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Poeira Doméstica

I

Arruma, aspira, lava, esfrega, encera, limpa o pó e passa a ferro e então corta as batatas, as cenouras e a abóbora, o feijão verde e a beterraba, afaga os bifes, corta os alhos e põe ao lume e faz salada e mais esparguete e maçã assada e depois arruma, lava, limpa, muda os lençóis, faz uma cama, outra, e depois outra e outra ainda e lava a roupa e estende a roupa e quando vai para dobrar as meias, num aconchego de sofá e aquecedor, frente a um filme qualquer, (hummm, a casa iluminada pelas velas, o odor da limpeza e da cera, o paraíso à sua espera, talvez cabeceie numa dança etérea pelo tecto do mundo), eis que lhe declina o dia na cara, tão depressa o paraíso passa e o jantar à sua espera e o banho enfim, enquanto a pizza assa e só depois então, já noite cheia, no arrumo perfeito da casa, procura o que o dia lhe roubou e percebe que já acabou. sempre acaba. talvez um dia possa deter o tempo no socalco de um momento de prazer para pensar, ou para escrever, ou para dormir, ou para sonhar, ou para vestir o corpo com a espera e entrar no limbo do amor... tudo que vier à fina flor da imaginação. será certamente um dia em grande e é a antecipação do que pode vir a ser que viabiliza o que depois é: um sopro suave de anjo ou flor, uma lua inacabada no canto do olhar e um livro na mão, perdida entre o nada que fazer e o tudo a acontecer, mas a frase fica a moer na cabeça e é lida uma e outra vez,  sem conseguir avançar, porque o cérebro algures desperto avisa que não houve entendimento. quando o livro cai, solta-se enfim na extensa fidalguia da noite e não faz nada, nada, nada, a não ser sonhar que o tal dia já chegou e está ali à sua frente. é como se fosse feliz e o pó e as obrigações regredissem para o infinito onde se sente submergir.

II

Vive-se em paz no deserto, nunca soube fazer ver a ninguém que a aridez se nutre de sais e de tojos secos que já foram seiva e guardam ainda o seu sabor. Não soube trazer outros ao seu deserto, talvez não seja nele que se plantam as coisas fluentes da vida, não haja a animação das cidades radicais, o remoinho das estações, ou talvez, sabe-se lá, ela fosse assim um ser não alinhado, alheio às ambições consubstanciadas em plasmas e ipods, um ser sem afinação com o presente, sem temporalidade nos deíticos da fala. é verdade que nunca ninguém consegue dizer o que está para além do olhar. portas fechadas, só os seres palavrosos afinam o verbo com a vertente de onde lhes sai a fala. os seres que olham não dizem. ela olha, aplana o seu deserto pela mão das nuvens que se amotinam no céu. gosta de as ver chover sobre sobre o pó. gosta de ver a água a infiltrar-se enchendo-lhe as veias de luz. um ouvido habituado a categorizar silêncios consegue até ouvir o movimento das areias semeadas no vento, a terra a gastar-se e a respirar sempre por dentro, ou o ruivo encandescer do sol, quando este se deixa cair na terra, talvez já ávido do seu ventre, ou de apenas se apagar nela. no deserto são até sinuosas as dunas, sibilinas as entradas do vento, secretas as palavras que gritam o mesmo padrão de intensidade e timbre, já há tanto tempo. tudo é imemorial no deserto, até a presença, a sombra, a ave, é como na vida, em que toda a presença é já um lugar de impermanência. e ela sente-se assim. uma presença. Por isso, mesmo com o cansaço do dia, veio-lhe ao rosto um vinco de esperança, uma vontade de se assinalar. puxou de uma caneta e escreveu a carta, a carta que viria a ser mencionada em segredo mais tarde, quando esta viesse a tornar-se o ponto de viragem da sua existência.

hoje escrevo-te esta carta e amanhã escrever-te-ei outra carta de amor e no dia seguinte também. escreverei à tua ausência todos os dias que te exultares em ti, ou noutra, ou no vazio. estou condenada a escrever cartas de amor, podia ser pior destino, condenada à solidão, por exemplo, mas não, imagino-me num outro Inverno a vir, frente a lareira, a escrever e a queimar cartas, serão tantas que me aquecerão a temporada, com toda a paixão que as embebe numa espécie de óleo do amor. com elas queimarei o tempo que tivermos e o que não havemos de ter, queimarei as dúvidas de agora, as indecisões mortais, o tempo nosso que desperdicei, e por fim queimarei até a saudade com aquele odor a pinho que caracteriza as nossas memórias. sim, amanhã serão muitos dias seguidos, um após outro a escrever para ti as voltas da noite desabitada, e as claras voltas do meu corpo. e no final da noite haverá sempre um beijo novo, repetidamente pousado nos lábios intensos demorados e lúbricos. tu continuarás a colar meticulosamente as folhas secas que pisarmos no velho álbum forrado a feltro e tecerei a teia para que o vazio se mantenha e nos deixe flutuar...

