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Joseph Conrad - O Coração das Trevas
Numa queda de curvatura imperceptível, o Sol desceu e, de branco-incandescente passou a vermelho-turvo, sem raios nem calor, como se fosse ficar apagado de repente e ferido de morte, ao tocar aquela escuridão caída em peso sobre a humanidade.
(…) Na maré do rio Tamisa que grandezas não vogaram até ao mistério das terras desconhecidas!... Sonhos de homem, sementes de domínio, gérmenes de impérios.
O que nos salva é a eficiência - a devoção pela eficiência.
(…) Mas aquela gente não tinha lá grande préstimo, na verdade. Não era colonizadora: ao que suponho, o seu império era espremer e mais nada. Conquistadora era, e para isso há que ter força bruta - coisa que não devemos gabar, quando existe, pois não passa de mero acidente e resulta da fraqueza alheia. Deitavam a mão ao que podiam, só pelo gosto de possuir. Nada mais do que roubo violento, crime agravado pela sua grande escala e os homens a ceder-lhe como cegos - vulgar atitude dos que têm de enfrentar as trevas.
A conquista da terra (na maior parte dos casos roubá-la aos de cor diferente ou nariz mais achatado) não será bonita coisa se olhada de muito perto. Só a ideia que ela implica consegue redimi-la. A ideia que a sustenta; não sentimental pretexto, mas ideia; e uma fé desinteressada nessa ideia-qualquer coisa que pode ser erguida e venerada, a que podemos oferecer um sacrifício...
No rio deslizavam chamas, minúsculas chamas verdes, chamas vermelhas, chamas brancas que perseguiam, ultrapassavam, juntavam, cruzavam - acabando por separar-se devagar ou cheias de pressa. O tráfego da grande cidade que se estendia cada vez mais, pela noite fechada e sobre as águas do rio sem sono.
(…) De especial tinha um rio, enormíssimo rio que podíamos ver no mapa e parecia uma cobra imensa desenrolada, com a cabeça no mar e o corpo em torcido repouso numa região ampla, rabo a perder-se nas profundezas do território. Quando eu olhei para esse mapa na montra de uma loja fascinou-me como a serpente que fascina um pássaro - um passarinho pateta.
(…) Lá dentro a luz era fraca e o espaço atravancado com uma mesa pesada. De trás desse monumento chegava-me uma sugestão de gordura pálida, metida num fraque. O grande homem em pessoa. Calculo que media cerca de cinco pés vírgula seis de altura e desse à manivela a muitos milhões.
(…) "Não sou tão doido como pareço", dizia Platão aos seus discípulos, foi a sentenciosa resposta que me deu ao despejar o copo com um gesto decidido.
O velho médico tomou-me o pulso mas estava a pensar, evidentemente, noutra coisa. Com uma certa vivacidade, quis saber se eu o autorizava a tirar medidas à minha cabeça. Um tanto surpreendido respondi que sim, e então rapou de um compasso e tirou-me medidas da nuca e da testa e dos lados, apontando-as conscienciosamente. Era um homenzinho de barba mal feita, metido numa espécie de gabardina puída e com os pés calçados em chinelos, que me pareceu um inofensivo maluquinho. "No interesse da ciência, costumo pedir sempre para tirar as medidas cranianas dos que partem", explicou. - "E quando voltam, também?", perguntei. -"Oh! Nunca os vejo", observou, "aliás, as alterações são por dentro, não sei se sabe." Sorriu, como se fosse um gracejo amável. "Com que então, vai para lá. Famoso. Direi mesmo que interessante." Deitou-me um olhar investigador e tomou mais uma nota. "Na sua família nunca houve casos de loucura?", perguntou no mais natural dos tons. Fiquei aborrecidíssimo. - "Também faz essa pergunta no interesse da ciência?" - "Talvez" respondeu, sem ligar à minha irritação, "à ciência interessa observar as alterações mentais dos indivíduos quando elas se dão, mas...", Cortei-lhe a palavra: "O senhor é alienista?" - "Todos os médicos deviam sê-lo... um pouco", respondeu-me aquele original, imperturbável. "Tenho uma teoriazinha; e vocês Messieurs que para lá vão deviam ajudar-me a prová-la. Seria a parte que me cabe entre as vantagens que a minha pátria colhe com a posse de uma colónia tão magnificamente dependente. Quanto à riqueza propriamente dita, deixo-a aos outros. Desculpe-me as perguntas, mas o senhor é o primeiro inglês que observo..." Apressei-me a garantir-lhe que não era nada típico. "Se o fosse", acrescentei, "não estaria aqui a conversar consigo. - "Será profundo o que me diz, mas provavelmente errado", respondeu com um sorriso. "Evite irritações, ainda mais do que o sol. Adieu. Vocês, ingleses, como é que dizem? Good-bye. Isso mesmo. Good-bye. Adieu. Nos trópicos, acima de tudo deve manter-se a calma..." Levantou um dedo, como quem advertia... "Du calme, du calme. Adieu."
