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Bichos

Os outros apenas o tratavam, o sustentavam, para que o menino tivesse cão quando chegasse… mas amizades cerimoniosas não se davam com o seu feitio.

…com dois olhos como dois faróis.

… a vida sabia-lhe à maior das venturas.

Enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade.

…não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem...

Os mimos da D. Saneia tinham-no desgraçado.

Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isto de gado fêmeo quer assistência...

Mas quê! O vício pode muito...

Amizade sincera não é com gatos.

A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía.

Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão…

Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a sanha dum pobre mortal, gordo e lustroso? Servir de bombo da festa...

… relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes… Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...

E à procura de quê? Da paz podre dum conforto castrador... Que abjecção! Que náusea!

Era preciso reagir contra a própria natureza e andar para diante, custasse o que custasse.

Escusas de teimar: pega ou larga de vez. Se te não presto para uma coisa, também te não presto para outra... Resolve. Cães no rasto é que não quero!... Servir-lhe apenas de estrumeira, consentir que se utilizasse dela como de uma reca, não.

… falinhas mansas, repenicadas, que a levaram à desgraça!

Calada como um testamento…

As dores pareciam cadelas a mordê-la.

A gente também vive de boas palavras.

Criou-se ao deus-dará, como tudo o que é bom.

Cada um de nós é um enigma, que a maior parte das vezes fica por decifrar.

Com os anos é que verificou como eram enganadoras as primeiras impressões…Há sessenta anos no mundo, e ceguinho como uma toupeira. E os outros na mesma conformidade. Para todos os habitantes de Vilarinho, sem excepção, as noites eram noites - escuridão apenas. E os dias pior ainda, apesar da claridade.
    Ricos e pobres nem no brilho do sol reparavam. Comiam, bebiam e cavavam leiras, numa resignação de condenados.

A vida, como um fruto, estava cheia de doçura. Mas fora preciso, para o saber, que Bambo lhe aparecesse...

Mas, fora esse, ninguém na aldeia sabia abrir a boca. Por isso, mais valia seguir o exemplo do amigo, que era de mudez completa. E a verdade é que nunca encontrara tanto sentido e beleza às coisas que o rodeavam, como naquelas horas silenciosas. Nelas, até as próprias sombras faziam confidências ao entendimento...                                              É certo que matava vida. Mas unicamente aquela que, errada e parasitária, estava desde a nascença a soldo da morte.

Baboseiras, todos as sabiam dizer. Do esforço de descer ao coração das coisas, é que nenhum era capaz.

…a simples certeza de viver lhe enchesse a alma duma confiança cega no porvir.

Nenhuma vontade conseguia açaimar o grito irreprimível que o sufocava… Qual medo, qual pudor, qual nada!

Bicho mulher é assim. Não há que fiar.

É feio servir-se a gente dos seus dons naturais para desinquietar lares alheios…De mais a mais não tendo necessidade. Quinze mulheres no harém... Que diabo! Mas um homem não se manda fazer. Natureza desgraçada, a sua! Não se fartava! E, quando em casa já tudo se desviava do seu andar de lado, não havia outro remédio senão fazer chegar lá fora um grito de fome. De resto, também gostava de variar... Sabia-lhe pela vida uma extravagância!

Quem é que não gosta que lhe louvem as valentias?...

Custa. Mas a lei natural é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser.

Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.

O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateia festejam somente os dramas encenados.

O estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do inverno.

Como se trabalhar fosse um destino!

Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.

Não saía, nem por um decreto. E, de olho pisco, ali ficava no quente o dia inteiro, a dormitar. Pobre de quem tinha de lho meter no bico...

A vergonha é a mãe de todos os vícios.

O destino fazemo-lo nós...

No Março, a torga floria. Mas não chegava esse alarido de cor para acordar as fragas.

Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!

Arca de Noé… Numa indignação silenciosa, perguntava: - a que propósito estavam os animais metidos na confusa questão da torre de Babel? Que tinham que ver os bichos com as fornicações dos homens, que o Criador queria punir? Justos ou injustos, os altos desígnios que determinavam aquele dilúvio batiam de encontro a um sentimento fundo, de irreprimível repulsa.

O corvo Vicente…Mas pudera vencer-se. Conseguira, enfim, superar o instinto da própria conservação, e abrir as asas de encontro à imensidão terrível do mar. A insólita partida foi presenciada por grandes e pequenos num respeito calado e contido. Pasmados e deslumbrados, viram-no, temerário, de peito aberto, atravessar o primeiro muro de fogo com que Deus lhe quis impedir a fuga, sumir-se ao longe nos confins do espaço. Mas ninguém disse nada. O seu gesto foi naquele momento o símbolo da universal libertação. A consciência em protesto activo contra o arbítrio que dividia os seres em eleitos e condenados…

Noé e o resto dos animais assistiam mudos àquele duelo entre Vicente e Deus. E no espírito ... de cada um, este dilema, apenas: ou se salvava o pedestal que sustinha Vicente, e o Senhor preservava a grandeza do instante genesíaco – a total autonomia da criatura em relação ao criador -, ou, submerso o ponto de apoio, morria Vicente, e o seu aniquilamento invalidava essa hora suprema. (...) ninguém mais dentro da Arca se sentia vivo. Sangue, respiração, seiva de seiva, era aquele corvo negro, molhado da cabeça aos pés, que, calma e obstinadamente, pousado na derradeira possibilidade de sobrevivência natural, desafiava a omnipotência.

Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte. Mas ... se tornou evidente que o Senhor ia ceder. (...) nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre. Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu.                                                                                                                   

         http://topeneda.blogspot.pt/                                                                                                                    MIGUEL TORGA

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sexta-feira, outubro 19, 2012 - 18:10

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