações; no máximo, quando premidos por alguma emergência insólita, por alguma recompensa extraordinária, ampliam ou exageram seus velhos métodos de ação, sem mexer-lhes nos princípios.
Toda a ideia pública, toda convenção aceite é uma tolice, porque conveio ao número maior.
- Contesto a eficácia, e portanto o valor, daquele raciocínio que se cultiva por qualquer forma especial que não seja a lógica abstrata. Contesto, em particular, o raciocínio deduzido pelo estudo matemático. As matemáticas são a ciência da forma e da quantidade; o raciocínio matemático é simplesmente lógico se aplicado à forma e à quantidade. O grande erro está em supor que mesmo as verdades do que se chama álgebra pura são verdades gerais ou abstratas. E esse erro é tão evidente que me espanta a universalidade de sua aceitação. Os axiomas matemáticos não são axiomas de verdade geral. O que é uma verdade de relação (de forma e quantidade) é muitas vezes enormemente falso, com respeito à moral, por exemplo.
Nesta última ciência, é muito comumente inverídico que a soma das partes seja igual ao todo. Também na química esse axioma falha. Na apreciação de motivos, falha, porque dois motivos, cada um de um dado valor, não têm, necessariamente, quando unidos, um valor igual à soma de seus valores separados. Há numerosas outras verdades matemáticas que só são verdades dentro dos limites da relação. Mas os matemáticos mentem com suas verdades finitas pelo hábito, como se elas fossem de uma aplicabilidade absolutamente geral, tal como o mundo em verdade imagina que sejam.
Bryant, em sua mui erudita Mitologia menciona uma outra fonte análoga de erro quando diz que, embora as fábulas pagãs não sejam criadas, esquecemo-nos, contudo, continuamente, e tiramos deduções delas como de realidades existentes. Entre os algebristas, porém, que são igualmente pagãos, as fábulas pagãs" são criadas, e as inferências são feitas, não tanto de falta de memória como por causa de uma inexplicável perturbação do cérebro.
Em suma, nunca encontrei um simples matemático em quem pudesse ter confiança fora das raízes quadradas, nenhum que, clandestinamente, não mantivesse, como um ponto de fé que x2+px era absoluta e incondicionalmente igual a q.
Diga a algum desses cavalheiros, só para experimentar, se lhe aprouver, que você acredita possam ocorrer ocasiões em que x2 + px não seja igual a q, e tendo feito com que ele compreenda o que você quer dizer, coloque-se fora de seu alcance, com toda a rapidez conveniente, pois sem dúvida ele tentará atirá-lo ao chão.
Há um jogo de adivinhação que se exerce sobre um mapa. Um parceiro, que joga, pede ao outro para descobrir uma dada palavra, um nome de cidade, rio, estado ou império; qualquer palavra, em suma, sobre a matizada e intrincada superfície do mapa. Um novato no jogo procura, geralmente, embaraçar os seus parceiros dando-lhes os nomes de letras mais miúdas, o veterano escolhe palavras de grandes caracteres que se estendem de uma extremidade a outra do mapa. Estes, como os letreiros e tabuletas de rua, com grandes letras, escapam à observação por serem excessivamente evidentes.
(…)Digo que a similaridade dessa coincidência deixou-me estupefacto por algum tempo. Tal é o efeito comum de coincidências tais. A mente luta para estabelecer uma relação, uma sequência de causa e efeito e, sendo incapaz de fazê-lo, experimenta uma espécie de paralisia temporária. Mas quando voltei a mim desse estupor(…)
As faculdades do espírito, denominadas analíticas, são , em si mesmas, bem pouco suscetíveis de análise. Apreciamo-las somente em seus efeitos. O que delas sabemos, entre outras coisas, é que são sempre, para quem as possui em grau extraordinário, fonte do mais intenso prazer. Da mesma forma que o homem forte se rejubila com suas aptidões físicas, deleitando-se com os exercícios que põem em atividade seus músculos, exultam os analistas com essa atividade espiritual, cuja função é destrinçar enredos. Acha prazer até mesmo nas circunstâncias mais triviais desde que ponham em jogo seu talento. Adora os enigmas , as advinhas, os hieróglifos, exibindo nas soluções de todos eles um poder de acuidade, que, para o vulgo, toma o aspecto de coisa sobrenatural. Seus resultados, alcançados apenas pela própria alma e essência, têm, na verdade, ares de intuição.
