CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

O uivo

Levantou-se com um sobressalto, que a fez erguer a coluna num impulso sôfrego, um nó de desespero atado na garganta. Segurou-a com uma das mãos, como se contivesse a respiração ainda ofegante. A escuridão estava toda emersa numa tonalidade azul, criando uma atmosfera quase irreal no interior do quarto. Uma estranha luminosidade vinha do exterior, e penetrava no quarto pelo espaço entre as velhas cortinas desbotadas. Dirigiu-se à janela como se algo a chamasse. Espreitou por trás do veludo envelhecido do reposteiro e viu um vidro quebrado, estilhaçado no canto inferior esquerdo. Formava um desenho perfeito de uma teia. Tocou-lhe e automaticamente levou o dedo à boca, sugando o sangue do corte que acabara de sofrer. Soltou um breve gemido de dor, frustrado de fúria. Lá fora, a lua erguia-se gigantesca, majestosa, rodeada de uma aura azul intensa, que cobria todas as coisas de improváveis reflexos. Sentiu um incómodo arrepio, como uma fria corrente enferrujada a mover-se no interior da espinha. O espaço à sua volta, de súbito, ganhava novos contornos. Estremeceu perante um breve desacerto do mundo. Julgou ouvir ruídos, um estalar de madeira, ecos de passos atrás de si, o som das sombras a mover-se pelas paredes do quarto. Voltou-se e tremeu. Deu dois passos incertos, esquecida do próprio corpo. O chão estava alagado; os pés descalços enregelados. Ouvia uma torneira aberta, que pingava lentamente. O som adensava-se segundo a segundo, ecoava pela casa toda, cada vez mais próximo, cada vez mais grave, cada vez mais alto, com requintes de tortura. Segurou a cabeça entre as mãos, crispando os dedos entre os cabelos, tapando os ouvidos quase até ao limiar da dor. Enlouquecia. Abriu as portadas e saiu. Correu para a floresta que se estendia, negra e silenciosa, a sul da casa. Não se vestiu. A camisa branca de algodão finíssimo esvoaçava enquanto corria. Um som distante, longínquo, como um uivo, envolvia agora todo o espaço entre as árvores. Tudo à sua volta permanecia assombrosamente azul. Olhava para o céu e os seus olhos cintilavam, fazendo perguntas às estrelas ausentes. Correu a um ritmo alucinante, rasgando a noite escura com a sua deslumbrante figura pálida. Se pudéssemos congelar o momento, encontrar-se-ia a mais bela fotografia do mundo. Era atrás do lobo que corria. Um lobo que conhecia sem nunca ter visto, que a chamava sem nunca ter tocado um fio dos seus cabelos. Sonhara com ele durante seis noites seguidas, um segundo mais cada noite, até que o sonho a puxou para dentro e ela foi ao seu encontro. Correu atrás dele, movida pelo sonho, dominada pela loucura. Corria como se perseguisse a própria vida, e gritava. Gritava o nome do seu amor, como se lhe respondesse. Correu até ficar sem forças, lentamente vergou os joelhos e deixou-se cair no chão húmido. Tinha chovido nas horas anteriores, muito certamente. Cravou as mãos na terra até que esta lhe doesse, negra e perfumada, entre as unhas. Sentiu um frio muito fino percorrer-lhe a parte de trás do pescoço, desde a nuca, descendo até à cintura. Depois um calor imenso a escorrer-lhe pelos braços. Tinha o lobo junto do seu corpo, o seu olhar ferido de medo. Aproximou-se do seu rosto, conseguia sentir-lhe a respiração na face gelada. Mergulhou os dedos finos no pêlo em redor do pescoço, num gesto ambíguo. Como se segurasse, como se repudiasse. Sentia-o roubar-lhe o sopro de vida, ao mesmo tempo que a alimentava de uma inexcedível sensação de eternidade. A escuridão era tão intensa que a noite parecia estender-se sobre todas as coisas, sem limites, insondáveis as suas profundezas. Reinava uma calma inquietante. O seu coração pulsava acelerado dentro do peito, o olhar num fervilhar insustentável de paixão. Olhou à volta, demorando um segundo a reconhecer o espaço do quarto. Um segundo depois, o outro lado do pesadelo: Está um homem ao seu lado. Está frio. O branco dos lençóis tingido de vermelho. Do corpo imóvel e pálido escapa-se um fio rubro e espesso. O olhar preso no infinito. Um último gesto de angústia suspenso na mão. A boca entreaberta, fixo nos lábios um suspiro, com o nome do seu amor.

(prefácio de M. F. no meu livro “Lobices”)

Joaquim Nogueira

Submited by

domingo, setembro 7, 2008 - 08:06

Prosas :

No votes yet

lobices

imagem de lobices
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 12 anos 51 semanas
Membro desde: 08/11/2008
Conteúdos:
Pontos: 316

Comentários

imagem de Henrique

Re: O uivo

Texto bem escrito, bem enquadrado no tema!

:-)

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of lobices

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Videos/Perfil 163 0 2.085 11/24/2010 - 21:48 Português
Fotos/ - 521 0 2.377 11/23/2010 - 23:35 Português
Fotos/ - Amanhecer a leste do meu quintal 0 1.666 11/23/2010 - 23:35 Português
Fotos/ - Candeeiro em vertigem de luz 0 1.818 11/23/2010 - 23:35 Português
Fotos/ - Disneyland - subir o rio 0 2.008 11/23/2010 - 23:35 Português
Fotos/ - O Jardim dos Sonhos - Disneyland 0 1.860 11/23/2010 - 23:35 Português
Fotos/ - O Palácio das Fadas - Disneyland 0 1.749 11/23/2010 - 23:35 Português
Prosas/Romance BUSCA 0 1.426 11/18/2010 - 23:08 Português
Prosas/Romance Tenho frio 0 1.469 11/18/2010 - 23:05 Português
Prosas/Romance Carta eterna 0 1.439 11/18/2010 - 22:57 Português
Prosas/Romance Carta 0 1.253 11/18/2010 - 22:47 Português
Prosas/Romance Tela 0 1.209 11/18/2010 - 22:45 Português
Prosas/Romance Parir 0 1.439 11/18/2010 - 22:45 Português
Prosas/Romance Ida 0 1.368 11/18/2010 - 22:45 Português
Prosas/Romance Binário 0 1.093 11/18/2010 - 22:45 Português
Prosas/Romance acordar 0 1.648 11/18/2010 - 22:45 Português
Prosas/Romance meu avô 0 1.257 11/18/2010 - 22:45 Português
Prosas/Romance subentender 0 1.366 11/18/2010 - 22:40 Português
Prosas/Romance a lenda do arvoredo castanho 0 1.368 11/18/2010 - 22:40 Português
Prosas/Romance terra 0 1.311 11/18/2010 - 22:40 Português
Prosas/Romance emoções 0 1.429 11/18/2010 - 22:40 Português
Prosas/Romance desenho 0 1.219 11/18/2010 - 22:40 Português
Prosas/Romance despido 0 1.250 11/18/2010 - 22:40 Português
Fotos/Natureza Rosa do meu quintal 1 1.851 09/07/2010 - 00:41 Português
Fotos/Natureza Rosas de Sintra 1 2.273 09/07/2010 - 00:27 Português