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UM QUADRO DE SOLIDÃO

Um Quadro de Solidão

A tarde estava cinzenta. O céu, plúmbeo, ameaçava chuva. No chão do velho jardim amontoavam-se as folhas das árvores, que o Outono, pacientemente amarelecera, e que o vento se encarregara de derrubar. No ar sentia-se o cheiro húmido característico dos nostálgicos finais de tarde dessa época do ano. Como sinal de vida, apenas a passarada a procurar abrigo nas copas das árvores cada vez mais despidas da folhagem, e o velho jardineiro, meio trôpego, que maquinal e resignadamente, arrastava a vassoura já gasta, empurrando as folhas secas, para pequenos montes, que mais tarde seriam recolhidos e lançados numa qualquer lixeira da cidade.

Um pouco afastado, sentado num banco já carcomido pelo tempo, e semi-destruído pelos maus tratos, um homem observava, com olhar inexpressivo, os movimentos do velho jardineiro, talvez tentando adivinhar quando, também ele já em pleno Outono da sua vida, seria derrubado e varrido do mundo dos vivos e da memória dos seus, se era que estes ainda tinham memória para ele. Tristes pensamentos atravessavam, naquele momento, a cabeça esbranquiçada daquele homem, cujo rosto rasgado pelas rugas e maltratado pelos anos, tornava evidente que o seu passado estava bem longe de ter sido um mar de rosas.

Aquele jardim, agora deserto e pouco menos que abandonado, ( também ele !), estivera desde sempre associado à sua existência. Dele se recorda quando, mal sabendo andar, ensaiava timidamente as primeiras corridas sob o olhar atento, e embevecido, da sua mãe, que naquele mesmo banco se entretinha a tricotar, com um olho no seu rebento e o outro na malha que ia crescendo. Fora ali também que ensaiara, titubeando, alguns dos seus primeiros passos,. Ali sofrera os primeiros trambolhões, ao tentar, sem sucesso, manter direita a pequena bicicleta que lhe fora oferecida pelos avós em nome do Menino Jesus. Também fora ali que calçara pela primeira vez os seus patins, e fora ainda naquele local que fizera alguns dos seus primeiros amigos. Fora aquele o palco de muitas das suas brincadeiras preferidas, ( a apanhada, as escondidas, o berlinde, o pião, e tantas outras, que o passar dos anos foi banindo do dia a dia da petizada e da memória dos mais velhos). Fora ali ainda que saboreara, ansiosa e desajeitadamente, o primeiro beijo de amor. Mais tarde por ali passeou também os filhos, num fechar de um ciclo que correspondeu a uma geração.

Se houvesse alguém que olhasse atentamente aquele homem. teria notado no seu rosto um discreto sorriso de ternura. A ternura... e a imensa saudade com que recordava aqueles que foram os únicos anos felizes da sua vida. Aquele jardim trazia-lhe muitas e gratas recordações do passado. Do tempo em que vivia rodeado por uma família que o acarinhava e amparava. Do tempo em que amara, e fora amado. Amado pelos pais, que estavam sempre presentes quando deles precisava. Pela mulher, que com ele compartilhou uma parte da sua vida, e que, para além de momentos de ternura e felicidade, o brindou ainda com dois rebentos amorosos que quase o fizeram morrer de alegria quando nasceram. Pelos filhos, que vieram completar todo o sentido da sua vida, e para os quais trabalhou árdua, mas determinadamente, para que pudessem crescer sem que nada lhes faltasse.

Aquele velho jardim era então alegre e concorrido. Nele se ouviam os risos, e os gritos da petizada. Nele se fazia sentir o cheiro intenso, e bom, das castanhas assadas. Nele havia vida. Esse velho jardim, tal como ele, já estivera vivo e irradiara alegria e felicidade. Tal como ele, o velho jardim não passava agora de um fantasma do passado. Silencioso, triste, velho e só. As crianças irrequietas e alegres de outrora deram agora lugar a um ou outro velho solitário que desistira já de olhar em frente. Hoje apenas é procurado por quem se contenta, em meditar o passado. Apenas terá alguma utilidade para quem procura um parceiro para a sua solidão e para a sua decadência.

Um pequeno arrepio acordou o velho solitário, dos seus pensamentos e das suas recordações do passado, trazendo-o de volta à dura realidade do presente, e fazendo-o aperceber-se de que uma densa, e fria, camada de nevoeiro se ia progressivamente apoderando do jardim, tornando-o ainda mais cinzento e mais triste, transformando os esguios troncos das arvores e toda a vegetação envolvente, num cenário sombrio e quase fantasmagórico, capaz de insinuar mistérios e inquietar as almas.

O homem, sentindo-se enregelar, aconchegou a gola do casaco para cima do pescoço, levantou-se, e com passos lentos e pesados começou a afastar-se até que a sua frágil silhueta se foi esbatendo, até ser completamente engolida pelo manto de nevoeiro, cada vez mais denso, mais húmido, mais nostálgico e mais inquietante.

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terça-feira, dezembro 15, 2009 - 17:09

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GuiDuarte

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Comentários

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Re: UM QUADRO DE SOLIDÃO

Solitário, vem ao jardim que da sua vida participou, relembrar a vida que teve e pensar na vida que resta, a fim de ter esta lembrança de vida como companheira na solidão que ora vive.
Belo texto, parabens.

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Re: UM QUADRO DE SOLIDÃO

Bom texto, parabéns

um abraço
Melo

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