(…) Durante as confidências bem claro ficou que tinha feito a minha descrição à mulher do alto dignitário, e Deus sabe a quantas mais pessoas, transformando-me em excepcional e bem dotada criatura- um grande achado para a Companhia (…) Deus santíssimo! Eu que só ia tomar conta de um reles vapor fluvial de meia-tigela e com um apito de trazer por casa! (…) Seria qualquer coisa como uma espécie de emissário da luz, qualquer coisa como um apóstolo de segunda. Naquele tempo era doença que andava na moda, quer em letra de forma, quer na linguagem falada, e a excelente senhora, que vivia no meio dessas aldrabices, perdera a cabeça. Falou-me em libertar milhões de ignorantes dos seus horrorosos costumes, ao ponto, palavra de honra, de eu começar a sentir-me pouco à vontade. Atrevi-me a sugerir que o objectivo da Companhia era ter lucros. "Meu querido Charlie, estás a esquecer-te de que o obreiro tem sempre a sua recompensa"(…)
Bem estranha é a forma de as mulheres fugirem à realidade. Vivem num universo muito seu, e nunca houve nem haverá nada que seja possível comparar-lhe. Nele tudo é bonito demais e, se as obrigassem a pô-lo de pé, cairia de pantanas antes de o dia terminar. Bastariam algumas das realidades com que nós, homens, andamos em contenda desde a criação do mundo, para ruir tudo de cima a baixo.
É estar debruçado para um enigma, observar uma costa à medida que desliza ao longo do navio. Lá estava ela - risonha, macambúzia, convidativa, grandiosa, medíocre, insípida ou selvagem, mas sempre calada e com ar de quem nos diz um segredo: Vem cá e adivinha! Mas aquela, no entanto, quase não tinha feições, era como que informe e cheia de monótona gravidade. Orla de floresta colossal, de um verde tão escuro que parecia negra, franjada de espuma branca e a correr direita, como traçada a régua até longe, muito longe, num mar azul de cintilação esfumada em névoas rastejantes. Era feroz, o sol, e a terra parecia luzir e escorrer vapor. Aqui e além, pequenas manchas cinzento-esbranquiçadas formavam cachos na altura da rebentação, às vezes com uma bandeira a tremular por cima. Implantações velhas de séculos e não maiores do que a cabeça de um alfinete na extensão de terra virgem que lhes servia de fundo.
De vez em quando a voz das ondas era um verdadeiro prazer, como um falar de irmão. Continha qualquer coisa de genuíno, uma razão de ser, um significado. De vez em quando uma embarcação vinda de terra criava um momentâneo contacto com a realidade. Eram pagaias conduzidas por negros. Já de longe se lhes via o branco dos olhos. Gritavam, cantavam; os corpos escorriam suor e os rostos pareciam máscaras grotescas - eram assim, aqueles tipos, embora bem lançados e musculosos, com vitalidade selvagem, uma energia de movimentos intensa, tão natural e genuína como o rebentar das ondas ao longo da costa. Não precisavam de justificar a sua presença. Olhá-los era um grande consolo. Durante algum tempo ainda tive a sensação de pertencer a um mundo de realidades honestas, mas não durou muito.
Já vi o demónio da violência, e o demónio da cupidez, e o demónio do desejo incendiado; mas - por todas as estrelas do céu! - eram demónios fortes, vigorosos, com olhar vermelho, que dominam e atiçam homens - digo homens, reparem lá bem. Ao passo que durante o tempo que estive na encosta, à luz ofuscante do sol daquela terra, pressenti que iria conhecer o flácido e pretensioso demónio, o demónio cegueta, louco de impiedade e ambição. Que insidioso poderia também ser (…)
(…)Tive de evitar uma grande cova artificial que alguém escavara na ribanceira e cuja função foi impossível descobrir. Não era pedreira nem areeiro. Só uma cova. Associada, talvez, ao filantrópico desejo de oferecer a condenados qualquer coisa que os ocupasse.(…)
Deitadas ou sentadas entre as árvores, sombras negras encostavam-se aos troncos e confundiam-se ou destacavam-se do chão, meio apagadas na semiluz e em todas as atitudes de sofrimento, abandono e desespero. Na encosta pedregosa, outro rebentamento fez um leve tremor de terra debaixo dos meus pés. O trabalho continuava. O trabalho! Naquele sítio é que se recolhiam, para morrer, alguns homens que o faziam. E morriam devagar - via-se bem. Não eram inimigos, nem condenados, agora não eram nada além de sombras negras de doença e fome que jaziam, numa confusão, dentro de obscuridade esverdeada. Trazidos de todos os recantos da costa e a coberto da maior legalidade dos contratos, perdidos num meio adverso e alimentados de forma estranha ao seu regime, caíam doentes, faziam-se inúteis, altura em que eram autorizados a procurar de rastos o repouso. Aquelas formas moribundas faziam-se livres como o ar, e quase tão leves como ele. Comecei a distinguir-lhes o brilho dos olhos sob as árvores. E depois em baixo, ao nível da minha mão, um rosto. Era um esqueleto negro estendido, de ombro apoiado numa árvore e encovados olhos que olhavam para cima, muito devagar, fixavam-se em mim enormes, vazios, como se fossem um clarão cego e branco de órbitas fundas que se iam apagando. Um negro parecia jovem - quase um rapaz - mas vocês sabem como é difícil afirmá-lo. Só me ocorreu oferecer-lhe, tirada do meu bolso, uma bolacha do navio do meu amigo sueco. Vagarosos, os dedos fecharam-se e agarraram-na - e não houve mais nenhum movimento, nenhum olhar. Usava um fio de lã branca amarrado ao pescoço - porquê? Onde o arranjara? Seria um distintivo - adereço - amuleto - acto propiciatório? Teria uma ideia qualquer associada? Era surpreendente ver-se aquele fio branco de além-mar a rodear-lhe o pescoço negro. Ao pé da mesma árvore sentavam-se mais duas trouxas de ângulos agudos e pernas dobradas. Uma pousava o queixo nos joelhos e fixava o vazio com um olhar insuportável que intimidava; e o seu irmão espectral apoiava neles a testa, como que vencido por uma grande fadiga; outras havia, por ali, em toda a espécie de contorcidas posições e em colapso como se vêem nalguns quadros de morticínio ou peste. Enquanto o horror me paralisava, uma levantou-se, ficou apoiada nas mãos e nos joelhos e foi ao rio beber de gatas. Bebeu da mão, sentada ao sol, com as tíbias cruzadas à frente, e passados instantes deixou pender sobre o peito a cabeça revestida de carapinha.
