CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

A Estação

A manhã era de nevoeiro na estação dos comboios em Vila Nova de Gaia. Poucos minutos faltavam para as sete horas da manhã. Em breve, as poucas pessoas que ali se encontravam, teriam a companhia de mais umas dezenas, no reboliço habitual daqueles que na nação valente e imortal conseguem ainda manter um emprego. Nada de novo até aqui. A rotina secular de um Povo firme na sua força laboral e que ora resignado, ora resistente na exploração a que a sua produtividade era sujeita, foi permitindo a sobrevivência do País. Era num dos vários bancos de madeira frente a uma das linhas, sentido Porto-Lisboa, que se encontrava um casal relativamente jovem, tendo atento entre os dois, um jovem rapaz, na casa dos oito anos de idade. O homem, de compleição magra e cabelo curto, moreno, com rugas de expressão bem vincadas, barba de vários dias e calças de ganga sujas, conversava com o pequeno algo inaudível para ouvidos alheios, mas pleno de afectos para quem se dignasse a observar. A mulher, forte no arcaboiço físico, de óculos de graduação forte e blusa colorida, fingia não observar ninguém em redor, talvez para não entristecer o filho mais novo. Por que haveria de ficar triste o rapaz? Na verdade havia povo a observar Povo. E certamente aquele casal sabia-o. Independentemente da sua formação, linha de raciocínio ou ideológica (caso a tivessem), apercebiam-se dos olhares em redor. Sentadas no mesmo banco, estavam mãe e filha, olhando de soslaio o patriarca daquela pequena família. Logo de seguida, olhavam uma para a outra, manifestando um desdém mútuo pelo homem de aspecto pouco asseado. Poucos minutos depois levantava-se o pequeno, aproximando-se da zona onde se encontravam, mais para a frente, comboios de mercadoria estacionados. Maravilhado, fazia perguntas aos progenitores acerca dos veículos. Nunca tinha andado de comboio. Também não seria naquele dia. Não era por isso que ali estavam. O pai sorria, e a mãe respondia como podia ao pequeno Miguel. Do lado direito, junto a uma das vigas que suportavam a área coberta do local, encontrava-se uma mulher na casa dos cinquenta anos. Calças de flanela muito bem vincadas, blusa branca e casaco azul-marinho. Ao pescoço, um colar de penas e pérolas. O cabelo pintado, ondulado e curto, dava a ideia de ser uma daquelas senhoras que dormiam com toucas e perdiam pelo menos uma hora na sua manutenção antes de dormir. Observava, pouco importada com que reparassem, a mãe do menino curioso e do marido com as calças sujas. Como se de alguma forma, ou por algum motivo, tivesse legitimidade para entrar no campo de visão da mulher, e permitir-se entrar no dela, no intuito de a fazer sentir que ali não era o seu lugar, entre pessoas de bem, pessoas que tomaram banho naquele dia, que puderam tomar banho naquele dia, que tinham dinheiro para pagar a água, e a electricidade. Pessoas que tomaram um pequeno-almoço e não enganaram o estômago para poderem alimentar filhos pequenos. Pessoas que puderam escolher a roupa que iriam vestir. Pessoa que podiam lavar essa roupa, sem receio de não terem outra para trabalhar no dia seguinte. Ou para procurar emprego. Ou para irem a instituições governamentais de pseudo-solidariedade ou de segurança social, implorarem ao menos por apoio alimentar. Não preocupadas com o estômago que teimava em barafustar dentro delas, mas para que o dos filhos fosse enganado por mais algum tempo. A mãe do pequeno reparou na “mulher de bem” que a observava como que a recrimina-la pelos chinelos que envolviam os pés sujos de terra, pó, ou o que quer que aquilo fosse. Poderia ter retribuído o olhar e, dessa forma, repreendido o acto desnecessário. Não o fez. Era uma mulher forte, ou pelo menos parecia pela forma firme com que dialogava com marido e filho. Ainda assim, um olhar triste, de quem está já acostumada a ser tratada assim, por palavras, gestos ou omissões, foi tudo o que soube exprimir na direcção do marido, que também se apercebera e baixava naquele instante a cabeça, segurando a mão da criança. Foi por ele, esse pequeno catraio fascinado pelos comboios em que nunca andara, que ambos se resignaram perante o cenário de ideias pré-concebidas e mesquinhez que os envolvia naquele local, como que a sombra de um sistema vigente por décadas, que mesmo após a sua abolição, deixou traços de cariz cruel e desumano naqueles que não o quiseram aceitar. A aglomeração de trabalhadores começou a intensificar-se assim que começaram os anúncios de transporte a caminho, na linha de sentido oposto ao nosso, para cidade do Porto. Foi nessa altura que algo mais me despertou o interesse, e em boa hora, pois o nó no estômago provocado pela cena anterior deixara-me em estado de raiva latente. A vontade, confesso, era a de confrontar as víboras disfarçadas de gente que ali se encontravam a humilhar com o olhar um casal que a nenhum momento as importunou. Sim, é possível humilhar com os olhos. Seguramente, penso que apenas um ser desprovido de qualquer sensibilidade não se apercebe do quanto o simples gesto do esgar pode afectar as emoções de quem o rodeia. E quando o fazem deliberadamente, por puro despeito, conscientes disso mesmo,  deitam por terra todos os sacrifícios feitos ao longo de quase uma centena de anos, para que um dia fosse possível vermo-nos uns aos outros como iguais. Apesar de tudo, nenhum direito tinha eu de chamar víboras a essas víboras, ou tentar sequer repeli-las por palavras. Se eles, o casal, não o fizeram para preservar o bem-estar do rapaz que estava fascinado com a visita à estação, que direito tinha eu de o fazer?  Por vezes há que suportar estes fardos. Nem sempre é possível corrigir as injustiças, pois com o acto os danos seriam maiores para os inocentes. Felizmente, há sempre um momento em que os danos colaterais são sempre menores que as vantagens. A vitória pode ser adiada vezes sem conta mas não existe eternidade para o sono da justiça. Foquei a minha atenção no jovem de cerca de dezoito ou dezanove anos que se encontrava na minha dianteira. Não tinha ainda reparado nele. Só quando a criança saltou do banco onde os pais o ladeavam, ao seu encontro, é que me foi possível perceber a sua presença. Ficou portanto explicado o motivo dos pais e do filho estarem tão cedo ali, naquele local, sujeitos ao frio do clima e ao frio da pequenez alheia. Acompanharam o filho mais velho, e ali permaneceram para dele se despedirem quando o comboio chegasse. Estava um pouco alheado de tudo o que se passava até que o irmão foi ao seu encontro, e lhe perguntou algo que não consegui perceber. Permaneceram os poucos minutos que faltavam até partir, juntos a conversar, sob o olhar ternurento dos progenitores. Em breve se despediriam. Coincidência ou não, ficamos instalados na mesma carruagem, e o primeiro contacto que tive com o rapaz, foi indicar-lhe onde ficava o bar. Acabei por ir também. A cafeína é o melhor amigo do “combatente”, como me disse um sargento de cavalaria a meio de uma noite de violência física e psicológica, algures numa serra em Viana do Castelo. Notava alguma insegurança no rapaz. Pelo que me dissera tínhamos o mesmo destino:  Lisboa.
