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Cavalgada

Naquela noite, as estrelas pareciam que haviam congelado, tamanho era o frio. O jovem cortava caminho. Havia aprendido os caminhos quando menino.
O calor do cavalo sob as pernas, desde a primeira vez em que montou – no pelo, sem sela – lhe trazia uma sensação de conforto. Segurava as rédeas com firmeza e deixava-se levar pelo balanço do animal, que dançava a valsa que saía de seus próprios cascos. Há tempos a escuridão já não o assustava mais. A respiração do cavalo, aquela fumaça branca que saía do focinho, subindo iluminada pela lua, juntava-se à fumaça de seu cigarro. Adorava observar aquela mistura. Rapaz e animal, navegantes da noite. Lembrava do avô. O velho dizia que a vida era como uma longa cavalgada.
“É como uma cavalgada. O homem monta de madrugada, ainda escuro, está no útero, não sabe nada do que vem pela frente. Começa a amanhecer, o sol da manhã brilha no rosto, a brisa brincando com os cabelos, uma infância. Com o sol a pino, o traseiro já se acostumou aos solavancos da estrada, aos cascalhos da vida, o ritmo da cavalgada está maduro, muito suor na testa. Com a tarde, o cansaço vem montando junto na garupa, as costas arqueiam. A noite traz consigo a velhice do dia, a certeza do fim da viagem, as cores vão ficando pardas, as coisas vão se aquietando. Até que... Até que, uma hora, o homem apeia...”
O avô tinha um jeito manso de falar. Parecia que mastigava as palavras, amolecendo-as para que as pessoas pudessem digeri-las mais macias.
“Homem alto todo mundo respeita” – disse o avô no dia em que foi ensinar o neto a colocar o pé no estribo para montar pela primeira vez. Coincidência ou providência divina, um homem que passava pela estrada tirou o chapéu e cumprimentou o menino sobre o cavalo, com reverência. O menino se sentiu homem, verdadeiro. Deu um sorriso para o avô. O avô sabia das coisas.
Tudo aconteceu por acaso. O ônibus escolar havia quebrado e a prefeitura estava com as finanças desajustadas. Como o lugarejo era pequeno, os pais teriam de dar um jeito para que o menino continuasse indo para a escola, a dezesseis quilômetros dali. O pai trabalhava na lavoura. A mãe cuidava da casa e dos menores. Chamaram o avô. Morava longe o velho. Teria de levantar muito cedo para vir ensinar o menino a montar. Mas o coração do homem tinha a largura do sorriso do menino, caberia na estrada. Disse que sim, que iria.
Na primeira manhã, o avô puxou as rédeas, caminhando na frente do cavalo, enquanto o menino, sentado no lombo do bicho, sentia os movimentos do animal. O cavalo também precisava se acostumar ao pouco peso do novo cavaleiro. No dia seguinte, o avô montou na garupa e ensinou ao moleque o controle das rédeas. No outro dia, deixou o menino controlar sozinho. No quarto dia, treinaram manobras mais difíceis. Se guiasse bem, na tarde seguinte já poderia até levar o cavalo sozinho. Mas nos primeiros dias o avô acompanharia o menino, por precaução. O cavalo podia se assustar.
Naquela época, as tardes duravam um dia inteiro. A cadeira dura da escola não era como o lombo do cavalo. Quando a aula acabava, o menino sentava na frente da escola. O avô demorava tanto quanto as tardes. O menino pousava os olhos no fim da estrada, esperando. O barulho dos cascos do cavalo do avô fazia o mundo ficar em silêncio. O moleque montava, sentado na frente do avô.
Em uma tarde fria, a boa sensação do calor do animal entre as pernas, o calor do avô nas costas, começaram a viagem de volta. No outono escurecia rápido.
“Hoje vamos cortar caminho” – disse o avô. Deixaram a estrada e rumaram para um bosque de pinheiros, adentrando a escuridão. Muitas árvores fechando o caminho.
“Veja quantos galhos. Um monte de braços nos saudando, convidando para um abraço. Árvores são como mães. Sempre dando de comer, sempre de braços abertos.”
O vento fazia um barulho medonho nas copas das árvores. O velho sentia que o menino tremia.
“Está com medo? Não precisa. O vento só está imitando o barulho de um rio. Quer te contar que deve haver um córrego por perto.”
Atravessaram uma colina. Logo apareceu um pequeno rio, de águas muito cristalinas. O cavalo mergulhou os cascos na água gelada e parou no meio do riacho, para beber um pouco d’água.