(…) meteu-me respeito. Sim; respeitei-lhe o colarinho, os grandes punhos, o cabelo bem penteado. Realmente tinha o ar de um manequim de cabeleireiro, e a enorme desmoralização da colónia não conseguia tirar-lhe o gosto pela boa aparência. Ora a isto chama-se personalidade. Os colarinhos engomados e os peitilhos tesos eram provas de grande carácter. Vivendo ali há perto de três anos, não evitei perguntar-lhe como podia alimentar o hábito de vestir roupa tão branca. Cheio de modéstia e com um rubor quase imperceptível respondeu: - "Ensinei uma das mulheres indígenas do posto. Foi difícil. Não mostrava o menor interesse pelo trabalho." Aquele homem, todo dedicado aos livros e autor de uma escrita primorosa, realizara na verdade qualquer coisa.
(…) um batuque ao longe, mais alto, mais baixo, vasto mas indistinto eco, rumor agoirento mas apelativo, sugestivo e bárbaro - e talvez de significado tão profundo como um som de sinos em terra cristã.
(…) Noutra ocasião foi um homem branco de farda desabotoada que acampava no caminho com uma escolta armada de zanzibares magros, muito hospitaleiro e festivo - para não dizer bêbado. Olhava pela conservação da estrada, explicou ele. Não posso, no entanto, dizer que tenha visto qualquer estrada ou conservação de estrada, a não ser que o corpo de um negro de meia-idade encontrado três milhas adiante com um orifício de bala na testa, possa considerar-se melhoramento viário.
O meu primeiro encontro com o administrador (…) Mas era um simples comerciante, via-se bem, desde muito novo empregado naquelas terras - e mais nada. Obedecido sem inspirar estima nem medo, e ainda menos respeito. Só inquietava. Isso mesmo! Inquietava. Não uma desconfiança bem nítida - mas verdadeira inquietação e mais nada. Não podem fazer ideia de como esta... esta... faculdade resulta. Não tinha capacidade de organização, iniciativa ou mesmo ordem. Era evidente em coisas como o estado deplorável do posto. E também não era culto nem inteligente. Arranjara... aquela posição de administrador - como? Talvez por nunca ter adoecido... Tinha lá cumprido três períodos de três anos... Porque a saúde triunfante é em si mesma uma força no meio de um descalabro geral de compleições físicas. Quando ia a casa de licença fazia um estardalhaço dos diabos - pomposo ao máximo. Exuberância de marujo - mas com uma diferença -, toda ela aparência. O que aliás se detectava uma vez por outra nas suas conversas. Não criara nada, mantinha-se no deixa-andar da rotina - e pronto. Mas era grande. Grande por essa pequena coisa que é não sabermos dizer como poderia controlar-se um tal homem. Nunca revelou o seu segredo. Talvez não houvesse nada dentro dele. E semelhante suspeita fazia-nos calar - num sítio onde não existia nenhuma espécie de vigilância exterior. (…) Sentia-se que uma das suas inabaláveis certezas era esta. Não mostrava delicadeza nem indelicadeza. Calava-se. E permitia que o seu moleque - jovem negro da costa, superalimentado - nas suas barbas tratasse os brancos com provocatória insolência.
A palavra marfim, passava no ar segredada, suspirada. Parecia que lhe faziam preces. Um cheiro a imbecil rapacidade bafejava tudo como um cheiro a cadáver.
O barracão não passava de um braseiro furiosamente incandescente. Ali perto espancavam um negro. Diziam, sabe-se lá porquê, que era o causador do incêndio; certo é que ele dava horrorosos gritos. Durante vários dias iria vê-lo com ar de muito doente, sentado num pedaço de sombra a procurar refazer-se; acabou por se levantar, desaparecer - e o mato por abrigá-lo, sem fazer nenhum ruído, no seu seio.