Essa faculdade de resolução é, talvez, bastante revigorada pelo estudo da matemática (…)
(…) os mais altos poderes do intelecto reflexivo põem-se mais decidida e mais utilmente à prova no modesto jogo de damas do que em todas as complicadas frivolidades do xadrez. Neste último jogo, em que as peças têm movimentos diferentes e estranhos, com diversos e variados valores, o que é complexo - erro bastante comum - se confunde com o que é profundo. A atenção é nele posta poderosamente em jogo. Se ela se distrai por um instante, comete-se um erro que resulta em perda ou em derrota.
Como os movimentos possíveis não são somente múltiplos, como também intrincados, as possibilidades de tais enganos se multiplicam. E em nove casos dentre dez é o jogador mais atento, e não mais hábil, quem ganha. No jogo de damas, pelo contrário, os movimentos que são únicos e pouco variam, as probabilidades de engano ficam diminuídas e, a atenção não estando de todo absorvida, todas as vantagens obtidas pelos jogadores só o são graças a uma perspicácia superior.
Concretizando o que dissemos, suponhamos um jogo de dama em que as pedras fiquem reduzidas a quatro damas, e onde, sem dúvida, não se deve esperar engano algum. É evidente que aqui a vitória pode ser decidida - estando as duas partes em iguais condições - somente por algum movimento muito hábil, resultado dum forte esforço intelectual. Privado dos recursos habituais, o analista coloca-se no lugar de seu adversário, identifica-se com ele não poucas vezes descobre, num simples relance de vista, o único meio - às vezes absurdamente simples - de induzi-lo a um erro ou precipitálo num cálculo errado.
Observar atentamente equivale a recordar com clareza.
(…) Mas é nas questões acima dos limites da simples regra que se evidencia o talento do analista. Em silêncio, faz ele uma série enorme de observações e inferências. O mesmo talvez façam seus parceiros e a diferença de extensão das informações obtidas não se encontra tanto na validade da dedução como na qualidade da observação. O necessário é saber o que se tem de observar. Nosso jogador não se confina no seu jogo, nem rejeita deduções nascidas de coisas externas ao jogo, somente porque é o jogo o seu objetivo do momento.
Examina a fisionomia do parceiro, comparando-a cuidadosamente com a de cada um de seus adversários. Considera a maneira pela qual são arrumadas as cartas em cada mão; e muitas vezes conta pelos olhares lançados pelos seus possuidores às suas cartas, os trunfos e figuras que têm. Nota cada movimento do rosto, à medida que o jogo se adianta, coligindo um cabedal de ideias, graças às diferenças fisionômicas indicativas de certeza, surpresa, triunfo, ou pesar. Da maneira de recolher uma vasa, adivinha se a pessoa pode fazer outra da mesma espécie. Reconhece um jogo fingido da maneira com que é lançada a carta na mesa. Uma palavra casual ou inadvertida, uma carta que cai acidentalmente, ou que é virada, e o consequente olhar de ansiedade ou despreocupação com que é apanhada, a contagem das vasas pela sua ordem de arrumação, embaraço, a hesitação, a angústia ou a trepidação, tudo isso são sintomas para sua percepção aparentemente intuitiva, do verdadeiro estado das coisas. Realizadas as duas ou três primeiras jogadas, está ele na posse completa das cartas que estão em cada mão e portanto, joga as suas cartas com uma tão absoluta precisão como se o resto dos jogadores houvesse mostrado as suas.
O poder analítico não se deve confundir com a simples engenhosidade porque, se bem que seja o analista necessariamente engenhoso, muitas vezes acontece que o homem engenhoso é notavelmente incapaz de análise. (…) Entre o engenho e a habilidade analítica existe uma diferença muito maior, na verdade, do que entre a fantasia e a imaginação, mas de caráter estritamente análogo.
Verificar-se-á, com efeito, que os homens engenhosos são sempre fantasistas e os verdadeiramente imaginativos são, por sua vez, sempre analíticos.
(…)Enfraquecia sua visão, por aproximar demasiado o objeto. Podia ver, talvez, um ou dois pontos com uma clareza maravilhosa, mas, ao assim fazer, perdia necessariamente de vista o caso em seu conjunto total. Tal é o que acontece quando se é demasiado profundo. A verdade não está sempre dentro dum poço. (…)
É pelos cumes, acima do plano ordinário, que a razão tacteia seu caminho.
Devemos recordar-nos de que, em geral, o objectivo dos nossos jornais é antes criar uma sensação, lavrar um tento, do que favorecer a causa da verdade. Este último fim só é visado quando parece coincidir com os primeiros. O órgão de imprensa que simplesmente se ajusta às opiniões comuns (por mais bem fundadas que possam essas opiniões ser) adquire para si o descrédito da população. A massa popular olha como profundo apenas quem lhe sugere contradições agudas - ideias generalizadas. Na lógica, não menos do que na literatura - é o epigrama que se torna mais imediata e mais universalmente apreciado. E em ambas está na mais baixa ordem de merecimento.
