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Primeiro de Novembro

Naquela noite o vento a espalhou  folhas por todo o quarto. Inquietou-se! Todas as portas e janelas de casa estavam escancaradas. Era o dia dos mortos. Um a um, entravam-lhe porta dentro, saudando-o de forma natural, uns mais tímidos do que outros. De alguns, a custo, despedira-se poucos anos antes. Já da face de outros mal se recordava, pois conheceram-se numa época em que nem barba tinha. Tinham apenas uma hora, pelo que não podiam perder muito tempo com emotividade ou saciar de saudades. Sentaram-se com os braços apoiados na mesa da sala e convidaram-no a juntar-se a eles. A única regra a ter em conta era a de não se poderem tocar, por motivos óbvios para eles e difíceis de tolerar para aquele que em tantas noites sonhara com o momento e finalmente o podia ver concretizado. Queria sentir novamente o toque terno daquelas mãos ásperas, as da velha senhora. O calor no rosto da rapariga, ou cheiro do casaco castanho do ancião. Olhavam-no serenos, como se estivessem a par de algo que ele ainda não havia percebido. Não estavam tristes, muito menos emocionados. Aqueles rostos, diferentes na idade e nas feições, tinham em comum a expressão de uma ternura familiar, constante e imutável.  Nada mais. Nem riso, choro ou "ais". Apenas paz, segurança e ternura. Pediram-lhe calma, cada um com a sua escolha de palavras. Tinha muito para lhes dizer, mas eram eles que precisavam falar. No momento em que procurou retorquir, viu-se impossibilitado de articular qualquer som. Uma forma forçada de o fazerem prestar atenção ao que tinham para lhe dizer. O ancião do casaco castanho foi o primeiro a tomar a palavra:

- Presta atenção, porque não nos demos ao trabalho de voltar apenas para te ver ou perder tempo com demonstrações de afecto. Bem sei que sentes falta de cada um de nós e a vida que levas te atormenta sem que te guiemos. Conseguimos ouvir-te de onde estamos, sabes? Todavia, por mais que nos seja penoso não te poder auxiliar como outrora, ou pelo menos responder com palavras de ânimo, estamos aqui para te trazer o aviso de que te deves preparar para partir em breve. A tua presença aqui, além de desnecessária é intolerável. Precisas libertar-te. Podes agora falar, se tens alguma questão.

Ditas estas palavras, sentiu-se como que a recuperar o ar. O alívio foi imediato. Conseguiu escutar-se novamente e não mais os lábios estavam tolhidos de sonoridade. Porém, não soube de imediato o que dizer. Sentia-se confuso, procurando assimilar cada palavra. Pior ainda, mal a conversa tinha começado. A alegria transbordante que sentira minutos antes deu lugar a um misto de receio e incredulidade. Começava a desejar que aquele momento não estivesse de facto a acontecer, que fosse um sonho, um devaneio, uma bebedeira até mesmo uma qualquer patologia do foro psiquiátrico. De pouco lhe adiantava agora. Tudo o que podia fazer, a medo, era responder com a pergunta:

- Vou morrer? Vieram buscar-me?
- Não, antes pelo contrário. Estamos aqui para te mandar embora. - asseverou a velha senhora, dando sinal ao ancião para que a deixasse responder.
- E para onde é suposto ir? Não sei onde. Não me querem convosco lá onde quer que estão, mas não me querem cá também?
- Precisamente. É normal a tua confusão. Respira rapaz. Nunca nada te fez imaginar que houvessem mais lugares entre o teu e o nosso. Não tinhas como adivinhar, mas precisas aceitá-lo quanto antes. Não tens muito mais tempo aqui do que nós próprios.
- E que lugar é esse, que não é vosso nem é meu?
- A questão é essa. Não se trata de um lugar. Mas é mais teu do que este. E é lá que precisas estar.