Para lá da sebe ficava a floresta espectral ao luar, e acima dos ruídos surdos, dos sons amortecidos que vinham do infeliz cercado, o silêncio da terra acertava-nos em cheio no coração - com o seu mistério, a sua grande amplitude, a estranha realidade da sua vida oculta.
Deixei-o ir por ali fora, àquele mefistófeles de papelão, e ao ouvi-lo pareceu-me que um dedo espetado no seu corpo só encontraria um pouco de lixo a fazer resistência.
Sabem como odeio, detesto, não tolero mentiras; não por ser melhor do que os outros mas simplesmente porque me assustam. Têm um ar fúnebre, sabem a morte - exactamente aquilo que mais odeio e detesto no mundo - o que mais quero esquecer. Deixam-me infeliz e doente como se tivesse trincado qualquer coisa podre. Ao que julgo, questão de feitio.
E tudo isto, não sei se percebem, só por pensar que ajudava de algum modo um Kurtz que eu nem sequer tinha visto. Para mim não passava de um nome. Eu via tanto como vocês o homem que se chamava assim. Vêem-no? Estão a ver-lhe a história? Vêem alguma coisa? Até parece que estou a tentar convencer-vos de um sonho - tentativa inútil porque o relato de um sonho não transmite a sensação-sonho, aquele emaranhado de absurdos e surpresas, o desespero na angústia de sermos aprisionados, a sensação de sermos presas do inacreditável que é verdadeira essência dos sonhos...
Fez um instante de silêncio.
... não, é impossível; é impossível transmitir a sensação-vida de uma época que vivemos - aquilo que constrói as suas verdades, o seu significado - a sua penetrante e subtil essência. É impossível. Vivemos como sonhamos - sós...
Não, de trabalhar não gosto. Prefiro ser calaceiro e pensar em todas as coisas belas que poderia executar. De trabalhar não gosto - nenhum homem gosta - embora goste daquilo que o trabalho dá - a oportunidade de nos descobrirmos. Refiro-me à nossa própria realidade - para nós e para os outros - que mais ninguém pode conhecer. Porque eles apenas vêem o espectáculo sem nunca estarem certos do que realmente significa.
Parada ao luar, a grande muralha de vegetação - exuberante emaranhado de troncos, ramos, folhas, rebentos e grinaldas - lembrava uma invasão violenta de silenciosa vida, uma alta onda vegetal, prestes a desabar na enseada e a varrer os homens insignificantes que éramos da sua insignificante vida. Mas não, nem se mexia.(…) Era uma vida de silêncio que não parecia ter nenhuma paz. O silêncio de uma implacável força que tramava objectivos impossíveis de penetrar. Que nos olhava com ar vingativo.
(…) Vi-o estender a pata curta de um braço, num gesto que abarcava floresta, enseada, a lama, o rio - como se em vergonhosa bravata evocasse, perante o rosto do país soalheiro, a morte secreta, o demónio oculto, um coração de profundas trevas.
Às vezes entrávamos em portos da margem, presos à orla do desconhecido, e os brancos que saíam das cubatas desmanteladas a correr e a gesticular de alegria, surpresa e boas-vindas pareciam estranhíssimos - como se um poder mágico os tivesse aprisionado ali. Durante alguns momentos a palavra marfim ressoava no ar - e depois voltávamos a entrar no silêncio, em troços desertos, a contornar calmos recantos entre muralhas altas do sinuoso caminho que repercutiam surdamente as pancadas fortes da roda da popa. Árvores e mais árvores, milhões de árvores imensas, maciças, que subiam a grandes alturas; e aos seus pés, agarrado à margem, lá se arrastava a contracorrente aquele vaporzinho enfarruscado, como um preguiçoso escaravelho que arrastasse o ventre pelo chão de um grande pórtico. Fazia-nos sentir muito pequenos, muito perdidos, mas sem conseguir deprimir-nos. Afinal de contas era pequeno, aquele escaravelho enfarruscado, mas lá se arrastava - o que ele tinha realmente de fazer. Para onde os peregrinos pensavam que fosse, não sei. Para um sítio onde esperavam encontrar qualquer coisa, aposto!
Para mim arrastava-se - pura e simplesmente em direcção a Kurtz; embora muito devagar, quando a tubagem lhe dava para ter fugas. Troços de rio abriam-se e logo se fechavam atrás de nós, como se a floresta avançasse lentamente para a água, disposta a barrar-nos o caminho de regresso. Penetrávamos mais e mais profundamente no coração das trevas. Que silêncio lá havia! Às vezes, de noite, um batuque ultrapassava a cortina de árvores, chegava ao rio e persistia muito fracamente, como se planasse bem acima das nossas cabeças até a madrugada romper. Se queria dizer guerra, paz ou prece não podíamos dizê-lo.