Era no entanto a primeira vez que se ausentava para tão longe, sozinho. Fazia-me perguntas esperando indicações, mas nem eu sabia responder a todas, visto ser difícil conhecer aquela zona pela pouca frequência com que a visitava. A caminho da carruagem a conversa seguiu-se. A minha inquietação aumentou. Depois do que me contara, não  havia mais sequer a chance de conseguir ao menos tentar dormir o resto da viagem. Estava a caminho da capital, este rapaz que ainda nem vinte anos tinha, para tentar a sua sorte e participar de uma entrevista de emprego, na área das telecomunicações. Os pais vendiam diversos artigos em feiras da zona norte e faziam tudo o que podiam, ou lhes era permitido, para sustentar e manter vivos os sonhos tanto do filho mais novo, como deste mais velho, que me acompanhava nas próximas duas horas e meia. Tinha deixado os estudos precocemente, para encontrar um trabalho que o permitisse participar activamente na formação do irmão e aliviar um pouco o esforço dos progenitores. Confessara-me, entre dentes, a revolta que sentia por ter de ver quem o criou, dia-após-dia, sujeito ao tempo, à privação do descanso e até a pessoas como aquelas atrás exemplificadas, vivendo apenas para cuidar das suas crias. Cansara-se de ver sacrifícios muitas vezes não recompensados em seu redor, e humilhações, sem nada fazer. Aquele rapaz, com a vida pela frente, viu-se portanto obrigado a pôr de lado as suas aspirações mais íntimas, por já lhe ser impossível suportar a indignação de ver aqueles que amava constantemente desesperados, constantemente sacrificados… Constantemente na inconstância de saberem só ao final do dia, se teriam o suficiente para alimentar as duas bocas que trouxeram ao mundo. Ele não tinha motivos para sorrir. Só para cerrar os dentes e entrar na mesma batalha diária em que já combatem nas últimas décadas as pessoas deste País. Os acomodados, esses, os que têm o colo do Pai caso algum imprevisto surja, podem-se passear faustosamente pelas avenidas, abraçando causas e partidos com que nem sequer concordam, indiferentes ao conceito de sacrifício ou abnegação em prole do outro, e sorrir desalmadamente indiferentes ao que o vizinho do lado possa estar a viver. É muito fácil ter opiniões próprias (ou decalcadas), e nada fazer em seguida para as defender. Ou então, fazer com o interesse escondido de enaltecer o próprio ego no intuito de terem a possibilidade de se mostrarem diferentes relativamente a amigos ou familiares. Podem até dizer aos companheiros de luta que estão do lado deles, que concordam com o que é proposto, que fazem o que for preciso. Mas o que lhes importa de facto é o reconhecimento, o “social” e os joguinhos de infância que mesmo na casa dos vinte ou dos trinta nunca abandonaram. A intriga a pretexto da causa dos povos é asquerosa. Por vezes não é conveniente levantar areia e olhar com olhos de ver para criaturas dessa safra. É melhor o “deixa andar” e fingir que não vemos qual é o verdadeiro intuito da pessoa. Por mais que as evidências comecem a ser fortes e a dissimulação continue aceitável para manter a farsa. E eles continuam, em pleno dia da semana, defendendo fervorosamente os seus ideais libertários, na berma da piscina. Prosseguem mais tarde, defendendo a justiça para o povo, enquanto assinam a carta de despedimento da mulher da limpeza na empresa do paizinho. Continuam ainda, fim de tarde fora, a dar palmadas nas costas na mesa do café daqueles com quem dizem concordar, mas que abandonam ao mínimo sinal de eventual acção onde possa aparecer um senhor guarda.  Mea máxima culpa! Dias sim, dias não, vou compactuando com este silêncio de vidro nas vísceras, permitindo que mais homens como esses sejam formados e mais rapazes como aquele, sentado perto de mim, sejam deformados. Pouco tempo de viagem nos restava e já sentia nos ombros o peso da responsabilidade pela condição daquele ser-humano. Daquele cidadão. Daquela futura fonte de extorsão do estado. A omissão, o silêncio e principalmente a inacção são tão fatais quanto a indiferença. Somos tão carrascos uns dos outros por nada fazermos, quanto aqueles que nos desferem os golpes. Perdido nestes pensamentos e tentando perceber como purgar a minha culpa, deixei de ver o rapaz. O comboio havia chegado ao destino. Porém, foi aquele o momento em que percebi que a viagem mal tinha começado. Saí para a estação pelas nove e trinta da manhã. Procurei o companheiro de carruagem, mas já o tinha perdido de vista. Provavelmente nunca mais nos encontraríamos. Perguntei a um vigilante se haveria perto algum quiosque e o mesmo foi prontamente indicado. Precisava de um bloco de notas para escrever este mesmo rascunho. Chegando ao local, petrifiquei. O sobrolho direito foi franzido antes mesmo de conseguir manifestar qualquer surpresa. Num banco de madeira verde, perto de uma das entradas principais, estava o mesmo casal que deixara na estação de Vila Nova de Gaia. Entre ambos, a mesma criança fascinada pelos comboios onde nunca tinha viajado. Poucos metros diante deles, o mesmo rapaz distante e de olhar perdido na linha. Não me aproximei, porque ao meu lado também estavam. Dentro do edifício, lá estavam eles de novo. O choque apoderou-se de mim e a atrapalhação que me é característica tomou finalmente o seu trono. Choquei contra um homem e era o Pai do rapaz. Pedi desculpas, e quem me disse que não fazia mal foi a Mãe. Estavam na rua também e no autocarro onde me apressava a entrar. Em todas as paragens onde o motorista recebia novos passageiros. E estes passageiros eram também eles o casal. Para onde quer que me voltasse eles estavam sempre comigo. Juntos a eles estavam sempre os nacos de carne com pernas que os desaprovavam por não possuírem roupa da montra. Entre eles o mesmo olhar de resignação e tristeza. Em mim a aceitação de que doravante, onde quer que fosse, os traria sempre. A certeza de que teria que fazer algo mais do que falar para que não mais fosse possível comer da indignação e passar o resto da vida sem a conseguir digerir. Incerteza, por não perceber muito bem como o fazer. Ímpeto de o descobrir, aprendendo.