O corpo humano em geral, não é muito mais denso nem muito menos denso do que a água; isto é, a gravidade especifica do corpo humano, é quase igual à massa de água doce que ele desloca. Os corpos das pessoas gordas e carnudas, de ossos pequenos, e os das mulheres, geralmente, são menos densos do que os da pessoas magras, de ossos compridos, e os dos homens; a gravidade específica da água de um rio é um tanto influenciada pela presença do fluxo marítimo. Mas, deixando a maré de parte, pode-se dizer que muito poucos corpos humanos se afundarão completamente mesmo na água doce, por si mesmos. Quase todos, caindo num rio serão capazes de flutuar, se deixam que a gravidade específica da água perfeitamente se coloque em equilíbrio com a sua própria isto é, se suportam que sua pessoa fique imersa inteiramente, com a mínima exceção possível.
A posição mais conveniente para quem não sabe nadar é a posição erecta de quem anda em terra, com cabeça completamente atirada para trás e imersa, só permanecendo à tona a boca e as narinas. Em tais circunstâncias, acharemos que flutuamos sem dificuldade e sem esforço. É evidente, contudo, que as gravidades do corpo e da massa de água deslocada são muito delicadamente equilibradas, e que uma ninharia pode fazer com que uma delas predomine. Um braço, por exemplo, erguido fora da água e assim privado de seu suporte equivalente, é um peso adicional suficiente para imergir toda a cabeça, ao passo que a ajuda casual do menor pedaço de madeira habilitar-nos-á a elevar a cabeça, para olhar em derredor.
Ora, nos esforços de alguém não acostumado a nadar os braços são invariavelmente atirados para o alto, ao mesmo tempo que se faz uma tentativa para conservar a cabeça em sua habitual posição perpendicular. O resultado é a imersão da boca e das narinas, e a introdução de água nos pulmões durante os esforços para respirar, enquanto sob a superfície. Muita água é também recebida pelo estômago e o corpo inteiro se torna mais pesado, dada a diferença entre o peso do ar que primitivamente distendia aquelas cavidades e o do fluido que então as enche . A diferença é suficiente para levar o corpo a afundar-se, como regra geral; mas é insuficiente no caso de indivíduos de ossos pequenos e anormal quantidade de matéria flácida ou gorda. Tais indivíduos flutuam mesmo depois de afogados.
Supondo-se que o cadáver esteja no fundo do rio, ele ali permanecerá até que, por algum meio, sua gravidade específica de novo se torne menor do que a do volume de água que ele desloca. Este efeito é provocado quer pela decomposição, quer por outro meio. O resultado da decomposição é a geração de gás, que distendem os tecidos celulares e todas as cavidades e dá ao cadáver o aspecto de inchado, que é tão horrível. Quando essa distensão se avolumou de modo que o volume do cadáver é sensivelmente aumentado sem correspondente aumento da massa, sua gravidade específica torna-se menor do que a da água deslocada e ele aparece imediatamente à superfície.
Mas a decomposição é modificada por inúmeras circunstâncias, é apressada ou retardada por inúmeros agentes. Por exemplo, pelo calor ou pelo frio da estação, pela impregnação mineral ou pureza da água, pela sua maior ou menor profundidade, pela corrente ou estagnação, pela temperatura do corpo, pela sua infecção, ou ausência de doença antes da morte.
Assim é evidente não podemos marcar o tempo, com exatidão, para que o cadáver se eleve, em consequência da decomposição. Sob certas circunstância esse resultado poderá processar-se dentro de uma hora; sob outras, pode não se realizar de modo algum.
Há infusões químicas por meio das quais o sistema animal pode ser preservado para sempre da corrupção. O bicloreto de mercúrio é uma delas. Mas, separadamente da decomposição, pode haver, e geralmente há, uma geração de gás dentro do estômago, pela fermentação acética de matérias vegetais (ou dentro de outras cavidades e por outras causas,), suficiente para originar uma distensão que trará o corpo à tona.
O efeito produzido por um tiro de um canhão sobre o local onde o cadáver se encontra é o de simples vibração. Pode fazer o cadáver desprender-se da lama mole, ou da vasa em que está atolado, permitindo assim que ele se eleve, quando outros agentes já o prepararam para assim fazer; ou pode vencer a tenacidade de algumas porções putrescentes do tecido celular, permitindo que as cavidades se distendam sob a influência do gás.