O alvorecer anunciava-se com a descida de uma gélida quietude; os lenhadores dormiam, as suas fogueiras tinham o fogo baixo; qualquer estalido nas ramagens nos assustava. Éramos vagabundos numa terra pré-histórica, numa terra com ar de planeta desconhecido. Podíamos imaginar-nos como primeiros homens que tomassem posse de uma herança maldita a poder de angústias profundas e desmesurado esforço. Mas de repente, na luta para vencer uma curva tínhamos visões de paredes de junco, pontiagudos telhados de capim, uma explosão de gritos, um remoinho de membros pretos, um confuso bater de mãos, de pontapés no solo, de corpos que se remexiam, de olhos fora das órbitas sob a imóvel e pesada folhagem. Lento, o vapor afadigava-se a percorrer um negro e incompreensível frémito. O homem pré-histórico amaldiçoava-nos, fazia-nos um pedido ou dava-nos boas-vindas? - Sabe-se lá! Entre nós e a compreensão daquilo que nos cercava havia uma ruptura: deslizávamos como fantasmas, secreta e maravilhosamente espantados como homens em perfeito juízo perante um animado tumulto de manicómio. Não compreendíamos por que estávamos longe demais e não podíamos lembrar-nos de nada, porque viajávamos na noite das primeiras idades, de idades que tinham passado sem deixar mais do que um vestígio - mas nenhuma memória.
A terra não parecia terrestre. Habituámo-nos à forma algemada de um monstro vencido, mas ali - ali podia ver-se qualquer coisa monstruosa e livre. Não parecia terrestre e os homens... não, desumanos não eram. Bem pior do que isso - era a suspeita de não serem desumanos. Aos poucos se chegava a tê-la. E eles gritavam, saltavam, rodopiavam e faziam caretas que eram um horror; embora nos assustasse a sensação de terem uma humanidade - igual à nossa -, a ideia de termos um parentesco remoto com aquela selvagem e apaixonada refrega. Feia. Muito feia, sim; mas fôssemos bastante homens e não deixaríamos de admitir intimamente que existe em nós um traço de simpatia embora diluído pela terrível franqueza daquele barulho, a obscura suspeita de conter um significado que nós - tão afastados, já, da noite das primitivas idades - podemos compreender. E porque não? O espírito humano de tudo é capaz - porque dentro dele há tudo, não só o passado como o futuro. E ali, ao fim e ao cabo o que havia? Contentamento, dor, devoção, coragem, raiva - sei lá! - mas principalmente verdade - verdade despida da sua máscara de tempo. Deixemos o louco abrir a boca e tremer - pois o homem compreende e pode ver sem pestanejar. Se for tão homem, pelo menos, como os que havia em terra. Terá de ir com instrumentos da sua própria verdade ao encontro daquela verdade - com a sua força própria e inata. Princípios? Os princípios de nada valem. Aquisições, roupa, vaidades - trapos pelo ar, mal lhe dão uma sacudidela forte. Não; é preciso uma fé deliberada. Aquele tumulto bárbaro exerceria em mim qualquer apelo? Pois muito bem; oiço; admito que sim, mas também tenho voz activa, não daquelas - valha-me Deus ou o Diabo - que podem ser reduzidas ao silêncio. Claro que um doido se defende sempre pelo terror ou com nobres sentimentos.
(…)Mas, entretanto, eu também precisava de andar em cima do selvagem que fazia de fogueiro. Era um exemplar aperfeiçoado; sabia trabalhar com uma caldeira vertical. Eu via-o de cima e, palavra de honra, tão edificante era olhá-lo como um cão de calções e chapéu de plumas a dançar nas patas de trás. Poucos meses de aprendizagem tinham bastado àquele sujeito realmente esperto. Espreitava o manómetro e o nível da caldeira com evidente empenho e audácia - além disso, era um pobre-diabo, com os dentes limados, a carapinha rapada de acordo com insólitos desenhos, três tatuagens decorativas em cada face. Mais lógico seria estar em terra a bater palmas e com os pés no chão do que entregar-se àquele trabalho árduo, àquela estranha feitiçaria, e a aumentar conhecimentos. Era útil, porque o tinham instruído; mas só sabia aquilo - se a água desaparecesse na coisa transparente, o mau espírito da caldeira zangava-se, cheio de sede, capaz de terríveis vinganças. Por isso, ia suando e alimentando a fornalha, vigiando assustadamente o vidro (com um improvisado amuleto de trapos amarrados ao braço e um pedaço de osso, do tamanho de um relógio de bolso, directamente fixado ao lábio inferior) enquanto as arborizadas margens passavam devagar e o ruído furtivo do nosso vapor ia ficando para trás(…)
Com fingida inocência repliquei-lhe que todos, neste mundo, "estamos sujeitos a sarilhos."
(…)Tinham um contrato de seis meses (não creio que alguém, entre eles, tivesse esta clara noção de tempo que adquirimos depois de incontáveis séculos. Pertenciam ao alvorecer dos tempos - sem experiência herdada capaz de explicar-lhes o que isso era) (…)
Todas as semanas eram entregues a cada um três pedaços de arame de cobre, de nove polegadas de comprido, com o argumento que seria eficaz moeda para comprarem provisões nas aldeias ribeirinhas. Imaginem lá para que servia aquilo! Ou não havia aldeias, ou seus habitantes eram hostis, ou o administrador, tal como nós alimentado a conservas que um bode acidental entremeava, não queria ver o vapor parado por motivos mais ou menos fúteis. E assim, não engolindo os tais arames ou não fazendo com eles anzóis para iludir peixes, não vejo que utilidade pudessem extrair de tão extravagante salário. Devo dizer-vos que era pago com regularidade digna de uma grande e respeitável Companhia.