Submited by

sexta-feira, agosto 10, 2012 - 18:34

Prosas :

No votes yet

OJorge

imagem de OJorge
Offline
Título: Moderador Eventos
Última vez online: há 31 semanas 6 dias
Membro desde: 04/18/2008
Conteúdos:
Pontos: 51

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of OJorge

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Prosas/Outros Nunca mais! 7 1.492 09/22/2021 - 16:33 Português
Prosas/Outros A visita 1 978 06/11/2019 - 20:06 Português
Prosas/Outros Olhos no tecto. 0 843 08/10/2012 - 18:52 Português
Prosas/Outros Geração 0 700 08/10/2012 - 18:51 Português
Prosas/Outros Primeiro de Novembro 0 918 08/10/2012 - 18:49 Português
Prosas/Outros Deformado 0 906 08/10/2012 - 18:46 Português
Prosas/Outros Lobos 0 923 08/10/2012 - 18:45 Português
Prosas/Outros Estranhos 0 847 08/10/2012 - 18:42 Português
Prosas/Outros A Estação 0 722 08/10/2012 - 18:34 Português
Prosas/Outros Despertar 2 1.198 11/24/2011 - 20:19 Português
Prosas/Outros A Besta Tem Sede 2 1.099 04/21/2011 - 18:29 Português
Fotos/Pessoais ... 0 1.456 04/19/2011 - 16:26 Português
Videos/Música El Anarquista 0 1.866 04/18/2011 - 17:56 Português
Videos/Perfil 85 0 1.724 11/24/2010 - 21:48 Português
Fotos/ - 244 0 2.001 11/23/2010 - 23:33 Português