É preciso fazer alguma coisa (Thiago de Mello)

Escrevo esta canção porque é preciso.
Se não a escrevo, falho com um pacto
que tenho abertamente com a vida.
E é preciso fazer alguma coisa
para ajudar o homem.

Mas agora.
Cada vez mais sozinho e mais feroz,
a ternura extraviada de si mesma,
o homem está perdido em seu caminho.
É preciso fazer alguma coisa
para ajudá-lo. Ainda é tempo.

É tempo.
Apesar do próprio homem, ainda é tempo.
Apesar dessa crosta que cultivas
com amianto e medo, ainda é tempo.
Apesar da reserva delicada
das toneladas cegas mas perfeitas
de TNT pousada sobre o centro
de cada coração – ainda é tempo.

No Brasil, lá na Angola, na Alemanha,
na ladeira mais triste da Bolívia,
nesta poeira que embaça a tua sombra,
na janela fechada, no mar alto,
no Próximo Oriente e no Distante,
na nova madrugada lusitana
e na avenida mais iluminada
de New York. No Cuzco desolado
e nas centrais atômicas atônitas,
em teu quarto e nas naves espaciais
- é preciso ajudá-lo.

Nas esquinas
onde se perde o amor publicamente,
nas cantigas guardadas no porão,
nas palavras escritas com acrílico,
quando fazes o amor para ti mesmo.
Na floresta amazônica, nas margens
do Sena e nos dois lados deste muro
que atravessa a esperança da cidade
onde encontrei o amor

- o homem está
ficando seco como um sapo seco
e a sua casa já se transformou
em apenas local de seu refúgio.

Lá na Alameda de Bernardo O’Higgins
e no sangue chileno que escorria
dos corpos dos obreiros fuzilados,
levados para a fossa em caminhões
pela ferocidade que aos domingos
sabe se ajoelhar e cantar salmos.
Lá na terra maracda como um boi
pela brasa voraz do latifúndio.

Dentro do riso torto que disfarça
a amargura da tua indiferença,
na mágica eletrônica dourada,
no milagre que acende os altos-fornos,
no desamor das mãos, das tuas mãos,
no engano diário, pão de cada noite,
o homem agora está, o homem autômato,
servo soturno do seu próprio mundo,
como um menino cego, só e ferido,
dentro da multidão.

Ainda é tempo.
Sei por que canto: se raspas o fundo
do poço antigo da tua esperança,
acharás restos de água que apodrece.
É preciso fazer alguma coisa,
livrá-lo dessa situação voraz
da engrenagem organizada e fria
que nos devora a todos a ternura,
a alegria de dar e receber,
o gosto de ser gente e de viver.

É preciso ajudar.
Porém primeiro,
para poder fazer o necessário,
é preciso ajudar-me, agora mesmo,
a ser capaz de amor, de ser um homem.
Eu que também me sei ferido e só,
mas aconchego este animal sonoro
que reina poderoso em meu peito.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Submited by

Friday, September 23, 2011 - 11:34

Poesia :

No votes yet

AjAraujo

AjAraujo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 6 years 13 weeks ago
Joined: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Login to post comments

other contents of AjAraujo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Meditation Resíduo (Carlos Drummond de Andrade) 0 823 11/01/2011 - 00:51 Portuguese
Poesia/Thoughts Enfrentar a adversidade da doença inesperada 0 3.424 11/01/2011 - 00:49 Portuguese
Poesia/Meditation Demian - Introdução (Hermann Hesse) 0 2.498 11/01/2011 - 00:46 Portuguese
Poesia/Dedicated O último suspiro 0 2.490 10/30/2011 - 23:24 Portuguese
Poesia/Aphorism Agora ar é ar e coisa é coisa: traço (Cummings) 0 4.416 10/28/2011 - 13:04 Portuguese
Poesia/Love Carrego o teu coração comigo (Cummings) 0 1.637 10/28/2011 - 12:36 Portuguese
Poesia/Love Em algum lugar que eu nunca estive (Cummings) 0 4.654 10/28/2011 - 12:34 Portuguese
Poesia/Meditation As Boas Ações (Bertolt Brecht) 0 1.945 10/20/2011 - 13:02 Portuguese
Poesia/Dedicated A minha mãe (Bertolt Brecht) 0 5.348 10/20/2011 - 12:58 Portuguese
Poesia/Thoughts A exceção e a regra (Bertolt Brecht) 0 6.016 10/20/2011 - 12:55 Portuguese
Poesia/Meditation Harmonia 0 2.617 10/16/2011 - 10:56 Portuguese
Poesia/Meditation Aquele sorriso foi um bálsamo 0 1.362 10/16/2011 - 10:42 Portuguese
Poesia/Dedicated A Música (Gibran K. Gibran) 0 1.483 10/13/2011 - 22:50 Portuguese
Poesia/Meditation Uma vez, enchi a mão de bruma (Gibran Khalil Gibran) 0 1.838 10/13/2011 - 22:46 Portuguese
Poesia/Meditation Amai-vos um ao outro (Gibran K. Gibran) 0 1.388 10/13/2011 - 22:43 Portuguese
Videos/Music Until the last moment (Yanni) 0 2.431 10/11/2011 - 12:45 Portuguese
Videos/Music Sweep Away, Live at Acropolis (Yanni) 0 2.111 10/11/2011 - 12:20 Portuguese
Videos/Music Keys of imagination (Yanni) 0 2.424 10/11/2011 - 12:01 Portuguese
Videos/Music You Raise Me Up (Josh Groban with African Children Choir) 0 4.388 10/10/2011 - 23:17 English
Videos/Music Ave Maria (Soweto Gospel Choir) 0 3.556 10/10/2011 - 23:08 English
Videos/Music Khumbaya (Soweto Gospel Choir) 0 3.138 10/10/2011 - 23:06 English
Videos/Music Nkosi Sikelel'iAfrika (Soweto Gospel Choir Blessed in Concert) 0 4.670 10/10/2011 - 23:00 English
Videos/Music Amazing Grace (U2 & Soweto Gospel Choir) 0 4.884 10/10/2011 - 22:57 English
Poesia/Poetrix Crepúsculo 0 722 10/10/2011 - 22:23 Portuguese
Poesia/Intervention O amanhã sempre chega... 0 1.896 10/10/2011 - 22:20 Portuguese