Não há medo que resista à fome, nem paciência que a satisfaça, e onde há fome deixa a repugnância simplesmente de existir; quanto a superstições e crendices, aquilo a que podemos chamar princípios, valem muito menos do que uma folha ao vento. Vocês não sabem que diabólico é, que exasperante tormento se faz, morrermos aos poucos de fome; como isso nos dá ideias negras, fermenta em nós uma sombria ferocidade? Pois bem, eu sei. Para combater eficazmente a fome, uma pessoa recorre a todas as suas energias. Na verdade é mais fácil enfrentar a ruína, a desonra e a perdição da nossa própria alma - do que uma dessas fomes prolongadas. É triste, mas verdade.
Era um destes homens interessados em salvar aparências. A sua inibição era essa.
Um desagrado extremo, só ele, chega para se transformar em violência embora degenere, na maior parte dos casos, em apatia...
"Está quieto!", disse eu, furioso. Era ordenar a uma árvore que não abanasse ao vento.
(…)A questão era essa. A questão estava em ele ser um homem de qualidade, e entre todos os seus dotes predominar um, ligado ao sentido de efectiva presença, que era o talento de falar, eram as suas palavras - o perturbante dote da expressão, o estonteante, o iluminante, mais exaltado e também mais miserável, a palpitante corrente de luz ou o ilusório fluxo extraído ao coração de uma indevassável treva.(…)
Elas - quero dizer as mulheres - devemos ajudá-las a manter-se no belo mundo que lhes é próprio, para o nosso não ficar pior.
(…) E a altíssima testa do Sr. Kurtz! Diz-se que às vezes o cabelo continua a crescer nos mortos, mas aquele exemplar - ah! - era impressionantemente calvo. A selva passara-lhe a mão pela cabeça e, vejam lá vocês, fez dela uma bola - uma bola de marfim; tinha-lhe feito festas e - zás - secara-a; tinha-o agarrado, amado, abraçado, tinha-se metido nas suas veias, tinha-lhe consumido a carne e unido a sua alma à dele através de inconcebíveis cerimónias de uma diabólica iniciação. Transformara-se num mimado e adulado favorito.
(…) "A minha prometida, o meu marfim, o meu posto, o meu rio, o meu..." tudo lhe pertencia. Eu ficava de respiração cortada, à espera que a selva desse uma gargalhada prodigiosa capaz de abalar as estrelas tão sossegadas nos seus lugares. Tudo lhe pertencia - mas não passava de um pormenor. A questão era saber a quem ele pertencia, quantos poderes da treva o reclamavam como seu. Reflexão esta que nos deixava todos arrepiados. Era impossível - nem sequer bom tentar imaginá-lo. Ocupara um elevado lugar entre os demónios daquela terra - no sentido literal.
(…) Mas vocês não podem compreendê-lo. Acham que podem? - com um terreno sólido debaixo dos pés, rodeados por vizinhos amáveis que estão dispostos a aplaudir-vos ou a cair-vos em cima, a andarem comodamente do talho até à Polícia no terror sagrado do escândalo, da autoridade e dos manicómios - como podem vocês imaginar que especial região de infância do mundo era aquela, e até que ponto os pés à solta de um homem podem levá-lo na via da solidão - solidão absoluta, sem polícias - na via do silêncio - silêncio absoluto, onde nenhuma preventiva voz de vizinho amável nos faz eco da opinião pública? Pequenas coisas que marcam as grandes diferenças. Quando desaparecem, obrigam-nos a cair fundo na nossa própria e inata virtude, na nossa capacidade de ser fiéis. Claro está que uma pessoa pode ser tão louca que se arrisque a ser extraviada - e mesmo tão estúpida que não veja como é dominada pelas forças da treva. Admito que nunca tenha havido um doido capaz de vender a alma ao diabo: ou o doido não é bastante doido, ou o diabo bastante diabo - qual das coisas não sei. Ou pode uma pessoa andar tão ofuscada de exaltação que fica surda e cega ao que não forem suspiros e vozes celestiais. Começa a terra a não ser mais do que um lugar de passagem - e se isto é prejuízo ou lucro, não pretendo dizê-lo. Com a maior parte das pessoas não é uma coisa nem outra. Para nós a terra é um lugar onde se vive, onde há que suportar visões, ruídos, odores também(…) E agora - não sei se vêem - é que entra em jogo a força pessoal, a fé na nossa habilidade para abrir disfarçadamente covas onde se enterram coisas - a dedicação, não digo a nós próprios mas a uma tarefa árdua e obscura. O que é bastante difícil (…)
(…) Começava com o argumento de que nós, brancos, tão desenvolvidos como estávamos, por certo parecíamos aos selvagens fazer parte das criaturas sobrenaturais - e nos aproximávamos deles com um poder quase divino", etc., etc. Pelo simples exercício da nossa vontade, podíamos exercer esse quase ilimitado poder em nome do bem, etc., etc. (…) e no final de um comovente apelo a toda a espécie de sentimentos altruístas ofuscava-nos, luminosa e terrífica, como um raio num céu sem nuvens: - "Exterminai todas as bestas!"
