Leonor
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Ming, o meu cão chinês, virtuoso tocador de água — talvez haja melhor designação para a sua habilidade, mas esta agrada-me sobremaneira — foi que me alertou com o seu respingado chap-chap-ploc-ploc-chap-chap espadanando a água da sua tigela vidrada, como sempre que está a preparar-se para partir numa galopada até aos vasos dos gladíolos, onde chega a travar a fundo e a escorregar sobre as patas dianteiras, e aí hesita uns segundos, arrebita a cauda e em nova corrida volta até ao degrau do varandim por detrás do qual eu estou sentado. E, enquanto não me notar alguma reacção, insiste em repetir a manobra até verificar que pelo menos me distraiu da minha ocupação e que eu finalmente percebi que se passa alguma coisa que me pode interessar. Ainda hei-de compilar um glossário dos toques melonomatopaicos que ele usa quando se dessedenta, seja simplesmente para comunicar comigo de forma discreta, seja para exprimir os seus estados afectivos de momento, como clap... clap... clap... clap... quando está modorrento, ou bluc-bluc... bluc-bluc... quando está nervoso com a criançada que assoma às grades do portão a surriá-lo e ele tenta ficar impávido ante a brincadeira. Quis então ele dizer-me: Olha! A vizinha acaba de chegar! E talvez também: E hoje está espampanante! Tamborilei com o lápis na mesa de trabalho e ele entendeu e veio sentar-se aos meus pés, focinho erguido, muito quieto a observar-me com os seus olhos bugalhudos e expectantes, dois enormes berlindes negros a sobressaírem debaixo do montão de pêlo amelado das suas repas. Baixei a mão, fiz-lhe cócegas na moleira e passados instantes ele deitou-se de barriga, no fresco das lajes do chão, alheando-se de mim como se não tivesse mais nada a ver com o caso. Ouvi a Leonor arrumar o carro, fechar a porta da garagem, e depois vi-a retroceder pela faixa relvada, abeirar-se do canteiro das rosas, colher algumas, inspirar-lhes o perfume e então olhar-me e acenar-me com o ramalhete e sorrir-me e entrar em sua casa. Muito vistosa! Razão tivera o cachorro para me alertar. Vestido-bata encarnado cereja, decote muito generoso, penteado solto e em tom mais claro, sandálias de fino salto alto. Por que é que uma mulher tão graciosa tinha por costume andar sempre escondida sob uma incaracterística simplicidade? Data especial, hoje?
Voltei aos meus apontamentos, melhor dizendo, ao jogo especulativo, mas despretensioso, de engendrar respostas não ridículas sobre mais talentos do homem no futuro. Prevêem-se rápidos progressos na fisiologia humana, graças a avançadas técnicas no campo da genética, mas esses aprimoramentos envolvem questões éticas tão controversas que mais provável, e se calhar inevitável, será o recurso à alternativa do desenvolvimento de sofisticadas aplicações cibernéticas, algumas já hoje desenhadas e em fase de investigação experimental, com o objectivo de aperfeiçoar — que papel de Deuses este século nos reservará? — as capacidades sensoriais e outras virtualidades humanas por ora ainda incipientes. Quando ouço discutir como plausível a breve prazo a biologização das emoções, pergunto-me mesmo que mais fantasias se tornarão reais.
Será o factor idade, o que intimida a Leonor, dizia-me eu, quando o cão me notificou com impaciência que eram horas de jantarmos han...han...han... mas logo corrigiu para um alvoroçado grrrr...grrrr...grrrr.. porque soaram umas pancaditas do batente na porta da rua. — Tem calma, que como vês temos visitas. Fica quieto! — objectei-lhe. E fui ver quem era. Era a Leonor. — Olá, Fernando, como está! — Eu estou óptimo. E vocês? O Lourenço? Hoje a Leonor está encantadora! — Acha? Obrigada. O Lourenço convida-o para uma pequena comemoração. Abre amanhã mais uma exposição das suas obras. Um pretexto para confraternizar com meia dúzia de amigos. Vem até lá? — ssfff...ssfff...ssfff... Fica sereno Ming! Deixa a nossa vizinha em paz, que a conheces muito bem. — Dê-me um quarto de hora para alimentar este bicho e tornar-me eu apresentável, e terei muito gosto em associar-me à vossa festa. — Então, até já, Fernando!
