Uma Questão de Fé

Se o vento soprasse de mansinho, a água correria num sentido oposto e os peixes deslizariam já pelas fragas soltas que se vestem de um musgo acastanhado. Mas não! A brisa que passa nem se sente, e o vento do norte vem quase sempre neste mês de Agosto mas de passagem e é à noite que se sente com mais intensidade. Ouço-o sempre antes de dormir. Chega fazendo os seus estragos, derrubando os milhos e o centeio e algumas árvores. O eco ruidoso que deixa à sua passagem, é revelador da sua força por estas paragens nas terras altas do granito.
Quando cheguei, a água deste lado mantinha-se calma e um contraste perfeito com os ramos dos amieiros e as carumas lânguidas dos pinheiros que sobrevoam as correntes. Olho as margens do poço profundo e os peixes que se regalam com esta calmaria, olham-me de soslaio sem saberem se hão-de ir ou ficar. Os que por aqui abundam, têm quase todos a mesma cor, coloco um pé na água para lhe sentir a frescura e abafar este calor que me inunda o corpo e é vê-los a deslizar uns para um lado, outros para o outro, a correr feito loucos, escondendo-se por detrás das rochas. Sentei-me num monte de areia, que estava rodeado de um outro cheio de relva que cresceu ao sabor do vento, e ali fiquei a observar a paisagem. O sol vai quase a passar a linha que quase toca o céu visto daqui, a serra deixa um colorido nas águas que mais parecem luas gigantes a boiar no meio do oceano.

Irrompem pelo meu silêncio vozes soltas que vão chegando. Crianças em êxtase e os pais com os olhos extasiados pela paisagem que se lhes oferece terna e aconchegante. Procuram um lugar certo para ficar, a tagarelar, elas, as mães despem as crianças, colocam-lhes creme no corpo, para protecção solar, bóias para aquelas que não sabem nadar. Olho à minha volta e a água está cada vez mais apetecível. Lá mais ao fundo onde o sol não chega a fundura das águas deixa uma cor diferente na corrente. Falta-lheo brilho das pequenas partículas de areia, brilhantes, que eu pegava sempre quando em criança vinha nadar. A linha estava bem traçada e não avançava mais do que 3 ou 4 metros desde o início da margem. Faltava-me ainda muito para ter a segurança que tenho hoje. Nadar é entrar na água e afundar-me nela, respirar e viajar para outro mundo; inspirar, expirar, e deixar-me ir até me cansar. Dispo a roupa e entro de uma só vez cortando ás aguas até ao meio daquele poço - o mais fundo daquela parte do rio. Desapareço por instantes, para depois vir à tona da água e deslizar em pequenas braçadas para um lado e para outro até conseguir aguentar o maior tempo possível. A minha vida na cidade tem sido nestes últimos meses, um pouco parada, para além do Tachi/Chikung, pouco exercício faço. Deixei a natação e noto já um certo esforço para ir e voltar sem ter que parar. Resolvo descansar um pouco e saio da água do outro lado de onde se avista uma casa antiga que sempre admiro quando cá venho. Nunca lá estive. Será bom ir explorar. Enquanto galgo as rochas que se misturam em montes de areia, vou apanhando algumas pedras, como faço sempre. São lindas as suas cores, no seu brilho aqui largadas ao sol e às enxurradas de inverno. Já sem saber como as trazer para o outro lado deposito-as num canto e olho em redor à procura de algum trilho, por onde possa passar para as levar e guardar no saco que ficou na outra margem. Uma voz me desperta, olho para trás e vejo um amigo de infância, dos tempos da escola. Falámos durante algum tempo. Lembrámos outros que também se foram tal como nós, das brincadeiras, dos jogos, dos concursos ali mesmo naquele local que nós inventávamos e pergunto-lhe:

_ Mário lembras-te das nossas loucuras, das nossas brincadeiras de crianças, quando nos predispúnhamos a saltar do topo daquele pinheiro. Bem agora está mais alto, mas mesmo assim, para crianças da nossa idade era um gigante não achas?