Demonstrei como acontece que o corpo de um homem que se afoga se torna especificamente mais pesado do que seu volume de água, e que ele não afundará absolutamente, a não ser que lute, elevando os braços acima da superfície da água, e faça esforços para respirar, enquanto se acha debaixo de água, esforços que substituem por água o lugar do ar nos pulmões. Mas esta luta e estes esforços não ocorrem nos corpos "atirados dentro da água logo depois de uma morte violenta. De modo que, neste último caso, o corpo, em regra geral, não afundará absolutamente.
Quando a decomposição alcançou um ponto bem adiantado, quando a carne já se despregou dos ossos em grande parte, então, de facto, mas não até então, nós vemos o cadáver desaparecer.
Eu desejaria observar aqui que muito do que é rejeitado como prova de um tribunal é a melhor evidência para a inteligência. Porque o tribunal, guiando-se pelos princípios gerais de prova - os princípios reconhecidos e livrescos - mostra-se adverso a inclinar-se em favor de provas particulares. E esta firme adesão aos princípios, com severo desprezo da excepção contraditória, é a maneira segura de atingir o máximo de verdade atingível em uma longa consequência de tempo. A prática, em massa, é, por isso, filosófica, não é menos certo que engendra vasto erro individual.
É erro comum, em investigações, limitar a pesquisa ao imediato, com total desprezo pelos acontecimentos colaterais ou circunstâncias. É mau costume dos tribunais confinar a instrução e discussão nos limites da relevância aparente. Contudo a experiência tem mostrado e uma verdadeira filosofia sempre mostrará que uma vasta e talvez a maior porção de verdade brota das coisas aparentemente irrelevantes. É pelo espírito desse princípio se não precisamente pela sua letra, que a ciência moderna tem resolvido calcular sobre o imprevisto. A história do conhecimento humano tem tão ininterruptamente mostrado que devemos aos acontecimentos colaterais, fortuitos ou acidentais as mais numerosas e as mais valiosas descobertas que se tornou afinal necessário, na perspectiva do progresso vindouro, fazer não somente grandes, mas as maiores concessões às invenções que surgem por acaso, e completamente fora das previsões ordinárias. Já não é filosófico basear-se sobre o que tem sido uma visão do que deve ser. O acidente é admitido como uma das subestruturas. Fazemos do acaso matéria de cálculo absoluto. Sujeitamos o inesperado e o inimaginável às fórmulas matemáticas das escolas.
Vá alguém que, sendo de coração amante da natureza, que ainda encadeado pelos deveres ao calor e ao pó da grande cidade, vá esse alguém tentar, mesmo durante os dias da semana, saciar sua sede de solidão entre os panoramas de encanto natural que de perto nos circundam. A cada passo encontrará o feitiço nascente, rompido pela voz ou pela intromissão pessoal de algum rufião ou bando de vadios embriagados. Buscará o recolhimento entre as mais densas folhagens, mas tudo em vão. Estão ali os próprios esconderijos, em que a ralé é mais abundante, esses são os templos mais profanados. Com angústia no coração, o passeante voará de volta à poluída Paris, latrina de poluição menos imprópria, porque menos odiosa. Mas se a vizinhança da cidade é tão frequentada durante os dias de trabalho da semana, quanto mais não o será aos domingos! É especialmente então que, libertada das cadeias do trabalho, ou privadas das costumeiras oportunidades para o crime, a vadiagem da cidade busca-lhe os arredores, não pelo amor do campo, que no íntimo ela despreza, mas como um meio de escapar às restrições e convencionalismos sociais.
Deseja menos o ar fresco e as árvores verdejantes do que a extrema licença campestre. Ali, na estalagem, à beira da estrada ou sob a folhagem das árvores, ela se entrega, sem ser refreada por qualquer olhar, excepto o de seus alegres companheiros, a todos os loucos excessos de uma hilaridade contrafeita, produto conjunto da liberdade e da aguardente.
Não há no meu coração nenhuma fé no sobrenatural. Que a Natureza e Deus sejam dois, nenhum homem que pensa poderá negá-lo. Que este, criando aquela, pode, à vontade, controlá-la, ou modificá-la, é também incontestável. Digo "à vontade", pois a questão é de vontade, e não de poder, como certos lógicos absurdos o têm suposto. Não é que a Divindade não possa modificar suas leis, mas nós a insultamos imaginando uma possível necessidade de modificação. Na sua origem essas leis foram feitas para abarcar todas as contingências que poderiam fazer no futuro. Com Deus tudo é presente.
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