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UM HOMEM CONCISO

A alameda brumosa, a ponte mal pregada. Uns dois próximos ao banco de pedra e uma poça de lama próxima ao portão. A chuva cairia logo, os animas já haviam se recolhido. O preço da miséria já havia sido pago e o povo comemorava a união em seus lares semi-aquecidos e repletos de si mesmos. E havia música e vozes.

Foi-se o tempo da pancada e inquietação. Foi-se o tempo da cegueira , dos palanques de raposas. Os garotos já podiam praticar os esportes as mulheres falavam alto, e havia carne na brasa. E a bebida alisava a garganta em goles do prazer esquecido. E havia gente chegando para restaurar as fazendas e cuidar dos rebanhos. Certo e completo era o futuro. Todo lugar era bom.

Na curva da esquina da casa mais próxima a ponte queimava luz de vela. A janela embaçada não era limpa desde os tempos de tormenta. E quando não havia nem dois nem um próximo a pedra alguma, nem som de fraternidade e cantoria nativa, um sujeito bateu a porta. Calvo e baixo, de voz grave e expressiva:

Boa noite - exclamou como algo incomum de se dizer.

Venha - convidou Ivan, sóbrio e direto.

O calvo nem mesmo pendurou o casaco e já seguiu diretamente a porta iluminada. Lá estava Lara, prostrada e pálida. E o Calvo aproximou-se cauteloso ajoelhando-se a seu lado. Quando pôs-se a falar com ela, Ivan recuou e saiu da casa.

O vento soprava sonoro mas não incômodo ou frio demais. E Ivan observava de frente o portal que dava para a alameda. E havia sons se formando a sua esquerda, a sua direita, e ele não se dava ao esforço de atentar para eles. Apenas fitava o portal de maneira vazia. E pensava... bastava uma solução, qualquer que fosse. Assim como nos julgamentos valia a sentença final. Que morresse o tal criminoso, e se absolvido que a sentença ficasse por conta dos revoltados. E o povo que fizesse valer então. Era simples. Para ele não cabia a impossibilidade, nem limites aos métodos. E ainda que os caminhos pudessem não ser satisfatórios ou os tais limites fossem obscuros, tudo podia ser feito se tivesse de ser feito. Ponto e paz.

Longos instantes depois, ele ouviu a voz grave do Calvo chamando seu nome. Quase que de imediato Ivan saiu de sua posição confortável junto a parede da casa e voltou.

Ela vai morrer - afirmou o Calvo, quase que discretamente.

Está tão certo assim? - questionou frio Ivan.

Minha certeza se dá ao tempo que perdi estudando medicina.

Perdeu? - perguntou Ivan, atento

O que diz homem? Estou exausto - reclamou passando a mão na cabeça.

Me refiro ao tempo. Aos seus estudos.

O tempo que gastei da minha vida se assim prefere ou no caso de julgar tudo ao pé da letra.

Não quis criar caso com isso.

Imagino que não, mesmo por que o caso que você tem para levar agora é um pouco mais doloroso. De qualquer forma, não há o que se possa fazer. Essa jovem está deteriorada. Podre eu diria, sendo que o termo é um tanto inadequado para se referir a uma mulher. E bonita desse jeito.

Há quanto tempo é médico?

Vou lhe contar. Para dizer a verdade eu já me considerava médico antes mesmo de ingressar na universidade. Cresci numa fazenda, aprendi muito sobre animais, de certa forma tentava adaptar o que sabia as pessoas... hipoteticamente é claro. Era o que eu tinha que fazer no futuro, depois do nível secundário fui estudar de fato. Hoje é meu filho quem está fora da cidade e o resto pode imaginar. Gerações e gerações...

Posso sim... Hereditariedade é algo que me comove contra todas as circunstancias que poderiam me desencantar.

Se vale de algo, digo que lamento Ivan.

Para hereditariedade deve haver legitimidade, não é meu caso. Mas daí vem a grande responsabilidade de traçar o rumo da geração seguinte, me diga o senhor.

Nada mais pesado Ivan. Mas hoje diria que não se trata de traçar, mas encaminhar e influenciar positivamente. Filhos são criaturas rebeldes, você já foi um e sabe o que digo.

Imagino que o senhor não queira seu filho percorrendo essa cidade e medicando gente tuberculosa ou com sífilis.

Precisa acender mais uma vela. - sugeriu o Calvo apontando para a vela gasta sobre a mesa.

Uma boa noite para o senhor.

Até logo Ivan. Até o fim da semana devo procurá-lo para resolver meu problema.

Estarei aguardando.

Sem mais cordialidade o Calvo saiu deixando a porta aberta. Ivan foi logo em seguida e novamente se escorou na parede da casa. Com exceção de si mesmo pouco havia mudado por ali. Não julgou ter sofrido tanto com os conflitos e não se deu a miséria da auto-piedade. Era conterrâneo daquela gente cantante. E gostava deles de fato. Não eram dos mais insinceros ou inconvenientes além de serem boa companhia para noites de bebida.

Já não sentia-se tão jovem assim. Seus 35 anos lhe pesavam um pouco mais que podia supor. Sua Ana havia partido num trem que sofreu atentado, há muito tempo. Nesta época tudo ainda estava em paz e a partida dela soava apenas como uma adiamento de seus planos, pois deveria voltar em breve. Porém quanto a isso ele já não poderia mais fazer nada e quanto a Lara não havia muito o que fazer de relevante.

Como era bonita, inteligente de maneira que não condizia com sua realidade. Mas naquele momento estava próxima da morte. Agira feito uma porca qualquer, quando os soldados ainda poluíam as ruas, tomou o caminho mais tolo como sempre e agora estava definhando. Carregava consigo a memória de um feto deformado de filiação semi-estrangeira. Era incapaz de gemer ou chamar por Ivan. Estava tão podre quanto a atmosfera daquela noite que estendeu-se àquela casa, contra o espírito de qualquer outro lar próximo dali.

Ivan por vezes durante aquela madrugada, passou pela porta e a observou prostrada. Os cabelos longos cobriam seu rosto. A expressão não era surpresa e ele desejava não vê-la mesmo. A aurora rompeu e ele mais uma vez passou pela porta. Sabia que ela estava morta. Aproximou-se e passou a mão em sua cabeça de fios louros e então em seu rosto. Ela tinha uns lábio bonitos, era sofisticada e diferente das outras.

Os malditos tempos haviam seguido em retas cinzentas e mesmo naquele dia a textura era desigual. Ivan procurou adequar a ordem das coisas ao conceito das soluções mais coerentes. Lembrou-se da beleza e jovialidade de Lara outrora, e quase que de imediato, a cidade despertou com vozes inexpressivas e vivacidade calorosa. Passou pela cabeça de Ivan que tinha uma dívida a acertar com o Calvo, então lembrou da conversa fria que tivera com ele na noite anterior e deixou transcorrer o retrospecto de tudo.

Cauteloso, tomou Lara nos braços e a deitou em posição digna sobre a cama. Saiu e foi-se escorar na parede da casa que dava direto ao portal da alameda. Com o mesmo interesse de antes, seus olhos penetravam naquele quadro familiar. Esvaziou-se de si e viu que a solidão era coisa ruim.

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segunda-feira, novembro 16, 2009 - 00:05

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COBBETT

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Re: UM HOMEM CONCISO

Parabéns pelo belo texto.

Gostei.

Um abraço,
REF

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