(…) Tirei informações completas sobre estas coisas e também me vi obrigado, pela forma como tudo aquilo correu, a cuidar da sua memória. Fiz o bastante para ter agora irrecusável direito de o votar, se quisesse, ao repouso eterno do caixote do lixo do progresso, entre dejectos de toda a espécie e os gatos mortos - em sentido figurado - da civilização. Mas não fui capaz, estão a perceber? Ele não deve ser esquecido. Tenha sido o que quiserem, mas vulgar é que não.
Possuía o poder de seduzir ou amedrontar almas simplórias que em sua honra bailavam das mais enfeitiçadas danças; também podia encher as acanhadas almas dos peregrinos com amargas desconfianças: amigo dedicado tinha pelo menos um, e neste mundo conquistara uma alma que não era simplória, não senhor, nem maculada pelo egoísmo. Não; não posso esquecê-lo, embora não esteja em condições de afirmar que em rigor ele tenha merecido a vida daquele homem que perdemos para o alcançar. Senti a perda do meu falecido timoneiro - comecei a senti-la ainda o seu corpo jazia na casa do leme.
Talvez vos pareça razoavelmente estranho este pesar por um selvagem que só era mais um grão de areia no Sara dos negros. Pois sim, mas reparem que tinha servido para qualquer coisa, tinha governado o barco; durante meses tive-o atrás de mim - uma ajuda, um instrumento. Era uma espécie de associação. Governava o leme por mim - eu olhava por ele, irritava-me com as suas deficiências, e assim criámos um subtil pacto que só entendi quando repentinamente se desfez. Ainda tenho gravado na memória o olhar íntimo e profundo que me deitou ao cair ferido -, como que a reivindicar o afastado parentesco que se afirmava num supremo instante. Pobre louco! Tivesse ao menos deixado aquela janela em paz!
Tagarelava tanto, que eu quase ficava afundado nas suas palavras.
O matagal continuara imóvel como uma máscara - opressiva como a porta fechada de uma prisão - a olhar-nos com o seu ar de sabedoria oculta, paciente espera, inacessível silêncio.
(…) Mas a selva acabou por denunciá-lo e vingar-se terrivelmente dele e da invasão fantástica. Julgo que lhe segredou coisas a seu próprio respeito que ele ignorava, coisas de que não suspeitara até ao momento em que pediu conselho à grande solidão - e o segredo veio a revelar-se de fascinação irresistível. Ecoou muito fundo, porque o Sr. Kurtz estava oco...
Uma selvagem e grandiosa aparição feminina começou a mover-se de um lado para o outro na margem luminosa.
Passeava com um ar seguro, envolta em panos listrados e franjados a pisar a terra com soberba, a tilintar e a rebrilhar ornamentos bárbaros. Tinha a cabeça erguida e cabelos penteados em forma de elmo; tinha polainas de latão até aos joelhos, pulseiras de arame de cobre até aos cotovelos, um sinal escarlate em cada face bronzeada, inúmeros colares de contas de vidro no pescoço; coisas estranhas, amuletos, pedras de feitiço penduradas à volta do corpo, a cintilarem e a estremecerem a cada passo. Devia trazer em cima dela o valor de muitas presas de elefante. Era selvagem e soberba, com bravios e magníficos olhos; com algo de majestoso e fatal no andar decidido. E no repentino silêncio que desceu àquela terra enlutada, a selva imensa, corpo colossal de misteriosa e fecunda vida, parecia contemplá-la, pensativa, como se visse nela a imagem da sua própria alma tenebrosa e apaixonada.
Puxei a corda do apito. Fi-lo porque já via os peregrinos raparem das espingardas, no convés, e prepararem-se para uma grande festança. O berro inesperado provocou um movimento de primário terror na massa compacta dos corpos. "Não! Não os assuste!", gritou-me alguém do convés, com uma voz desconsolada. Mas puxei e tornei a puxar a corda. Os selvagens dispersaram, a correr, saltavam, agachavam-se, fugiam para todos os lados, esquivavam-se ao esvoaçante terror daquele som.
Uma voz! Uma voz! De profundidade mantida mesmo até ao fim. Que sobreviveu às forças para ocultar nas magníficas pregas da eloquência as trevas do seu coração. E como lutou, lutou! O deserto do seu fatigado pensamento envenenava-se agora com imagens de sombra - imagens de riqueza e fama que se revolviam, deferentes, em redor de um inextinguível talento para se exprimir com nobreza e elevação. A minha prometida, o meu posto, a minha carreira, as minhas ideias - eram tema de ocasionais exibições de sentimentos elevados. A sombra do Kurtz original não largava a cabeceira daquela contrafacção vazia que tinha por destino uma sepultura modelada em terra de primevas idades. Mas quer o diabólico amor, quer o ódio sobrenatural dos mistérios em que ele penetrava lutavam pela posse daquela alma saciada em primitivas emoções, sequiosas de enganosa fama, de falsas distinções, de toda a aparência de poder e êxito.
