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Cachoeira

- Está bem, seu padre. Não vou mais lhe contrariar. Já estou muito velho. Continuo não acreditando em Deus, mas só vou me confessar porque o urubu do remorso já mastiga o fígado de minha alma há tempo demais. Um dia eu teria de contar essa história. Prometi para mim mesmo que jamais contaria a alguém. Mas é muita cachoeira correndo dos olhos para agüentar sozinho. Cachoeira, seu padre... O senhor sabe o significado dessa palavra?
Doía muito em mim o fato de ele ter sofrido aquele acidente. Todos viram o quanto eu sofri vendo o menino naquele estado. Era meu filho! Um menino vigoroso como ele em uma cadeira de rodas... A juventude ceifada por causa de um mergulho mal calculado. Seu padre, um dia meu pai falou: “A vida é inimiga do homem. Passa o tempo todo tentando matá-lo, até que consegue. Mas um homem que foge de seus inimigos não passa de um covarde”.
Meu filho foi um covarde? Eu fui um covarde? Quem é que vai julgar?
Ele tinha uma namoradinha. Bonita a menina. Um dia, me contou que a danada havia prometido casar com ele se ele conseguisse pular da cachoeira mais alta. Quarenta metros de altura! O senhor consegue imaginar? Pois todo sábado e todo domingo o moleque ia para lá. Eram quatorze cachoeiras até a mais alta. Já havia conseguido pular da sétima. Afobado, nem tentou a oitava, foi direto para a nona. Foi lá que aconteceu o acidente. O senhor não pode imaginar como fica o coração de um pai... Padre não sabe nada de família. Se sabe, é às escondidas...
O menino ainda tinha esperanças de poder mergulhar novamente. Ficava com vergonha quando a menina vinha visitar ele. Não gostava que ela o visse naquela situação, a cadeira... Coitada da menina, sentia culpa.
Um dia o menino se injuriou. Estávamos no consultório. Colocou o médico contra a parede. Os olhos queimando o doutorzinho. O homem olhou para mim com cara de cachorro. Não tinha muita escolha. Contou. Contou que o menino nunca mais voltaria a pular de uma cachoeira. Seu padre, nunca vi o moleque chorar daquele jeito. Soluçava de puxar todo o ar do mundo. Senti uma vergonha triste. Chorei junto, os olhos desviando dos olhos do menino.
Nunca mais foi o mesmo. Perdeu o vivo dos olhos, o brilho. Ficou magrinho, magrinho. Não podia uma vida daquela. Muitas vezes briguei com ele, porque dizia que preferia morrer, fazer companhia para a mãe. Muitas noites eu não dormi, pensando.
Já fazia quatro anos. Era aniversário do menino, já um rapaz. Perguntei o que eu podia fazer para fazer voltar a alegria naquele seu coração. O menino disse que só havia um jeito. Só seria feliz se conseguisse pular da última cachoeira. E foi então que ele pediu aquela coisa medonha.
Seu padre... Não devia estar lhe contando. Seu coração está preparado? Nem Deus, se existir, se estiver escutando, está preparado.
Pois o menino pediu que eu o jogasse lá de cima, da última cachoeira. Um último mergulho. Esbofeteei o desgraçado. Um filho pedir aquilo a um pai! Fui chorar em um canto da noite. Um tabefe de presente para o menino, no dia do aniversário. Eu não era um pai. Quanta falta fazia a mulher...
Horas depois, o menino estava lá, quieto, o mesmo olhar. O vermelho das costas de minha mão no rosto, uma marca de sangue no canto da boca. Os olhos secos. Não havia nem chorado. Apenas me perguntou se eu sabia o que era escutar, dia após dia, os gritos dos amigos jogando bola lá na praça. Claro que eu não sabia.
Depois daquele dia, nunca mais abriu a boca. Não falava mais comigo. Não comia mais. Mirrava cada dia mais. Um dia perdi a paciência, quase lhe dei outro tapa. Parei com o braço no ar. Apenas me olhou, com aqueles olhos fundos, dentro das olheiras. Seu padre, pude ver a tristeza do mundo dentro daqueles olhos. O senhor sabe o que é um homem em desespero? Não sabe, seu padre. O senhor não tem filho. Ou tem?
Foi então que eu prometi, seu padre. Prometi para o menino que se ele voltasse a comer eu realizava aquele pedido medonho. Foi a primeira vez que eu o vi sorrir, depois de muitas noites que me pareciam mais escuras que as noites que eu conhecia desde menino.
Dava gosto ver aquele sorriso. Voltou a comer bem, o menino. Mas volta e meia me fazia a pergunta, um tiro no coração. Os olhos no fundo dos meus olhos. Eu baixava a cabeça. Respondia que sim.