Dobrou a carta e guardou-a numa gaveta. não tinha remetente expresso. o destinatário não tinha morada. a carta era uma forma de dizer aqueles dias tão recolhidos, tão cosidos por dentro a dobrado sobre o tecido singelo e frágil da existência. aquela suspensão de tudo, menos da laboração cega, isolada, perseverante. não escrevo senão para registar o tempo a escoar-se, disse ela, não contabilizo ganhos e perdas, apenas quero que um dia após outro me fortaleçam na minha verdade. não procuro agradar, nem cativar, nem oferecer o tanto que me transborda, disse com a poeira no olhar, enquanto dobrava os dias em pares de dias sim e dias não. bebe um pouco mais do cálice da aceitação e prossegue, tem pressa de concluir:  aceito que sou agora e para sempre um ser só que só quer viver intensamente a solidão. penso-me como um livro que ninguém abre e compraz-me amealhar-me no pensamento e na palavra, acrescentou ela, enquanto dobrava as mãos em cruz sobre o regaço. e continuou de olhos casados com a distância: visiono um filme interior, discretamente doce, talvez o saber que no meu mundo a vida corre serena ao lado de outra solidão que me é simétrica. apenas essa simetria me fortifica. a possibilidade de permanecer na ilusão do outro caminho. e não esperar sequer vislumbrá-lo, para não ter de escolher não o seguir. matar a pulso a poesia, o chá frio das tardes vazias, disse, e o sabor da solidão que é transparente, porque tentei vencê-la. não, hoje, disse ela, de repente cansada, rendo-me. e ficou assim só e adentrada, sem desejos nem alentos... apenas com um lugar quente a arder-lhe lentamente no incerto coração... apetecia-lhe voltar a ler a sua própria carta. co-mi-se-ra-são de si.


III

Acordou com um sobrevoar de pássaros no céu, o bairro cheio de gaivotas, tantas, a chuva em piano lento, a natureza em choro, um pigar do céu que recolhe os seres para mais dentro. Mais longe, o mistério dos pássaros em formação, um grupo unido, (onde iriam aquelas aves tão seguras do seu rumo)? Soubesse ela o seu. O mistério das aves que nunca andam sós e num acerto de vontade rumam para um sonho comum... Eu não sei ser ave, pensou. Ninguém me voa, ninguém ao meu lado a voar como eu em formação harmónica. Falo só e respondo só. Marco encontros a mim própria e depois vou sobre as pedras, mas não estou lá. Recebo o sol no rosto e a ironia do paraíso fechado. Voo em círculos, sempre só, olhada por outras aves que me admiram as piruetas tontas de ave embriagada. Voo só, como uma ave da montanha, concluiu. Como uma águia, que sempre plana só na solidão do alto, acrescentou. Mas também não sou uma águia. Talvez uma gaivota friorenta e triste. Voo demasiado baixo, rente ao pico mais baixo da realidade. Rasei-o. Feri-me. Eu não sei ser ave. Foi o que ela disse, achando que, se pudesse, ficaria a contar as nuvens sob os beirais. Sem ser ave. Ou os regatinhos briosos que rasgavam horizontalmente a vidraça. fechou a porta atrás de si e enfrentou mais um dia, nas portas da cidade, junto ao rio que lhe serpenteava o quotidiano, deixando à sua passagem uma poeira de rotina. chegou ao trabalho e esqueceu-se de sorrir. também se esqueceu de escrivinhar no bloco azul, os cambiantes próprios do dia, do rio, ou das fachadas do porto. o lugar altaneiro dos guindastes e os petroleiros que passavam, os paquetes que chegavam. Esqueceu-se de olhar as nuvens. E de si. Foi assim até ao regresso frente ao pôr do sol, caminhando para o sonho pintado de frutas fortes.  À noite, voltou a chuva e ela derramou todo o silêncio acumulado, numa página de um bloco qualquer:

