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Frio
“... tenho frio, tenho mesmo muito frio... sinto um arrepio dentro de mim que me faz encolher a alma... dobro-me sobre mim mesmo e procuro a razão do frio que sinto... sinto-me cheio de um vazio que se instala no meu cérebro e deste passa para o meu ser... sinto-me entorpecer e as pernas dobram-se e enregelam... o frio que sinto faz-me tremer... não vejo sol dentro de mim e a lua passou já muito ao largo e não deixou rastos... as estrelas estão longe e não me iluminam o suficiente para aquecer o meu coração... é tudo em vão... todo o esforço que faço para me manter à superfície ainda me magoa mais porque as forças me abandonam e o corpo rejeita energias que gasto nesta viagem... e é apenas a minha imagem... mas olho para lá e não vejo nada que me faça regressar... e desejo cada vez mais sair, fugir mesmo sem saber para onde ir... não é dilema não saber o que aí vem... sabe-se que se está a ir nessa direcção e deixamo-nos ir como folha perdida nas águas turbulentas de uma sarjeta suja de pó e vazia também de tudo... deito-me dentro de mim e adormeço no meu sonho sem dormir... é um sonho acordado de tão cansado que nem o sono sossega e não me dá trégua.... tenho frio, tenho muito frio... sinto um arrepio de novo e mais uma vez me encolho e olho para dentro do copo que tenho na mão... é um copo vazio como eu e também está frio... peço a alguém que o encha de novo e dizem-me que não, que já bebi demasiado... mas eu sei que não, ainda consigo entender o que me é dito e porque razão ouço este imenso grito... tenho frio, tenho muito frio... saio num tropeço dum trôpego andar... passo pelo espelho e alguém do lado de lá olha para mim e sorri... é alguém que eu já conheci, alguém que já esteve aqui comigo, dentro de mim... nunca mais o vi... por onde andará?... no entanto, foi simpático, acompanhou-me até à saída... não o vi mais... não havia mais espelhos naquela sala daquele bar... abri a porta de par em par... respirei o ar frio da noite ainda mais quente do que o frio que eu sentia dentro de mim... olhei o mar que se estendia para lá daquelas escadas que desciam para ele, ele que me esperava depois do abismo... olhei-o e ele riu-se numa risada tremenda que me fez encolher e de novo ver que já nada estava ali a fazer... preciso de dormir, mas um sono que jamais termine... preciso de dormir e afinal o carro está ainda ali... é aquele preto... tem aros prateados nos faróis mas não tem luz, estão apagados como eu... a chave está na minha mão e abrir a porta não custa... já nada me assusta porque o frio me tira a percepção da realidade... tenho apenas uma vontade, dormir, deixar-me ir e não saber nem como nem para onde.... tenho frio, tenho muito frio...”
Joaquim Nogueira
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Comentários
Re: Frio
Texto bem escrito, bem enquadrado no tema!
:-)