Madrugada

Soltou-se em vapor etéreo, numa nuvem de telergia.
O sangue do corpo astral, em massa gaseificada.
No cemitério deserto, a madrugada dançava.
As chamas ténues, persistiam.
Deambulavam, vagabundos espectros transparentes, por entre as horas brancas.
O vento passava de mansinho.
Espalhava o perfume doce das flores secas.
Gemia um violino.
Caiam folhas, como lágrimas.
Preenchiam notas tristes, espaços vazios e memórias.
Do que há muito se perdeu.
Um buraco, onde batia um coração.
Não há olhares, nem gestos, nem vozes.
Só passos. Silenciosos lamentos.

Sentou-se a sombra sobre o mármore, olhando a lua transparente.
Doía-lhe o corpo asfixiado.
Viu outras sombras, que pareciam ignora-lo.
Quis perguntar o caminho, mas ninguém soube responder.
Avançou, sem ver a luz, em direcção ás outras luzes coloridas e brilhantes.
Incendiavam o horizonte, numa serpente iluminada.
Seguia o caminho de casa.
Dissipava-se a distancia. Contornos esbatidos.
A paisagem precipitava-se. Cores em fuga.
Embrenhou-se no burburinho da hora de ponta e apanhou o autocarro.
Na confusão vibrante do mar de gente que o envolveu, deixou-se guiar por antigos hábitos, ainda recentes.
Recusava-se a aceitar.
Saiu para a rua.
Na praça, tão familiar, erguia-se um monumento imponente.
A sua sombra, invadiu as pedras da calçada, espalhou-se  entre os passos, confundiu-se com o eco dos vivos e dos mortos.
Majestoso e inabalável edifício.
Observava a multidão, esmagado.
Espectros vivos, espectros mortos.
Era densa, a aura da cidade.
Como a nuvem de poluição que se condensava sobre os prédios.
Lágrimas de chuva ácida, desespero e solidão.
Ninguém o via…ninguém..
Isolou-se, transparente, na reclusão do silencio.
Um automóvel vermelho, travou ao seu lado.
Dois seres de negro, tão belos, fixaram-no sorrindo.
E aquele olhar de gelo, rasgou bem fundo a sua alma.
Fugiu das trevas, mas não podia ver a luz.
Os candeeiros das ruas, e os letreiros das lojas iludiam-lhe os sentidos.
Nunca soubera distinguir o verdadeiro, do artificial.
Uma vida desperdiçada em busca de miragens e horizontes de aparência.
Verdades superficiais. Felicidade descartável.
Fechou os olhos, e os ouvidos, e o coração.
E agora, sentia a urgência desesperada de fazer ouvir a sua voz.
Captava a energia das pessoas, queria gritar-lhes tantas coisas…que ainda havia tempo, que ainda podiam mudar…
Mas era tarde demais.
A sua voz, congelara para sempre nas cordas vocais do cadáver.
Corroeu-o a frustração de dias após dias, e mais dias, e mais noites, vagueando.
Perdido. Abandonado fantasma amordaçado.
Não pode manifestar-se.
Percorreu todos os lugares que o seu corpo percorrera.
Os sítios de que gostava.
As ruas onde passava.
Repetiu o trajecto interior.
A adiada introspecção.
Viajou à beira mar, num filme de memórias.
Quis gravar aqueles momentos para que nada se perdesse, para que nunca mais esquecesse…
E a materialização de ectoplasma, condensou-se, recriando a imagem que recordava.
Um homem distinto, de idade avançada e aparência cuidada.
Sentiu nos ombros, os macios cabelos brancos, torceu o bigode, de pontas enroladas, sacudiu o fato branco, e pegou na bengala.

