Russita Céu no Rio e Peixes nas Árvores

Difícil é rato fazer ninho, atrás de orelha de gato”

A Charica era a minha gatinha. Não sei quem lhe deu o nome, porque quando nasci já ela estava lá em casa. Era uma grande responsabilidade, ser gato na minha casa! Um gato tinha de cumprir a principal tarefa que lhe competia: caçar ratos! E a Charica era muito competente. Não lhe escapava roedor que se aventurasse pela cozinha, em busca de pedaço com que saciar a larica; nem aquele que sorrateiramente rondasse o quintal ou se infiltrasse na capoeira das galinhas para rebuscar qualquer grãozinho de milho perdido ou resto de amassadura com couves e farinha. A Charica, perspicaz, logo lhe dava caça e lhe “chamava um figo”. Costumava governar-se muito bem e apanhava caça variada: pássaros, doninhas, gafanhotos, toupeiras, e à falta de melhor, até moscas e borboletas! Era por isso que a mãe não gostava que déssemos comida de mais à gata, nem que lhe pegássemos ao colo e lhe déssemos demasiados mimos.
- Um gato quer-se vivaço, ladino, esperto e fino! Se os mimamos demasiado ficam molengões e preguiçosos. Para que queremos nós um gato preguiçoso?
Bem, eu achava que a Charica, apesar de não lhe darmos muitos mimos, era extremamente preguiçosa. Deitava-se esparramada ao sol e dormia, muito quietinha. Às vezes eu ia lá pegar-lhe. O seu corpo ficava todo moliqueiro e ela ficava dependurada das minhas mãos, como uma rodilha preta, de olhos amarelos semi-cerrados e rabo caído. Mas assim como era preguiçosa, ela era também extremamente ágil. Bastava ver qualquer coisa a mexer, para logo dar um elegantíssimo salto e fisgar nas unhas um cordel, um pau ou qualquer outro objeto que se arrastasse diante do seu nariz. Passava da imobilidade total e da preguiça extrema, para movimentos rapidíssimos e cheios de genica, num milésimo de segundo. Mas a Charica, como qualquer gato que se preze, não gostava de ser incomodada. Se a aborrecíamos demais desatava a bufar, com a boca aberta: “gggghhhh” e espetava uma sapatada com as unhas afiadas a quem abusasse da sua paciência.
Num certo dia, estava ela deitada à porta da capoeira das galinhas, quando de repente se levantou de um salto, se encarquilhou toda, com o lombo muito redondo, os pêlos todos no ar, e começou a rosnar de tal maneira agressiva, que os dentes caninos sobressaíam dos lábios, como se de um vampiro se tratasse. Aproximei-me devagar, para ver o que tanto a assustava e irritava e qual não foi o meu espanto quando vejo uma cobra ao lado da capoeira das galinhas! Era comprida, grossa, com anéis às cores e pêlo no lombo. Fiquei paralisada, assustadíssima, a olhar para o rastejante. A Charica deu um salto e atirou-se para a frente. A cobra empinou-se e ficou levantada, a assobiar para a gata. Dei um berro enorme e a mãe apareceu.
- Credo, Nossa Senhora de Fátima nos acuda! – Murmurou ela, benzendo-se.
Mas de repente a Charica deu um pulo por detrás da cobra, ergueu as patas com as unhas afiadas, deitou-as ao pescoço do bicharoco e ferrou os dentes por debaixo da cabeça, trincando com força e rosnando alto – rrrroooonnnnfffff! A cobra enroscava-se, desenroscava-se e parecia que ia apertar a gata, mas a mãe entretanto agarrou num pau e deu-lhe com força no lombo. A gata largou a cobra e fugiu assustada enquanto o rastejante se contorcia e a mãe lhe batia na cabeça ainda com mais força.
- Olha, mãe, ela não pára de se mexer.
- Ora! Não queria ter a vida dela, neste momento. Aquilo que vês mexer é a peçonha que lhe vai no rabo. Maldita! Andava aos ovos e aos pintos, de certeza.
Na capoeira ia uma algazarra terrível: as galinhas esticavam os pescoços e cacarejavam assustadas e os pintainhos piavam alto.
- Que valente que foi a Charica, mãe!
- Sem dúvida! Lá esperta é a bichana. “Difícil é rato fazer ninho atrás de orelha de gato!”
- Neste caso, difícil é cobra fazer ninho atrás de orelha de gata! – Disse eu a rir.
- Já me ganhou o dia, abençoada gata! Nem sei o que teria acontecido, se a malvada da cobra entrasse no galinheiro.
A mãe espetou o pau por debaixo da cobra e levou-a dependurada enquanto atravessava o quintal. Avançava devagar, com receio que o fardo se quebrasse ao meio e se espalhasse pelo chão. A cobra balançava no ar, para lá e para cá, ao ritmo das passadas da mãe. A Charica entretanto aproximou-se e farejou a caça, com os pêlos eriçados, esticando as orelhas para trás e rosnando ameaçadoramente. A mãe afastou-a, batendo com o pé no chão:
Ssssstt! Sape gata!
Assustada, fugiu escadas acima, em direcção à varanda, onde se pôs a observar a cena, lambendo as patas dianteiras e esfregando-as sobre as orelhas, numa tentativa frustrada de as limpar.