Ele ria e dizia em tom baixo, como se temesse que alguém ouvisse:
- E se soubesses o medo que eu tinha de fazer aquilo. Só o fazia porque o teu irmão e os outros o faziam também e sem receio. Mas o meu coração batia tão forte. Sabes que são perigosos estes jogos. Devíamos tentar saber o que estaria aqui. Vê só as rochas enormes que por aqui abundam.
- Sim tens razão Mário, eu não saltava. Nunca consegui. O que mais gostava era, daquele jogo em que mergulhávamos para ver quem conseguia aguentar mais tempo debaixo de água. Esse sim eu gostava. Mas sabes. Eu sempre ouvia a minha avó e a minha tia dizer que as crianças trazem sempre por perto o seu anjo da guarda. Lembras-te um dia em que lá na aldeia, resolvemos ir explorar casas velhas a cair de podres? Isso era perigoso. Entrávamos por lá adentro e atravessávamos as traves já a desfazerem-se sem soalho á volta. Eu numa dessas brincadeiras caí e só me lembro do meu vestido branco fazer balão. Foi o meu pára-quedas. Fui até lá abaixo, quase a planar. Não me vais dizer que foi o meu vestido que me ajudou. Estava lá ele de certeza.

Uma gargalhada saiu-me bem certeira junto aos olhos do Mário que sorria com gosto olhando os meus. Ouve-se uma voz de mulher que ecoa por entre o pinheiral. Era a esposa do Mário avisando-o de que estavam já prontos para irem embora. Despedimo-nos e vi-o entrar na água e deslizar rápida e suavemente até atingir a margem do outro lado, onde tínhamos estacionado os carros. Sorri lembrando que também ele aprendeu tal como eu a nadar tão pequeno. Estávamos os dois no nosso espaço. Terra rude e ao mesmo tempo transmitindo segurança, tranquilidade, agreste e selvagem que nos viu nascer. Segui-o e entrei de mergulho e ali fiquei, ora nadando, ora boiando nas águas calmas e serenas a olhar o céu. Boiar é para mim de uma facilidade, que quase adormeço, é como estar deitada a descansar. Quando resolvo voltar vou deslizando ora debaixo de água, ora fora dela e quando os meus pés atingem as rochas junto à margem, vejo um homem de estatura tão pequena, que mais parece uma criança. Olho á minha volta e já só restávamos nós, todos se tinham ido embora. Era quase hora de jantar. O homem olhava-me como se me conhecesse, mas eu fui-me aproximando e vi que nunca o tinha visto por aquelas bandas. Quando cheguei junto dele, perguntou-me se tinha visto alguém chegar ali com uma bicicleta e que andava à procura dos seus familiares. Eu olhava-o enquanto me vestia e a conversa desenvolveu-se de tal forma, que quando dei por mim já estávamos a entrar quase no lusco-fusco. Ele esqueceu a família que procurava e eu esqueci que meus pais deviam estar à minha espera também. Falamos de Fé, de Deus, de Anjos, de pessoas, do amor, de alegrias de tristezas de épocas vividas e por viver. Contudo, enquanto conversava com ele, fui notando alguns traços que nada têm a ver com aquilo que conhecemos na forma humana física e visível. Embora ele se apresentasse assim, tinha um corpo muito magro, aí com 1 m de altura, orelhas grandes, esguias e bicudas no topo, boca grande para a estatura e os olhos apresentavam-se com uma cor não definida, ora verdes, ora cinza, ora azuis, mas quase sempre se apresentaram sem cor.

Quando lhe sugeri que fossemos, que estava a ficar tarde, indicou-me a casa que eu sempre olho quando lá vou, e contou-me a história das famílias que a habitaram, dizendo-me que morava ao lado dessa casa para trás de um outeiro. Mas eu sempre que aqui venho nunca vejo nenhuma casa naquele sítio e lembro que para ser um habitante daquela zona, havia também ausência de sotaque. Então deduzo que talvez fosse ali só para falar comigo e talvez tivesse uma mensagem importante para mim. Estou convicta de que já sei qual a mensagem, que já decifrei uma parte dela.