“Preste atenção na voz do rio. Ele fala igual ao vento. Só que é vento molhado. São irmãos. Como a vida e a morte. A vida começa lá atrás, em algum lugar que não conhecemos. Se encontra com a morte lá na frente, em outro lugar desconhecido. Aqui, estão correndo sempre lado a lado, mas depois que se encontram, não sabemos para onde vão, porque as águas e os ventos daqui não são os mesmos de lá. O vento sempre assobia, que é para ver se o rio o espera. Mas o rio corre rápido.”
O cavalo atravessou para o outro lado.
“Não te disse? Não há porque ter medo. A noite só é escura para aqueles que não a enxergam. Veja” – apontava para um tenebroso galho de árvore que parecia ter garras.
“Nunca estanque diante do perigo. Chegue mais perto. Quando chegamos mais perto, crescemos. Veja como a árvore recua.”
E a garra terrível transformava-se em uma mão que sinalizava, indicando a mudança no caminho. O velho direcionou o cavalo para a esquerda.
“As coisas têm mais medo do homem do que o homem tem das coisas. As coisas não têm olhos. O homem, com um olhar só, bota medo.”
Mais à frente, um pio de causar arrepios. O menino ficou alerta.
“Calma moleque! É a coruja, amiga velha, dizendo que é por aqui. Veja como ela nos observa. Está cuidando de nós. Vendo se estamos no caminho certo.”
E passaram por uma coruja muito imponente sobre um cupinzeiro. Os olhos arregalados muito atentos, fixos. Mexia a cabeça para um lado e para o outro, como que conferindo a passagem dos viajantes.
Um cachorro latia mais à frente. Pelo latido grosso devia ser dos grandes. A mão do menino apertou mais forte no couro das rédeas.
“Cachorro não gosta de cavalo. Pensa que o cavalo é um cachorro maior. Então late para meter medo. Mas na verdade late de medo. Triste por ser cachorro menor.”
Passavam pela porteira de onde vinha o latido. O menino ria por dentro. O cachorro devia estar com o rabo entre as pernas.
As nuvens cobriam a lua. A escuridão ficava mais negra. Começava a chuviscar.
“O céu também fica triste. Chora porque a lua foi-se embora. A lua é o sorriso do céu. A chuva espanta os bichos. É uma pena. Os bichos não gostam quando o céu fica triste. Bicho gosta é de alegria.”
De repente, um forte cheiro de gato-do-mato passeou no ar. Um rosnado de gato grande, não muito longe.
“Shhhh” – fez o velho, com o dedo nos lábios. O cavalo parou, com as orelhas muito atentas. O menino prendeu a respiração. O velho lhe falou baixinho, como que contando um segredo.
“Onça... Sabe o que a gente faz quando aparece uma onça? Conversa. Bem alto. Onça tem medo de conversa fiada. Sabe que tem homem por perto. Os anos ensinaram às onças que homem que fala conversa fiada tem a carne ruim. Fale alto” – e aumentou a voz, quase gritando – “Então, homem? Vamos mesmo matar a onça ou vamos ficar aqui parados? O cavalo está nervoso! Louco para pisotear a bicha. Você trouxe a espingarda?”
O cheiro foi ficando mais fraco, o rosnado foi para longe, até sumir. Somente a chuva cochichava com as folhas das árvores. O cavalo voltou a amassar o capim.
“A onça é como o homem. Faz um barulhão, mas tem medo. Tem medo da morte.”
Estavam chegando em casa. O menino achou que chegaram rápido demais. Queria viver outras coisas mais.
“Fim da cavalgada” – disse o avô.
O moleque se despediu do avô e ficou observando o velho partir, montado no cavalo, debaixo da garoa fina, chapéu escuro e capote nas costas.
Deitado em sua cama, o menino olhava as gotas da chuva na janela. O calor da cama era gostoso, como o calor do cavalo entre as pernas. O bosque não era tão assustador. A noite era um grande cinema. E ele, o menino, o cavaleiro.
Quando havia sido aquilo? Dez ou onze anos. Já fazia um tempo.
Agora era um jovem crescido e conhecido. Pitava cigarro. Os homens o respeitavam cumprimentando-o pelos caminhos. As meninas olhavam para ele com olhares que já esqueciam infância. Havia bailes. As noites eram belas.
A luz da casa apareceu, logo depois do pinheiral. Nem havia sentido a viagem. Havia passado pelo bosque, pelo riacho, pelas colinas, pelas corujas, pelos matos e não havia prestado atenção em nada. Parecia que havia viajado mais longe, lá para os lados das manhãs da vida.
Apeou do cavalo em frente à casa de madeira. Entrou.
Nenhuma cavalgada é sem motivo. Mas aquela cavalgada até ali tinha um motivo maior. Ver com os próprios olhos o que seus ouvidos escutaram, no recado, lá na chácara.
O avô parecia que sorria, deitado em seu caixão, no meio da sala. O rapaz podia até escutá-lo: “Fim da cavalgada...”
 

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quinta-feira, maio 19, 2011 - 15:29

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Maurício Decker

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