A mãe abriu a porteira e foi mostrar a cobra à vizinhança. Cada um que aparecia ouvia a história toda, contada por mim em primeiríssima mão. A Gina apareceu também e ouviu a história que lhe contei.
- Ó “Gudita”, não “tivéted” medo? – Perguntava ela com os olhos arregalados. Até parecia que a língua se lhe entaramelava mais na boca. Ela trocava os sons e tinha imensa dificuldade em pronunciar os “ss”, que trocava por “dd”, colocando a língua entre os dentes; os “rr”, que trocava por “gg” e os “ll”, que trocava por “uu”. Em vez de Clara, ou Clarita, chamava-me Russita – “Gudita” – que, diga-se a verdade, sempre soava melhor do que “Cuaguita”!
- Se tive! E se tu tivesses visto, também tinhas…Dei um berro enorme e acho que fiquei com os cabelos em pé. - Disse eu a rir.
- “Cguedo”! Eu ado que ia “dedmaiag”! Que feia que “eua” é! Tem ad cotad deiad  de peeuddd!…Que peuda que eua é!
- Ó “senh’Álice”, é melhor fazer um defumadouro! – aconselhou a senhora Deolinda, que morava na casa ao lado – Eu cá vou já tratar disso. Vou ver se arranjo uns trapos velhos para queimar ali junto ao curral das vacas. O fumo da roupa velha afasta tudo quanto é rastejante para longe, isso não há dúvida nenhuma.
- Pois tem você muita razão. É melhor tratarmos disso depressa. Não sei é se arranjo trapos para queimar. Tinha ali alguns, mas fiz uns novelos para levar à tecedeira, a ver se ela me faz uma manta de retalhos. Preciso de agasalhos para as camas.
- Eu tenho lá trapos que chegam e sobram, posso arranjar-lhe alguns – prontificou-se a senhora Adelaide – Tenho de vir à fonte, que não tenho pinga de água em casa e já lhos trago.
A mãe foi enterrar a cobra num buraco fundo à beira do caminho, num sítio onde ninguém pudesse ir cavar.
- Nunca se deve enterrar estes animais nos terrenos de cultivo, porque as suas espinhas são muito perigosas, se alguém as pisar sem querer – explicou ela, enquanto cavava fundo. Não parou de falar enquanto executou a tarefa, revivendo toda a cena que acabara de acontecer, como se os nervos não lhe permitissem ficar calada:
- Ora não querem lá ver uma coisa destas! Minha Nossa Senhora nos acuda. Maldita! E eu, que detesto cobras. Fico toda arrepiada só de as ver ao longe.
- São perigosas, mãe? – perguntei, para fazer conversa.
- Hã…estas não… - e fez uma pausa, como se tivesse sido apanhada em falta.
- Realmente perigosas, não são…mas comem os ovos e os pintainhos. Só se fosse uma víbora é que podia ser perigosa.
- Uma víbora?
- Sim. Tem a cabeça em forma de triângulo e a sua mordedura pode causar a morte. Eu já devia ter feito um defumadouro. Faço todos os anos na Primavera, mas este ano parece que elas acordaram mais cedo.
- Acordaram? – perguntei curiosa.
- Sim, elas hibernam durante o Inverno. Fazem um sono prolongado, escondidas nas tocas. Nessa altura não se alimentam nem se deslocam.
- Ai é? E não têm fome nem sede? Não morrem à fome e à sede?
- Pois não! Aguentam-se bem, mas quando acordam ficam cheias de fome, como é de esperar e vá de atacar tudo o que conseguem.
- Há! Não sabia! Que estranho! – exclamei pensativa. Imaginei as cobras todas enroscadinhas, no fundo dos seus buracos e pensei como seria que elas faziam com os filhos.
- E fica a família toda junta, ou cada um na sua toca? Perguntei à mãe, curiosa.
- Hã? Família? Não, fica cada uma na sua toca. Elas saem nesta altura para acasalarem. Depois põem os ovos e os filhos nascem e governam-se sozinhos. Quando chega o Inverno já estão suficientemente fortes para sobreviver sem comer durante o período de hibernação.
- Hã? Ovos? Elas põem ovos?!
A mãe riu-se e abanou a cabeça. Tinha acabado o trabalho. Pôs a enxada ao ombro e dirigiu-se para casa.
- Anda, vamos fazer um defumadouro para ver se as afugentamos e se não temos de matar mais nenhuma. Não gosto nada de ter que o fazer. São criaturas de Deus e há-de haver uma razão para andarem neste mundo. Sabes que são muito úteis, porque comem ratos e doninhas, que são uma peste para os cereais. Mas também comem ovos e a criação…
Segui a mãe, pensativa. Tantas coisas que eu não sabia sobre os animais! Afinal as cobras podiam ser úteis. Que pena, a mãe tê-la matado. Devia ter feito o defumadouro há mais tempo…
Daí a pouco a aldeia tresandava a trapos queimados. De cada quintal provinha um cheirete horroroso e um fumo espesso que empestava o ar. A mãe pegou numa foice e numa canastra e foi apanhar erva para dar aos coelhos, recomendando-me que vigiasse a fogueira do defumadouro, para que não se espalhasse. Mas os trapos ardiam sem chama, provocando imenso fumo e nenhuma labareda. Aproximava-se a noite e eu previa um serão animadíssimo, com histórias de arrepiar.

Eulália Gameiro
In: Russita Céu no rio e Peixes nas Árvores
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Saturday, December 22, 2012 - 10:14

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