Se não era por causa da idade, seria pelo temperamento do Lourenço? Aquela vozearia surda que eu às vezes escutava de noite seria discussão entre eles? Fosse o que fosse não era incomodativa e não me dizia respeito. O cão também não se enfadava. Aos quarenta e poucos anos, a maioria das mulheres faz um balanço da sua gesta e quase sempre conclui que já não vale a pena ter ilusões... A frescura acabou, os homens não merecem ralações nem ardores han...han...han... — Já vai! Estás muito melhor sem patroa, ou não estás? Fica sossegado, que eu hoje vou conversar com a nossa vizinha. Percebeste? A Leonor de certeza já passou dos quarenta... mas é bem bonita! O que é que a prendeu a um pintor? Ora! Que pergunta parva.
Um par jovem, de estilo existencialista, ou rastafari, uma rapariga triste e esguia, com jeito de modelo, anorética, um casal de meia idade, que pelos seus trajes parecia claramente inconformista com a sociedade mundana, mais dois tipos avantajados, esgrouviados, barbudos, muito calvos, em calções e exóticas camisas havaianas, e alcandorados em ares de intelectuais de cachimbo, eram os restantes convidados. Tudo gente distintamente do meio artístico, com o qual eu não tinha relação.
Por homenagem à inesperada vaidade de Leonor eu vestira um casaco decente, elegante e cor de malva, e até decidira pôr um vistoso laço à poeta, mas não imaginei que só eu e ela pensássemos honrar a ocasião com algum luzimento. Tentei entabular conversa com a rapariga modelo, e sinceramente esforcei-me por amenizar-lhe a inefável tristeza, mas depressa desisti. Aquela amargura era um estado de espírito patológico. Embora ela não mo tenha revelado, admito que posar dias e dias, muitas vezes desnuda, e ao cabo não se poder reconhecer numa tela, de criação abstraccionista, deve conduzir a uma acabrunhante frustração psicológica. Salvaram-me da sua melancólica contaminação as bebidas que Leonor, sempre sorridente, amiúde colocava ao meu alcance.
Livrei-me da rapariga e aproveitei para apreciar algumas das obras do meu anfitrião, que decoravam a sala. De uma maneira geral os quadros agradavam-me visualmente. Em matéria de Artes Plásticas sou uma nulidade. Gosto ou não gosto, mas neste último caso prefiro não me pronunciar. Ao que já me constara o meu vizinho era pintor consagrado, e sobretudo benquisto pelo mercado. Parei mais demoradamente a considerar uma das telas, e atrás de mim Leonor interpelou-me com acento risonho: — Está a reconhecer-me aí, Fernando? — Ah! É você?! Interessante, mas falta-lhe qualquer coisa. Shiu, por favor não revele esta minha ousadia crítica. — Pois eu gosto desse quadro, mas concordo, falta-lhe qualquer coisa... Sabia que o Lourenço é daltónico? Mas usa bem a cor, não usa? — Sem dúvida. Vou dizer-lhe um segredo, Leonor: preferia que o quadro fosse um retrato. — Eu também. E ele é um bom retratista; mas nunca me tomou para modelo. Vai mais um copo? — Se me fizer companhia... — O seu cão estará sossegado? Podia tê-lo trazido. Ele dá-se bem comigo, sabe? — Caso raro. Aquela raça é pouco sociável. Mas sim, já reparei que ele a tem em atenção. — Mais do que o dono, que é um bom vizinho mas um tanto eremítico. Desculpe, estas bebidas às vezes soltam-me a língua inconvenientemente... — De facto sou um solitário empedernido, mas em relação a vós tenho uma boa justificação: o meio artístico não me diz nada. — Na realidade esse quadro tem traços meus. — Acredito. Mas só vejo uma semelhança: beleza simbólica. — Fernando, nunca visitou o estúdio do Lourenço, pois não? Se quiser distrair-se enquanto cuido um pouco dos outros convidados, suba até ao sótão e dê uma vista de olhos. Só lhe peço para não destapar o quadro que está no cavalete grande... Ele não gosta que lhe vejam os trabalhos em finalização.
As nossas casas eram geminadas e construídas com projecto igual, por isso achei bizarro que ele tivesse mandado substituir o airoso acesso à mansarda, por uma modesta escada em ferro, de caracol, bem desconfortável de subir, e de gosto duvidoso. Parecia-me um claro artifício para dificultar a acessibilidade ao seu santuário de artista, pois quem subia aqueles degraus denunciava logo a sua aproximação. Mas um artista é um artista, e há que respeitar-lhe os sinais e gostos extravagantes.
No estúdio não deparei com algo muito diferente do que era de supor. Bricabraque, quadros empilhados, desarrumação geral, borrões de tinta por todo o lado, um cavalete encoberto por surrado lençol que já fora branco, mesmo por debaixo da ampla clarabóia, uma desguarnecida mesa de canto, provável peanha para os modelos, vaticinei eu, pela orientação de dois frágeis tripés com projectores de luz, um comprido banco de carpinteiro, pejado de pincéis, ferramentas e tintas, acre cheiro a diluentes.