Às vezes era risivelmente pueril. Gostaria de ter reis a recebê-lo em estações de caminho-de-ferro, quando regressasse daquela pavorosa Terra de Ninguém onde pretendia consumar grandiosas coisas. "Saibamos mostrar-lhes que em nós existe qualquer coisa realmente aproveitável, e não terá limites o reconhecimento que irão dispensar às nossas capacidades", dizia ele. "Claro que temos sempre que levar em conta os motivosos motivos justos."
Os longos troços do rio eram como que um único troço sempre igual, as voltas monótonas idênticas, a deslizarem pelo vapor com a sua multidão de árvores seculares que olhavam, muito pacientes aquele sujo fragmento de outro mundo, o precursor de mudança, conquista, comércio, massacre e bênçãos. Eu olhava para a frente - e pilotava. "Fechem-me as portadas", disse um dia Kurtz, de repente; "não suporto ver isto." Fiz-lhe a vontade. Houve um silêncio. "Ah! Seja como for, hei-de arrancar-te o coração!", gritou ele à selva invisível.
Eu nunca tinha visto, nem espero tornar a ver, coisa parecida com a transformação que se dera nos seus traços. Não, emocionado eu não estava. Estava fascinado. Como se um véu se tivesse rasgado. No marfim daquele rosto vi uma expressão de orgulho sombrio, indomável poder, de abjecto terror - de um desespero intenso e sem esperança. Naquele supremo instante, de integral conhecimento, estaria ele a reviver a vida em todo o pormenor, com os seus desejos, tentações e renúncias? Deu um grito sussurrado a uma imagem qualquer, a uma visão qualquer - gritou duas vezes, um grito que não passava de sopro... "O horror! O horror!" (…) Eu não queria voltar a aproximar-me do homem notável que tinha proferido uma sentença daquelas sobre as aventuras da sua alma na terra. A voz desaparecera. Teria havido mais qualquer outra coisa?
(…) o grito dele era uma afirmação, uma vitória moral paga por inúmeras derrotas, terrores abomináveis, abomináveis satisfações. Mas era uma vitória!
Que engraçada, esta vida - este misterioso consenso de impiedosa lógica ao serviço de um propósito fútil. O mais que podemos esperar é ter algum conhecimento de nós próprios - que infelizmente chega tarde - uma data de sofrimentos que nunca mais acabam.(…)
(…) a vida ainda é maior enigma do que alguns pensam.
(…) Só vim a reencontrar-me na cidade sepulcral, ao incomodar-me com o espectáculo de pessoas apressadas que andavam pelas ruas para extorquir dinheiro umas às outras, devorar infames cozinhados, engolir cerveja insalubre, sonhar sonhos insignificantes e patetas. Atravancavam-me os pensamentos. Eram intrusos cuja experiência de vida me parecia uma irritante pretensão, já que não podiam, não senhor, conhecer as coisas que eu conhecia. As suas atitudes, simples atitudes de gente banal que tratava da vida com uma convicção de perfeita segurança, ofendiam-me tanto como a suficiência ultrajante da loucura ao pé de um perigo que ela não pode compreender. Eu não sentia especial desejo de os ensinar, mas tinha alguma dificuldade em conter-me para não rir nas suas caras cheias de estúpida importância.
(…) ele não era capaz, realmente, de escrever grande coisa "mas, Santo Deus!" como era bom a falar! Electrizava grandes assembleias. Era um convencido - percebe? - e um convicto. Podia convencer-se a si próprio daquilo que queria. "Teria dado um esplêndido chefe num partido extremista."
Bem sei que até a luz do Sol pode dizer mentiras
(…) e de certo modo eu queria restituir aquilo ao passado - eu próprio entregar tudo quanto me restava dele ao esquecimento que era palavra última do nosso destino comum.
Pensava eu que a sua memória era igual à memória de outros mortos que se acumulam na vida de nós todos - vaga impressão no cérebro, feita por sombras que o afloraram durante uma rápida e suprema passagem; mas à frente do portão alto e solene, entre largas casas de uma rua tão silenciosa e respeitável como a álea bem tratada de um cemitério, voltei a vê-lo na maca, de boca voraz aberta, como se quisesse engolir o mundo e toda a sua humanidade. Tive-o à minha frente vivo; mais vivo do que alguma vez estivera - insaciável sombra de magnífica aparência, de pavorosa realidade, mais negra sombra do que a sombra da noite e nobremente envolta nas pregas de uma sumptuosa eloquência. Pareceu-me que a visão entrara comigo na casa - a maca, os carregadores-fantasmas, a selvagem multidão dos obedientes adoradores, a escuridão da floresta, o cintilar do rio entre curvas sombrias, o bater do tambor tão regular e surdo como o bater de um coração - coração de uma dominadora treva. Para a selva foi um momento de triunfo, uma corrida invasora e vingativa que a meu ver eu só teria de repetir se quisesse salvar outra alma.
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