Do alto do farol, o mar estendia-se, imenso, ao horizonte azul onde esperava um dia ver surgir a luz.
Absorto, acenava aos pescadores desaparecidos.
Ouvia a partida e a chegada das traineiras, e as canções de outros tempos.
O retinir dos cristais, o jardim da mansão iluminado para as festas.
Amigos e convidados desfilavam pelo salão, porque era um homem importante, e tinha dinheiro e empregados.
Enchia o ego de aplausos, e palavras ocas, e do brilho das jóias que tantas vezes oferecia, para se sentir adorado.
Repetia-se aquela musica, vezes sem conta, até à exaustão.
Um dia, decidiu tomar uma atitude e por fim à obsessão que o torturava.
Não era o pranto do violino que gemia acordes de tristeza, no cemitério onde acordou.
Era musica do “seu”tempo, que identificava perfeitamente.
Que dançara tantas vezes, colado a rostos e vestidos que a memória não guardara.
Não tocava no interior. Não era o martelar irreal de uma recordação insistente.
Vinha de longe, de uma janela aberta para uma rua, por trás de tantas outras ruas. E paredes. E janelas.
O chamamento de alguém, que evocava os seres da noite para atravessar a solidão.
Porque a noite era um deserto de lágrimas, de fumo e nada.
Era o reflexo da beleza que transfigurava a realidade.
A cidade adormecida, que a “sua” musica embalava.
Debruçada no parapeito, fitava a escuridão interminável que lhe inundava os olhos e os sentidos.
O curto passado que carregava, e o futuro imenso e misterioso que se abria à sua frente.
Sem planos, sem sonhos, sem nada em que acreditar.
O vazio que a corroía, era a febre da adolescência que irrompia pelas suas veias.
A revolta, a rebeldia, o não saber para onde se vai.
O caminho? (Qual caminho?)
Ardia a mente perturbada, incompreendida, inconformada.
Trocava as voltas do dia, e habitava os confins da insónia.
Tinha vontade de chorar, e de gritar, e de fugir.
E de morrer tantas vezes, ou renascer noutro lugar.
Evocava os seres da noite, porque não acreditava.
Porque não queria estar sozinha, e so os espectros solitários a podiam entender…
Abria a janela à madrugada.
Inspirava profundamente, a humidade do ar.
O perfume inconfundível, indescritível, que so alguém que tenha um dia absorvido a cidade da mesma forma, poderia recriar no seu imaginário.
Ouvia musica à janela, ate o dia nascer.
Saboreava o fumo do momento e ouvia bater o coração.

Na noite em que ele seguiu a musica, e se sentou a escutar, no muro interior do patio, ela viu-o, e percebeu que algo de estranho se passava.
Recuou um pouco, sem saber o que pensar.
( Não ouvira ranger o portão de ferro.)
Susteve a respiração, e olhou outra vez.
Desaparecera, o vulto branco, que vê surgir, estarrecida, do lado oposto de onde estava anteriormente, sem por ela ter passado.
Caminhava, tranquilamente.
Passou a  um metro da janela, sem a olhar.
( Talvez para não a assustar mais!)
Atravessou o corredor de basalto ladeado de canteiros de rosas e madressilva.
Passeava, sim, pelos seus jardins de outrora, ao som da musica que tocava, dentro do quarto, e das suas recordações.
As duas dimensões cruzaram-se, paralelas, por um segundo.
E bastou um segundo apenas, para se mudarem dois destinos.
Para que ele entendesse que a luz, sempre estivera à sua frente, e no interior da sua alma.
Para que ela visse, no outro lado da noite, o invisível da existência.
Para que abrisse o espírito e a mente a um longo caminho a percorrer…

Cada vida, representa uma oportunidade única de evolução.
Porque há padrões cristalizados, que há muitas vidas se repetem que têm de ser quebrados, para podermos continuar.
Porque há erros, que não se devem repetir.
Situações por resolver.
Uma missão a descobrir.
E é sinuoso, o caminho. Incompreensível, tantas vezes.
As leis do Céu, são diferentes das leis da Terra.
Quando a mente comandou tudo, e estagnou o transito de estrelas, a energia bloqueou.
É necessário e urgente aprender a abrir o coração, e escutar a voz interior.
Porque a matéria, é um íman, que não nos deixa partir.
Porque a matéria, é um caleidoscópio de ilusões.
 

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Martes, Abril 19, 2011 - 21:16

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JillyFall

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Tem graça dizeres que este

Tem graça dizeres que este belo texto é um conto, baralhas os géneros literários e sai-te um poema extraordinário, ou talvez seja eu me que me equivoque e veja poesia numa história bem contada. Assim como assim, e seja qual for o rótulo que lhe queiras por, o importante é a beleza sublime do conteúdo, pois os rótulos para nada servem.

Muito bom.

abraço,

Neomiro.

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Muito Obrigada :)

Muito Obrigada!

:)

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