No prato da sopa eu provo as lágrimas

Para a Paula que morreu de sida e de desprezo.

No prato da sopa eu provo as lágrimas

molho o pão na fome e saboreio esta solidão sem sal

este natal sem iluminação

este amor sem volta.

No prato da sopa

eu provo o caldo frio

mais frio que os olhos dos agarrados

mais amargo que o ódio das mulheres espancadas á porta das igrejas

dessas mulheres cujas lágrimas gelam no rosto

e que um dia os filhos serão assassinos ou poetas ou actores tristes

ou apenas almas esquecidas vagueando nos quartos vazios depois dos pulsos cortados ou das guitarras a soar acordes que não soam bem na vida.

No prato da sopa eu provo as lágrimas e corto o pão no destino dos que morrem antes de tentarem a esperança ou de se comprometerem com o amor.

No prato da sopa passam os turistas e as máquinas fotográficas

que engolem o anonimato dos marginais e dos funcionários públicos.

No prato da sopa passam os turistas e os velhos que pagam para morrer na companhia artificial de uma velha televisão.

No prato da sopa eu olho os teus olhos

mas não consigo cheirar o teu corpo

não consigo amar-te com todo esse veneno.

A morte vai dar-te a mão.

Eu provo o caldo frio, mais frio que os olhos dos agarrados

mais amargo que o ódio das mulheres espancadas á porta dos orfanatos e dos quartéis

que tentam levar uma flor para por nas mãos dos soldados que marcham na linha da frente.

Agora soube que morreste e não consigo ficar triste

que ficar triste é morrer por alguém e sorrir não vai fazer diferença á tua condenação.

Tu não amaste ninguém

ninguém fez um gesto para te amar.

Certas palavras reduziram-se ao efeito de negócio

cada beijo valia uns trocos

cada toque no teu corpo uma desculpa

quando se tinha pressa em sentir o prazer exclusivo do corpo

e o prazer egoísta de tudo colher e nada semear.

Para a Paula que morreu de sida e de desprezo.

LOBO 06

Submited by

Sunday, June 6, 2010 - 14:29

Poesia :

No votes yet

lobo

lobo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 6 years 42 weeks ago
Joined: 04/26/2009
Posts:
Points: 2592

Comments

mariacarla's picture

Re: No prato da sopa eu provo as lágrimas

Jose,

Já to tinha dito e não me canso de repetir: Escreves com muita paixão!

"Eu provo o caldo frio, mais frio que os olhos dos agarrados

mais amargo que o ódio das mulheres espancadas á porta dos orfanatos e dos quartéis

que tentam levar uma flor para por nas mãos dos soldados que marcham na linha da frente."

E no entanto, temperas o caldo com lágrimas salgadas...

Existem muitas Paulas neste mundo, que nos deixam um sabor amargo no caldo cada vez que o comemos, porque nos lembramos.

Beijinho

Carla

Add comment

Login to post comments

other contents of lobo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Prosas/Ficção Cientifica Alguem te olha os olhos escuros 0 1.774 11/18/2010 - 23:05 Portuguese
Prosas/Lembranças Mãe pode ser um momento vago , primeira parte 0 2.063 11/18/2010 - 23:05 Portuguese
Prosas/Others Havia um espírito cheio de pregos 0 1.130 11/18/2010 - 23:05 Portuguese
Prosas/Thoughts Assim continuamos a tirar vermes da cartola. 0 1.166 11/18/2010 - 23:03 Portuguese
Prosas/Contos Anda alguem a desacertar o relogio do mundo parte 5 0 1.816 11/18/2010 - 23:03 Portuguese
Prosas/Thoughts Ter os olhos pousados nas estradas 0 1.176 11/18/2010 - 23:03 Portuguese
Prosas/Others Seguimos os gestos que a cidade desenha nos corpos 0 1.146 11/18/2010 - 23:03 Portuguese
Prosas/Thoughts Estou a perder-me 0 1.090 11/18/2010 - 22:56 Portuguese
Prosas/Others A princesa ama o dragão 0 2.357 11/18/2010 - 22:55 Portuguese
Prosas/Thoughts Menino Jesus vamos jogar ao monopolio 0 1.298 11/18/2010 - 22:51 Portuguese
Prosas/Ficção Cientifica Ainda há policias bons 0 1.510 11/18/2010 - 22:51 Portuguese
Prosas/Others a alma nhaé como o cume da monta 0 1.815 11/18/2010 - 22:50 Portuguese
Prosas/Thoughts Rua da paragem sem álcool 0 1.252 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Others Coisa que a morte não faz 0 1.524 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Thoughts As leituras sobre a natureza 0 1.806 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Thoughts Entrego-me ao rio 0 1.416 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Ficção Cientifica A rapariga dos sapatos vermelhos 3 0 1.646 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Ficção Cientifica Um certo tempo do amor 0 1.938 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Ficção Cientifica Assim de repente 0 1.422 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Thoughts A rapariga dos sapatos vermelhos 0 1.541 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Thoughts A rapariga dos sapatos vermelhos 2 0 1.468 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Others Os cavalos amarrotam o papel 3 0 2.416 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Ficção Cientifica A mulher que tinha sémen nos olhos parte 3 0 1.383 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Mistério Não era milagre andar sobre as águas 0 1.027 11/18/2010 - 22:48 Portuguese
Prosas/Thoughts Os cavalos amarrotam o papel. 2 0 888 11/18/2010 - 22:47 Portuguese