Adormeço frente a este vidro, por tanto tempo que nem sei. Não sobra tempo para viver, não há tempo para amar... Perco-me no conforto de aqui estar, finalmente em casa e a escrever-te, e mão invisível assolapa-me para dentro de uma banheira de bem estar. Mergulho. Mas a noite ainda não nos juntou no beijo do regresso... e o estado de vigília volta. Obrigo-me a acordar. Reconheço que há algo de profundamente terno e trôpego neste dedos cansados que se atravessam no teclado na bebedeira de te levar amor, de te fazer amor, de te adormecer num lago de amor... Não sobra tempo para amar, não há tempo para viver. Hoje podíamos ter avivado as brasas do céu, no eixo de um poema, na ponta de um grito, no decorrer de um abraço fundo, mas este cansaço proletário, leva-me a sucumbir com a boca cheia de palavras mudas e a ti a olhares-me com infinita ternura e a depor um beijo na minha testa com uma eterna jura. E eu então vou fresca para o abraço dos sonhos, em cujo parêntesis nos doamos apaixonadamente... Mas não teremos cumprido o círculo amante da noite, o nosso amplexo profundo, carne e sangue, dentada e murmúrio. Dá-me a tua mão, meu amor, vamos! Amanhã faço para ti uma dança de sete véus e sete luas, e durante sete semanas e meia ainda serei tua. E nos outros dias também. Agora deixa-me apenas entrar noiva e nua nos teus sonhos de eremita e fechar o sono num abraço de corações em uníssono e respiração só uma.

Como um lago adormecido, a tarde está cinzenta e quente. Almofadada por dentro, deixa-se levar pelas andorinhas num sonho sem tempo, no limite do céu e da seda do amor. Onde vamos quando dormimos, mais ainda, onde vamos quando ficamos na antecâmara do sono, sem entrar, nem sair? Já não a afeta, o destino, o desenho acutilante da estrada, o seu irrevogável limite. Já não espera e não esperar é como deixar para traz um caminhante ou um caminho, como um objeto qualquer. Podia seguir sem atentar nas margens. Mas ouvir a sua voz na garganta da estrada para (lhe) rasgar a vida em dois muros era melhor do que não ouvir nada.
 

IV

Fala, disse, mesmo sabendo não ser ouvida. tua é a diáspora e a marca funda da vontade, disse-lhe. Já não tenho enganos nos meus dias. O meu único engano, agora, é continuar a querer que me enganes, com as palavras que me enganaram os anos mais verdes que já tive. E se te encontrar saberei que não és tu e, sabendo do engano, volverei os olhos para dentro, para a miragem que tu foste, ano após ano. Corte brusco na ilusão com uma ilusão maior. Afinal ainda não és tu, e mais, mesmo que sejas, nunca serás. Eu sei. Prossigo almofadada por dentro, no mesmo lago quente que é a tarde de andorinhas e oliveiras ancestrais.

Mordo entre os dentes as artes de Circe a encantadora, pensou, temo-me como temo a voz da tempestade quando a ti te toma e te arde tudo no que dizes. Receio o poder que trago atado ao corpo quando me desnudo no caldeirão das palavras. E porém, as palavras já fervidas são doces cataplasmas da alma. Sente-as que te lavam as feridas das viagens e naufrágios, agora que o pandemónio à nossa volta afrouxa. Já as águas se fecharam à passagem do povo eleito das dunas, já os das trevas nos cavalgaram em suas vestes de chumbo, já as rosas floriram frescas e as romãs sangram no quintal, já a noite se abate sobre o rio e a margem desigual. Já Circe te despede para o mar, na branca mágoa do seu corpo, estática e muda contempla a tua ida, fechou-se numa tragédia grega e lá aguarda a apoteose final, do corpo que tomarás à chegada à tua ilha. Treme de te expedir, mas foi menos feiticeira e mais mulher. Já Neptuno ensurdece as nossas noites, já as sereias se desprendem dos mastros encerados, são apenas sereias loiras atadas às cordas vocais do vento, banais como artefactos de cozinha. Fecho de Pandora as caixas todas, de Vulcano apago o fogo. Recolho-me em Neptuno o sábio velho, passo as manhãs em corais de sonho, bebo a Primavera no orvalho, entranço grinaldas e ervas, faço tapetes de luar, ligo, laço e desligo os fios, ligo e deslaço a trama, cabeceio sobre as chamas, à espera de saber quem sou agora, e se o meu herói ainda se demora na boca do seu cão, que como eu o espera. Sim, conta-me essa historia. Disse ela.

continua

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quinta-feira, maio 3, 2012 - 19:21

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