Com súbita curiosidade comecei a examinar as telas amontoadas sobre um estirador. Na minha opinião haverá obras das quais o autor, quando pode, não se desfaz. Lourenço desiludia-me: aquilo tudo ali eram trabalhos menores. E depois de ter separado alguns depressa fiquei sem paciência para esquadrinhar a pilha toda. À falta de melhor entretive-me a pôr os holofotes a funcionarem. Possuíam aqueles guarda-chuvas que os fotógrafos usam para controlarem a luminosidade e era divertido descobrir as nuances de luz e sombra que eu ia espalhando ao acaso sobre os recantos da mansarda, cujo tecto apesar de tudo estava melhor conservado do que o meu porque fora forrado a quadrados de material plástico amarelo; era mesmo a única superfície imaculada no estúdio.
Por fim interessei-me por uma estante de desproporcionada altura, que continha grandes folhas com esboços. Arrastei para perto um caixote de madeira que desocupei de quatro garrafas de whisky vazias e uma gamela com pincéis, subi e folheei os desenhos da prateleira mais elevada. Tudo retratos a carvão. Saquei-os para baixo e fui sentar-me numa nesga livre de tralha no chão de tábuas, a observar-lhes a perfeição, e as datas, que em todos ele rabiscava o ano, num cantinho da margem do papel. Não estavam por ordem cronológica, mas havia trabalhos ainda recentes. Uma notável diversidade de personagens. Nus também. Muitos da rapariga que estava na sala, desvendando-lhe a suspeitável magreza em que contrastavam uns peitos opulentos. Vários desenhos eram extraordinariamente eróticos.
Posições ousadas. Sexualidade desafiadora. Traço exímio. Efeitos de luz surrealistas. Criações portentosas! Quis vê-los todos, e desejei que o Lourenço não intuísse mentalmente a minha admiração e viesse surpreender-me a inofensiva devassa.
No fim da rima havia uma pasta de cartão. E lá dentro, cuidadosamente embrulhado em papel vegetal, um nu esplêndido de Leonor. Uma Leonor de há alguns anos, sem dúvida. Juventude belíssima. Um corpo que eu já adivinhara antes, e um rosto de cândida expressão que eu por displicência ainda não imaginara. Contemplei-a, ela ali sem rebuço, eu com pura delícia. A idade, claro. Mas isso apenas a amadurecera. Lembrei-me dos olhos miúdos e sem exteriorização de perspicácia, que pontuavam quase impassíveis no rosto bolachudo e raramente barbeado de Lourenço, e sorri-me, irónico. Já não me interessou ver mais coisa alguma. Arrumei tudo como estava antes, apaguei os projectores e com muita cautela na espiral de degraus da escada desci à sala. Lourenço não só continuava a fazer retratos, como também em tempos a desenhara a ela. De facto, ele poderia andar a escamotear-lhe a sua predilecção, e até não lhe teria sido impossível representá-la de memoria, ou a partir de uma fotografia. Mas quanto à lasciva magricela...
À chegada, Lourenço recebera-me com familiaridade mas pouca atenção. Eu também dispensava bem qualquer género de exagero cordial. Desde o primeiro relance aos seus amigos, que me passou pela cabeça que o convite teria sido porventura uma concessão a Leonor. Por isso não me admirei que ele e o seu grupinho de artistas persistissem em ligar-me pouco. Ela é que me chamara ali, e enquanto se comportasse afavelmente comigo ser-me-ia agradável corresponder-lhe à simpatia. Desfiz-me do casaco, arranjei uma bebida, mais água que álcool, e acomodei-me num dos sofás, a folhear um volumoso álbum com imagens das últimas exposições do meu vizinho pintor. E não tardou que a Leonor viesse encavalitar-se no braço do meu cadeirão, comentando cada foto com subtil escárnio. Bravo, Leonor! Exclamei eu para comigo, depois de com ar de pretensa distracção mirar-lhe por instantes o joelho e um pedaço da coxa que o arregaçar da saia lhe pusera à mostra e de reparar na indiferença dos outros convivas, muito enredados numa qualquer discussão intelectual. Estivemos por bom pedaço nessa singela cumplicidade. Até que um dos avantajados tipos das camisas havaianas, copo periclitante na mão e olhar embriagado, veio ao pé dela e ousadamente lhe acariciou o cabelo, e regougou: — Aqueles gajos acabam sempre a discutir a mesma merda. Vai lá tu, jóia, e sossega-os, que eu ainda me irrito e perco as estribeiras com a ignorância deles. E dá-me mais um gole... — Hoje não, que se danem todos! Deixa-me em paz, Frederico. E não bebas mais, que não estou para aturar-te. — retrucou Leonor, enrubescendo e afastando-o com brusquidão, pondo o braço a rodear-me os ombros e chegando-se mais para mim. — Querida!... — insistiu o tipo. — Logo hoje que estás linda como um amor!... — Vai-te e sem escândalo, por favor. — redarguiu Leonor, passando para o outro lado do meu cadeirão. Não gostei da atitude de Frederico. E levantei-me para se necessário meter-me de permeio entre eles. O tipo estava bêbado mas compreendeu a minha intenção e foi refastelar-se no sofá em frente a nós, de copo estendido mendigando mais álcool, olhos turvos talvez a medirem a vantagem da minha sobriedade, ou a natureza da minha relação com Leonor. E foi quando me apercebi das lágrimas silenciosas mas incontidas da minha vizinha. Pousei o álbum e encareia-a. Leonor desviou o rosto, evitando-me o olhar, abanou a cabeça lamentando emudecidamente o episódio, e saiu pela porta envidraçada que desembocava no jardim. Que embaraçoso!