Ouço a voz da minha mãe, misturada com a corrente do rio que passava silenciosa, abro os olhos e pergunto-lhe:

_ Onde está ele? O meu Anjo?
Ela sorri para mim, olhando para um e outro lado e diz-me:
-Adormeceste e sonhaste com anjos. Tu e as tuas crenças levar-te-ão longe. É preciso não perder a fé

Submited by

Tuesday, January 12, 2010 - 23:02

Prosas :

No votes yet

ÔNIX

ÔNIX's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 12 years 45 weeks ago
Joined: 03/26/2008
Posts:
Points: 3989

Comments

jopeman's picture

Re: Uma Questão de Fé

Um conto que flutua pelo sonho e pela crença que vence medos e nos leva pelo mar adentro, pela vida fora.

gostei bastante :-)

bjos

ÔNIX's picture

Re: Uma Questão de FéP/jopeman

João,

Gostei que tivesse vindo ler. Espro pela tua participação

Beijos

Add comment

Login to post comments

other contents of ÔNIX

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Fotos/Others Natal 1 1.511 12/29/2009 - 03:30 Portuguese
Fotos/Others Rebanho Multicolor 2 1.006 12/29/2009 - 03:25 Portuguese
Fotos/Others "Tyranossaurios Rex" Espreitou! 1 2.014 12/29/2009 - 03:21 Portuguese
Prosas/Others Um Sonho a Desaguar no Teu Olhar(P/Saozinha) 6 1.052 12/25/2009 - 14:40 Portuguese
Prosas/Romance Não Morras Já 2 1.410 12/18/2009 - 09:35 Portuguese
Poesia/Disillusion Pérola no Meio do Nada 24 1.296 12/16/2009 - 20:56 Portuguese
Poesia/Passion Saudades de Ti 26 1.252 12/14/2009 - 15:28 Portuguese
Poesia/Meditation Não Façam Chorar as Flores do Meu Jardim 20 1.038 12/13/2009 - 13:50 Portuguese
Poesia/Dedicated Nascimento 30 1.091 12/11/2009 - 12:44 Portuguese
Prosas/Romance O Mundo Para Lá dos Espelhos 10 972 12/09/2009 - 11:10 Portuguese
Poesia/Meditation Unificação 22 1.151 12/07/2009 - 21:49 Portuguese
Prosas/Romance Encostada às Margens do Silêncio 0 1.763 12/06/2009 - 00:54 Portuguese
Prosas/Romance Vem Caminhar Comigo 6 1.341 12/03/2009 - 23:40 Portuguese
Poesia/Meditation Desejos Eruditos (P/Vony Ferreira) 16 1.202 12/02/2009 - 10:01 Portuguese
Poesia/Dedicated Profecias 14 808 12/02/2009 - 00:42 Portuguese
Prosas/Lembranças Carta a Uma Amiga 7 1.525 11/29/2009 - 23:20 Portuguese
Poesia/Friendship Sonhos Teus(P/ Ana Coelho) 12 823 11/23/2009 - 17:11 Portuguese
Poesia/Sadness Gemidos 24 5.137 11/23/2009 - 17:07 Portuguese
Poesia/Friendship Melodias (Dueto C/Henrique Fernandes) 18 1.121 11/23/2009 - 13:41 Portuguese
Poesia/Dedicated Poetas 18 959 11/22/2009 - 21:33 Portuguese
Prosas/Others Gaia a Terra Viva 4 944 11/21/2009 - 17:29 Portuguese
Fotos/Painting Flor de Lotus 1 1.888 11/20/2009 - 23:47 Portuguese
Prosas/Romance Sob o Sol do Teu Peito 2 1.020 11/19/2009 - 11:53 Portuguese
Poesia/Dedicated Afagos 18 1.089 11/19/2009 - 11:24 Portuguese
Poesia/Love Amor meu... 20 1.391 11/19/2009 - 10:56 Portuguese