Maldita Guerra
Paulo Monteiro
Cresci ouvindo minha avó materna contar que sua mãe era uma menina alegre até que os exércitos da Tríplice Aliança entrassem no Paraguai. Com a guerra veio a destruição das propriedades, a fome, a doença, as violências contra as famílias. Seu pai e sua mãe, meus trisavós, morreram. Minha bisavó, ainda criança, ficou como arrimo de família.
Já no final da guerra ia ao acampamento brasileiro, conduzindo seus irmãozinhos, à procura de comida. Nessas idas e vindas fez amizade com um homem de meia-idade, com quem conversava e para o qual revelou seu drama e dos seus irmãos.
Um dia ele lhe disse que estava retornando para o Rio Grande do Sul, para uma cidade chamada Cruz Alta, onde deixara a fazenda, a esposa e filhos pequenos. Abriu seu coração duro, de homem da campanha, acostumado aos horrores das guerras. Admirava o cuidado que ela demonstrava para com os irmãos. E convidou-a para que, juntamente com os pequenos, o acompanhasse para os pagos cruz-altenses. Ali não seriam tratados como criados, mas como filhos.
A menina confiou no gaúcho. Era um dos que destruíram o Paraguai, mas sentia que dentro do peito daquele homem batia um coração humano. Aceitou o convite.
No outro dia, cedo, a guria e seus irmãos estavam aboletados numa carreta. Logo cruzaram a fronteira do Paraguai, atravessara Corrientes e Entre-Rios. Num certo dia chegaram a Cruz Alta.
Após descer do cavalo e abraçar a esposa de quem estivera separado durante largo tempo, apresentou-lhe os recém-chegados. Contou a história daquelas crianças e ordenou que fossem recebidos dentro de casa e aceitos como filhos. A seus filhos legítimos mandou que tratassem os órfãos de guerra como a irmãos de sangue. E assim foi feito. Até certo tempo.
Até certo tempo porque alguns anos depois a paraguaiasinha, na qual os traços guaranis apresentavam exoticidade, e o filho do bem-feitor se apaixonaram. Casaram.
Pouco depois a jovem esposa chamou o marido e lhe disse que sabia que ele possuía um velho relacionamento com uma negra, ex-escrava, que lhe dera dois filhos. Estes tinham sido abandonados pela mãe, da qual não se teve mais notícias.
– Eu sei o que é não ter pai, nem mãe. Vai buscar teus filhos. Vou criá-los como se fossem meus filhos.
O homem não discutiu. Encilhou dois cavalos. Montou num deles e partiu levando o outro ajojado.
Pouco tempo depois retornou trazendo dois menininhos engarupados.
– Deixa que eu apeie nossos filhos! – disse a mulher. E estreitou os mulatinhos nos braços.
Criou-os como seus filhos, junto com os vários filhos que teve.
Por isso, não consigo escrever Guerra do Paraguai. Para mim será sempre guerra contra o Paraguai, uma guerra contra crianças como minha bisavó. Também por isso é que odeio todas as guerras, pois acabam vitimando inocentes. E porque as odeio escrevo sobre elas. Para exorcizá-las. Mas odeio mais ainda aqueles que fazem as guerras e as revoluções necessárias, glosando uma frase famosa.
(O Autor leu a crônica acima, ao final de palestra que pronunciou sobre a contribuição passo-fundense com o esforço de guerra contra o Paraguai, no dia 27 de setembro de 2009, durante o Primer Encuentro Internacional de Historia Respecto a lãs Acciones de Armas Sobre las Costas del Rio Uruguai em la Guerra del Paraguay – Guerra Guazù, realizado no Club Progreso de Paso de los Libres, Argentina).
Submited by
Prosas :
- Login to post comments
- 2126 reads
other contents of PauloMonteiro
Topic | Title | Replies | Views |
Last Post![]() |
Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia/Love | Oração do Poeta | 0 | 1.907 | 12/19/2012 - 13:38 | Portuguese | |
Prosas/Others | BOCAGE: O POETA CONTRA A HIPOCRISIA | 2 | 3.060 | 06/30/2012 - 21:52 | Portuguese | |
Prosas/Others | Anistia para Bocage! | 2 | 3.108 | 06/30/2012 - 21:39 | Portuguese | |
Prosas/Others | A personalidade violenta de Júlio de Castilhos | 0 | 2.562 | 06/18/2011 - 17:21 | Portuguese | |
![]() |
Fotos/Profile | 845 | 0 | 2.523 | 11/24/2010 - 00:36 | Portuguese |
Prosas/Others | LAURO RODRIGUES | 0 | 2.904 | 11/19/2010 - 00:08 | Portuguese | |
Prosas/Others | Traição e massacre em Porongos | 0 | 2.609 | 11/19/2010 - 00:05 | Portuguese | |
Prosas/Others | Razões que me Levaram a Escrever O Massacre de Porongos & Outras Histórias Gaúchas | 0 | 3.365 | 11/19/2010 - 00:05 | Portuguese | |
Prosas/Others | A TROVA NO ESPÍRITO SANTO (História e Antologia) | 0 | 2.936 | 11/19/2010 - 00:05 | Portuguese | |
Prosas/Others | Ensinando o ABC | 0 | 2.532 | 11/19/2010 - 00:05 | Portuguese | |
Prosas/Others | JUCA RUIVO | 0 | 3.952 | 11/18/2010 - 23:56 | Portuguese | |
Prosas/Others | VARGAS NETTO | 0 | 2.084 | 11/18/2010 - 23:56 | Portuguese | |
Prosas/Others | AURELIANO DE FIGUEIREDO PINTO | 0 | 2.386 | 11/18/2010 - 23:56 | Portuguese | |
Prosas/Others | Academia Passo-Fundense de Letras Elege Nova Diretoria | 0 | 3.365 | 11/18/2010 - 23:56 | Portuguese | |
Prosas/Others | A comunicação na Justiça Brasileira | 0 | 2.123 | 11/18/2010 - 23:55 | Portuguese | |
Prosas/Others | Galileu é meu pesadelo | 0 | 2.390 | 11/18/2010 - 23:55 | Portuguese | |
Prosas/Others | Passo Fundo e a Guerra Contra o Paraguai | 0 | 3.458 | 11/18/2010 - 23:51 | Portuguese | |
Prosas/Others | Maldita Guerra | 0 | 2.126 | 11/18/2010 - 23:51 | Portuguese | |
Prosas/Others | Academia Passo-Fundense de Letras revela novos escritores | 0 | 3.710 | 11/18/2010 - 23:50 | Portuguese | |
Prosas/Others | O Centenário Esquecido do Tratado de Limites Brasil-Peru | 0 | 2.132 | 11/18/2010 - 23:48 | Portuguese | |
Prosas/Others | Academia Passo-Fundense de Letras Promove Lançamento de Romance Sobre “Caso Adriano” | 0 | 2.761 | 11/18/2010 - 23:48 | Portuguese | |
Prosas/Others | Federalistas, pica-paus, libertadores e chimangos | 0 | 3.658 | 11/18/2010 - 23:48 | Portuguese | |
Prosas/Others | O negro em Passo Fundo | 0 | 3.278 | 11/18/2010 - 23:48 | Portuguese | |
Prosas/Others | A Rebeldia do Cadete Euclydes da Cunha | 0 | 2.663 | 11/18/2010 - 23:48 | Portuguese | |
Prosas/Others | 1883/2009 – 116 Anos de Ativismo Cultural | 0 | 2.503 | 11/18/2010 - 23:48 | Portuguese |
Add comment