Cada vez assimilava menos o que lhe estavam a tentar dizer. Além de atónito, aquela conversa deixara-o ainda mais confuso do que quando viu a sua casa invadida. Foi então que, como no passado, voltou o rosto para a rapariga, que em tantas ocasiões lhe mostrou não o que fazer, mas onde encontrar força para levar a cabo qualquer tarefa, por mais hercúleo que fosse o esforço. Ela, como ninguém, percebeu-o antes sequer que abrisse a boca.

- Precisas ficar calmo. De facto temos pouco tempo. Preciso, apesar de tudo, de te pedir desculpas. Sei que prometemos o reencontro mas isto é o mais próximo que teremos de um.
-Não digas isso. Fizemos um acordo. Combinamos que quando chegasse a minha vez nunca mais seria preciso ficarmos longe um do outro. E eu vou ter contigo, quando terminar o meu tempo aqui, neste corpo.
- Não vais! Aceita-o rápido porque é imperativo, para teu bem, que vás com plena consciência de que é assim que deve ser. Ali é a tua casa.
- Mas "ali" onde? Para onde é que vou se não fico cá nem vou para o vosso mundo?
- Nunca conseguiste ver além do linear. Tarde ou não, vais ter de perceber agora que nem tudo é preto ou branco. Não pertences a um terceiro mundo. Onde pertences, nada é concreto. É o cinzento.
- Suponhamos que é verdade...
- É verdade!
- Muito bem. A sê-lo, o que vou para lá fazer?
- A questão é essa. Fazer é a definição deste mundo. E aqui já fizeste muito. Já perguntaste a ti mesmo porque é que nunca ficas satisfeito?
- Porque preciso fazer mais!
- Não. Porque precisas ser mais. E nesse lugar é isso tudo o que existe: Ser.
- Isso é impossível. Ser é um instrumento de fazer.
- Se assim fosse sentir-te-ias mais completo agora e não seria preciso estarmos aqui. Entende que aqui, onde estás, qualquer acção movida pelo ser apenas te conduz a objectivos materiais. Talvez por isso nunca tomas consciência de quem és e como consequência, te esqueces de onde pertences.
- Se assim é, diz-me então, o que estou aqui a fazer se é nesse "cinzento" que deveria estar?
- Não te posso responder a tudo. Há coisas que precisas ver sozinho quando lá chegares. Digo-te apenas que a tua curiosidade foi saciada e pagaste-a com a memória corrompida. O preço de cá vires, foi esqueceres quem és. Mas o teu peito continua a ansiar pelo teu regresso, só não sabes onde. Não estou errada, pois não?
- Não... Desculpa. Mas continuo sem compreender como raio posso ir a um lugar que não é lugar, ser sem fazer e permanecer lá porque não pertenço nem aqui, nem onde vocês estão.
- Pensa apenas no quão bem te vais sentir no momento em que te libertares do teu preto no branco e perderes todos os dogmas. Quando te tornares em tudo o que sentires sem filtros e sem máscaras. Será como beijar uma rapariga sem receio do que esperas dela e vice-versa. Ou investires no campo de batalha desdenhando completamente os julgamentos alheios. Poderás ser bravo sem receio. Poderás ser... sem receio. Lá, nessa zona cinzenta, serás tudo o que sentires!

Não teve forma de lhe responder. É que desta vez, sem qualquer força externa que o retivesse no silêncio, as palavras não estavam a sair. De alguma forma, por mais irreal que a sua mente condicionada lhe dissesse que tudo aquilo era, fazia sentido. Assim que se acalmou, a cada minuto aceitando melhor o seu destino, voltou-se novamente para o ancião, que abotoava o casaco.

- Nunca mais vos vou ver?
- Não desta maneira. Não pertences aos vivos, mas morto com toda a certeza nunca serás. Não existimos na dimensão onde te diriges. Não como aqui, ou de onde viemos. Mas há uma forma.
- E qual é? - Perguntou de semblante soturno, cada vez mais resignado.
- Sente-nos! Sente-nos e seremos tu, como tu serás nós. É tudo o que necessitas! Volta para casa... E sente!

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sexta-feira, agosto 10, 2012 - 18:49

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