a lenda do arvoredo castanho

“…não me vou lembrar concretamente dos pormenores exactos do evento, mas tentarei aproximar os mesmos, dentro da minha memória, à realidade de então… não consigo, pois, precisar a data, nem o ano nem o mês nem o dia nem a hora mas foi num tempo que passou por mim (ou que eu passei por ele, tempo…) em determinada altura da minha vida… recordo a imagem de tudo o que me rodeava e onde estava inserido: era um amplo descampado rodeado de árvores (uma espécie de clareira) castanhas com folhas castanhas (talvez, por esse pormenor, tivesse sido no Outono)… o chão estava repleto dessas mesmas folhas e o vento não existia… elas formavam portanto uma espécie de tapete fofo e convidativo ao mergulho no meio delas… a idade não me permitia aferir dos benefícios ou malefícios desse pseudo mergulho seco… mas a verdade é que, sem mergulhar, me deixei cair no chão sobre elas… uma enorme quantidade voou em meu redor como aves levantando voo… depois, lentamente, voltaram a descer não já sobre o mesmo lugar… algumas caíram sobre o meu corpo de menino, de criança, de inocente… deixei-me ficar ali por uns momentos olhando o céu azul, sem uma única nuvem… via-me numa espécie de poço com as árvores a servirem de parede do mesmo… por cima, a luz azul… não sei precisar a quantidade de tempo que ali estive mas recordo que adormeci e quando acordei estremeci de frio e vi que o céu já não estava azul… era já prisioneiro do cinzento avermelhado… levantei-me e nesse momento dei de caras com ele… era um homem velho, de costas curvadas com o peso de um molhe enorme de ramos de árvores… na mão direita segurava uma espécie de bengala, aquilo que, mais tarde, vim a saber chamar-se cajado… senti que não senti medo nem desatei a fugir, nem a gritar nem a chorar… aqueles olhos que me fixavam tinham um brilho diferente do que era do meu conhecimento… não reconheci naquele olhar um olhar humano mas apesar desse factor o olhar tinha um esplendor e resplandecia de luz… olhou-me, sorriu-me e estendeu-me a ponta do cajado como que querendo dizer ou perguntar quem eu era e o que fazia ali… como hipnotizado sei que me aproximei dele e toquei com a minha frágil mão na ponta desse pau… senti a rugosidade da madeira mas mantive ali a minha mão… não consigo explicar o que senti mas consigo visionar ainda o que se seguiu: da mão daquele velho saiu uma espécie de luz violeta que percorreu a vara, o cajado ou a bengala ou lá o que era e parou nos meus dedos e senti um suave calor no punho… nesse momento, retirei a mão e olhei para ela para ver o que se estava a passar: nada, a minha mão estava na mesma, não tinha nada que me pudesse ter preocupado… volvi, de novo, os olhos para o sítio em fronte de mim onde estaria o velho… nada estava lá… o vazio era total… aí, tive um frémito de medo e dei meia volta em direcção a casa… o caminho não estava alterado, tudo estava na mesma e quando cheguei a casa, nada de estranho deixei transparecer até porque minha mãe nada me disse: como se eu tivesse saído dali naquele momento e de novo voltasse para trás… dali a pouco senti o cheiro da sopa e lembro-me que naquela noite não consegui dormir… ainda hoje, a minha mão direita está sempre quente e não sei explicar a razão nem sei explicar se aquilo que está na minha memória se passou no real ou se foi um sonho mas por todos os elementos que ainda possuo, continuo crente que algo me tocou naquele fim de tarde, naquela clareira, de árvores castanhas com folhas castanhas espalhadas pelo chão…”

Joaquim Nogueira

Submited by

Tuesday, October 14, 2008 - 22:30

Prosas :

No votes yet

lobices

lobices's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 14 years 1 week ago
Joined: 08/11/2008
Posts:
Points: 316

Add comment

Login to post comments

other contents of lobices

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Fotos/Nature Rosas de Sintra 1 1.833 09/07/2010 - 01:27 Portuguese
Fotos/Nature Rosas de Sintra 1 1.543 09/07/2010 - 01:27 Portuguese
Fotos/Nature Geminadas 1 1.690 09/07/2010 - 01:26 Portuguese
Fotos/Nature Sangue 1 1.546 09/07/2010 - 01:26 Portuguese
Fotos/Nature Carmen 1 1.855 09/07/2010 - 01:26 Portuguese
Poesia/Love BUSCA 3 908 08/05/2010 - 00:40 Portuguese
Prosas/Romance planar 1 1.105 03/06/2010 - 01:48 Portuguese
Prosas/Romance apenas para ti 1 561 03/06/2010 - 01:47 Portuguese
Prosas/Romance carta ao meu filho 1 726 03/06/2010 - 01:41 Portuguese
Prosas/Romance presenças 1 691 03/06/2010 - 01:30 Portuguese
Prosas/Romance aconchego 1 897 02/25/2010 - 04:39 Portuguese
Prosas/Romance sorriso 1 896 02/25/2010 - 04:39 Portuguese
Prosas/Romance sorrir 2 1.005 02/25/2010 - 04:37 Portuguese
Prosas/Romance pintura 1 856 02/25/2010 - 04:36 Portuguese
Prosas/Romance moldura 1 876 02/25/2010 - 04:36 Portuguese
Prosas/Romance silêncio 1 597 02/25/2010 - 04:33 Portuguese
Prosas/Romance Elegia 1 777 02/25/2010 - 04:28 Portuguese
Prosas/Romance Frio 1 869 02/25/2010 - 04:27 Portuguese
Prosas/Romance prova 1 853 02/25/2010 - 04:26 Portuguese
Prosas/Romance hiato 1 1.164 02/25/2010 - 04:23 Portuguese
Prosas/Romance Ensaio sobre a solidão 1 778 02/25/2010 - 04:22 Portuguese
Prosas/Romance mar 1 906 02/25/2010 - 04:20 Portuguese
Prosas/Romance Amor de lobos 2 922 02/25/2010 - 04:19 Portuguese
Prosas/Romance O uivo 1 779 02/25/2010 - 04:15 Portuguese
Prosas/Romance movimento 1 749 02/25/2010 - 04:14 Portuguese