ANTICRISTO

Grande obra de Lars von Trier, o seu monumento para a história do cinema, tem o trauma no seu cerne. Neste filme, o trauma aparece ligado àquilo a que podemos chamar a pergunta fundamental, a pergunta para qual nunca se consegue achar formulação, aquela que mais inquieta e que mais se esquece, aquela que raro está presente como tal.
Essa pergunta diz respeito ao medo? Diz. Mas medo de quê? Medo de nada. Nem sequer medo da morte. Medo por se estar à mercê de tudo? Sim, é a condição humana.
Como formular isso, no que diz respeito a este filme? Por um lado, só se pode trair a Natureza de onde vimos, por outro lado, trazemos igualmente a Natureza connosco, mas como uma doença, como uma vontade colossal, uma voracidade que necessita de ser satisfeita. Este dilema concentra-se todo no corpo e espírito de uma mulher, e é igualmente deste dilema vivo que provém o acaso traumático da sua história, cujo motivo imediato, ou emblema, é apresentado no início.
A câmara lenta torna o líquido sólido e torna o sólido gasoso, é um procedimento cinematográfico ambíguo, tanto pode petrificar como pode dissolver. Com a imagem em câmara lenta, uma mulher (Charlotte Gainsbourg) e um homem (Willem Dafoe) fazem amor completamente entregues à violência do desejo, debaixo do chuveiro, em cima da mesa, em cima da máquina de lavar roupa, derrubando tudo à volta. Com a câmara lenta, a água do chuveiro, a água de uma garrafa que é derrubada, cai espessamente, as gotas têm volume e peso. Estas imagens são montadas em paralelo com as imagens, também em câmara lenta, de um bebé que acorda e que sai da sua cama a caminho da janela, atraído pela neve que cai, como uma névoa. Ao contrário do que faz com a água, a câmara lenta torna a neve ainda mais leve, quase como se fosse um ar. A criança atira-se da janela enquanto os corpos dos seus pais são atravessados pelo orgasmo, presos nele. Eis o emblema do filme e o motivo imediato do trauma nesta história.
E o casal vai para a casa de madeira no meio da floresta densíssima, verdíssima. Vai para o interior de uma Natureza que parece conter uma potência afogada, sempre pronta a libertar algo de si. Porque há a questão homem/mulher para resolver, a questão mítica da atracção e da aniquilação do homem e da mulher, o filme prossegue, extremando a figuração dos actos e das visões das personagens, contrastando-os com a beleza desmedida e nervosa da Natureza.
O filme aborda tudo isto na raiz. À sua medida, vai directamente ao osso. É assustador como o são as representações das tentações de Jeronimus Bosh ou como as representações bíblicas de Rembrandt. Por exemplo.
O filme tem somente dois actores, Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe, que evoluem numa fecunda correspondência. Charlotte Gainsbourg entregou-se ao papel da mulher que carrega o trauma, da mulher que está sujeita a todas as experimentações, a mediadora, a passagem da Natureza, o representante e o objecto da pergunta fundamental acima mencionada. Quando estamos perante uma interpretação destas, um trabalho de gigante feito pelo mais frágil dos seres, o actor, um trabalho que faz de Charlotte Gainsbourg uma das maiores actrizes vivas, a única resposta admissível só pode ser a da veneração.

Recomendo vivamente este filme, nota máxima!

Submited by

Monday, February 22, 2010 - 13:37

Críticas :

No votes yet

Henrique

Henrique's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 9 years 48 weeks ago
Joined: 03/07/2008
Posts:
Points: 34815

Add comment

Login to post comments

other contents of Henrique

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Meditation ODOR RÉPTIL DA ALMA 7 626 04/20/2010 - 22:37 Portuguese
Poesia/Gothic MENTIRA 3 629 04/19/2010 - 10:41 Portuguese
Poesia/Thoughts ANTEONTENLOGIA 6 1.626 04/17/2010 - 09:47 Portuguese
Poesia/Thoughts CÁRCERE LÂNGUIDO 6 1.046 04/15/2010 - 14:20 Portuguese
Poesia/Love MAIS QUE BONITA, HUMANA 12 1.024 04/14/2010 - 18:32 Portuguese
Poesia/Love NÃO TENHAS MEDO DE SER O MEU MAR 16 1.913 04/11/2010 - 02:03 Portuguese
Fotos/Nature VERTIGEM SELVAGEM 2 1.708 04/10/2010 - 22:07 Portuguese
Poesia/Meditation MORTALFOBIA 7 1.728 04/08/2010 - 21:11 Portuguese
Fotos/Personal ESCURO POÉTICO 1 797 04/02/2010 - 14:47 Portuguese
Fotos/Personal OCULTA 1 1.642 04/02/2010 - 14:39 Portuguese
Fotos/Landscape CÉU MEU 0 1.956 03/26/2010 - 17:17 Portuguese
Poesia/Fantasy VERACIDADE VER A CIDADE COM FLORES 7 1.139 03/23/2010 - 19:50 Portuguese
Poesia/Love TU E EU É O NOME DO AMOR 11 1.038 03/23/2010 - 19:08 Portuguese
Poesia/Thoughts TEORIAS DE SUICÍDIO BASBAQUE 10 1.174 03/23/2010 - 08:33 Portuguese
Fotos/Nature OLÁ VIDA 1 947 03/21/2010 - 14:58 Portuguese
Fotos/Landscape MARÉ VERDE 1 2.217 03/20/2010 - 16:09 Portuguese
Fotos/Personal ESCRAVA MÃO 1 2.781 03/19/2010 - 23:01 Portuguese
Poesia/Birthdays DEZASSEIS ANOS DE ADEUS PAI 23 3.645 03/19/2010 - 11:20 Portuguese
Poesia/Gothic SATÂNICA MENTE 7 1.017 03/18/2010 - 03:26 Portuguese
Poesia/Sadness VOZ SEPULTADA NO SOFRIMENTO 8 302 03/18/2010 - 01:42 Portuguese
Poesia/Aphorism PRIMA sempre VERA! 5 966 03/17/2010 - 14:21 Portuguese
Prosas/Others NÃO POSSO PROMETER O AMANHÃ 2 1.879 03/17/2010 - 10:12 Portuguese
Poesia/Passion NUDEZ DO SENTIR 2 1.250 03/17/2010 - 10:11 Portuguese
Poesia/Meditation ALÍVIO DA DOR 3 1.061 03/17/2010 - 10:11 Portuguese
Prosas/Others CORAIS DE AMOR 2 1.618 03/17/2010 - 10:11 Portuguese