Desde que o menino havia virado gente, eu só havia ensinado uma coisa para ele. Cumprir com a palavra. Cada dia que passava, o menino me olhava como se estivesse me inquirindo. Um dia ele falou: “Você não vai cumprir, não é mesmo?” Abaixei a cabeça de novo. Ficou uma fera. Atirou o prato de comida na parede e descarregou todos os palavrões que conhecia. E prometeu que iria se matar. Iria passar a faca nos pulsos. Gritou que se a vida lhe havia tolhido a existência, tinha ao menos o direito de morrer do jeito que queria. Queria o fim de tudo. Mas com o último desejo realizado. Desde pequeno o menino havia aprendido. O menino cumpria com a palavra. Não havia prometido para a menina que iria pular da última cachoeira? Pois então, seu padre...
Só a idéia de imaginar o menino pegando em uma faca já cortava meu coração. Eu não agüentava mais, seu padre. Uma gestação de dor como aquela só podia parir muito sofrimento. Há dores que são dores só das mães. Homens não nasceram para parir. E estava na hora do parto.
Naquela mesma noite, depois que a cidade dormiu, coloquei o menino na caminhonete e fomos para o rio. Subi a trilha com o menino no colo. Os dois em silêncio. Nunca acreditei em Deus. Mas, ali, eu rezava, seu padre. Rezava tudo quanto era reza que o senhor possa imaginar. Coisas que nem eu sabia. E tudo debaixo de muito choro. Meu e do menino. Foi a primeira vez que eu vi o menino chorar, desde o dia em que o médico havia lhe contado a verdade. Lá no topo, ainda tentei umas últimas palavras, para ver se o menino desistia da idéia. Diabo de olhar duro! O senhor já teve a oportunidade de olhar nos olhos do diabo? Se Deus existe, seu padre, ele é o demônio.
“Obrigado pai.” Foi a última coisa que ele falou, quando sentiu meus braços afrouxando. Não desejo a ninguém a memória daquele barulho. O estatelamento contra as rochas, lá embaixo, no meio da água, aquele baque surdo...
Eu não era homem naquele momento, seu padre. Era como se eu fosse de vento. Nem lembro como cheguei em casa. Abri duas garrafas de cachaça e entornei as duas, como água.
Acordei com o delegado. Estava acompanhado do médico, os dois muito sérios. Vieram dar a notícia. Parecia que eu havia acordado de um pesadelo e caído imediatamente no mesmo pesadelo. Não estranharam o bafo. A cidade toda sabia que eu bebia muito desde o acidente. Chorei muito. Os dois homens nada podiam fazer. O pai estava em choque.
O corpo foi encontrado por um amigo. Fui acompanhar a retirada. Seu padre, meu choro ecoava nos paredões daquelas cachoeiras. Até os bombeiros, homens acostumados às tristezas, choravam.
Muitos anos depois, ainda comentavam o acontecido. Alguns até mesmo acreditavam que o menino, por força da fé, conseguiu andar sozinho e foi até lá, para se atirar. O povo é criativo... Não pense o senhor que não surgiu a idéia de que o pai matou o filho. Mas o meu choro diário, sentado na varanda de casa, desmentia tamanho disparate. A cidade era pequena. Era cinema grande demais para uma coisa como aquela...
Passei a vida toda guardando isso. Procurava dormir cedo, ignorando a insônia que me atacava todas as noites. Pesadelos... Mas é como eu lhe falei, seu padre. É muita cachoeira para apenas um par de olhos...
Como foi que eu agüentei até aqui?
Ah, seu padre... Naquele dia... Foi o dia em que eu dei o troco na vida. Desgraçada. Naquele dia a vida chorou a derrota. Daquele dia em diante, resolvi que aguentaria até os últimos dias. É certo que não houve um dia sequer que eu não tenha chorado. Mas pode ter certeza, cada lágrima minha serviu para que a desgraçada se lembrasse daquele dia.
O que foi que a vida viu? A mulher, seu padre!
A mulher apareceu. Aquela, seu padre. A namoradinha! Pediu licença. Aproximou-se do meu menino, abriu um lenço e tirou uma argola de dentro. Colocou uma aliança no dedo dele. E deu um beijo na boca do meu filho.
A vida se esvaindo em água, desabando.
Cachoeira, seu padre... O senhor sabe o significado dessa palavra?
Minha vida foi uma cachoeira só...

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quinta-feira, maio 19, 2011 - 14:31

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Maurício Decker

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