Dei-lhe um minuto para que se recompusesse e saí também, encostando as portadas exteriores de madeira. A luz proveniente da sala era quase nenhuma e à primeira vista não localizei Leonor. sssff...ssfff...ssfff... comunicou o meu cão. Fui dar com ela a fazer-lhe festas através do pequeno gradeamento de separação das nossas habitações. — Aquele é o meu amante. Consegue acreditar? — Leonor, eu não tenho nada com isso, se não a ofendo por desinteresse. Mas você merece muito melhor. Vamos para o lado de lá e sentamo-nos no meu terraço, ou voltamos lá para dentro? — Ficamos aqui mesmo se não se importa. O cão ainda desatava a ladrar-me. — murmurou por entre um suspiro. — Isso é que me custa a crer. É um bicho inteligente e com muita personalidade e a si sempre lhe prestou muita atenção. De certeza que sabe tudo o que eu não sei da Leonor. Quer que lhe vá buscar umas águas minerais? — Por enquanto não vale a pena. Temos ali um banco. Venha! — e meteu-me o braço e conduziu-me na escuridão. — Hoje resolvi dizer Basta! — Porque esperou tanto? Desculpe, estou a ser indiscreto. — Depois da minha confissão? O álcool não subiu só à cabeça deles... Devo estar tonta para lhe contar isto. — grrrrr... avisou Ming. Alguém entreabrira as portadas da sala e espreitara por alguns segundos, mas desistira. — Cala-te Ming! — ordenei eu em voz baixa. — Já me interroguei, por mera constatação, porque é que a Leonor se dissimula numa mulher sem encanto, apagada. — A idade não perdoa, Fernando. Mas como está a ver não tenho nada de santa. Vivo com o Lourenço há tempo de mais, e ainda assim amo-o. Sempre o amei... À infidelidade, incitou-me ele. Há anos que é impotente. — Ah! Compreendo... — Antes era desregrado, com qualquer uma. De repente ficou incapaz. E foi ele, jurando amar-me igual, quem me atirou para os braços do Frederico. Mas agora estamos todos acabados. — Você não, Leonor! — Se calhar hoje não o pareço tanto. Mas o corpo e a alma já envelheceram muito. — Quer que lhe diga que não é verdade? Mas claro que não é! Esse vestido é uma prova. Mostrando-a, torna-a uma séria provocação. Agora, ida a imaturidade juvenil, é uma mulher desejável, e cativante, digo-lhe eu. — En, en... O meio artístico tem alguma fama de libertino, mas eu mantive-me à parte, porque reconhci o mérito do Lourenço e dediquei-me a estimular-lhe o êxito. Agora estou desiludida e cansada. Tão cansada que afinal já nem sei se o amo ou se o detesto. Desculpe-me, mas preciso desabafar... — O Frederico abusa? — Oh, esse não presta... nem conta. O caso é que descobri que a falta de virilidade do Lourenço é falsa. Foi tomando tantas drogas que alguma o arrebitou. Mas nunca me disse. Há quanto tempo me andará a enganar? — Apesar de tudo, você ficou sempre com o Lourenço... — Acredita que foi por amor à pintura dele? Ele tem talento, Fernando. Preciso de beber, mas por favor traga coisa forte, faça-me a vontade... — Lá dentro vou ter algum mau encontro? — Não. Não se preocupe. Daqui a pouco, se é que não estão já prostrados no sono, não se têm de pé. Até poderíamos ir para lá fazer amor, que ninguém nos toparia. Está-me a apetecer dar espectáculo. Se não fosse por si... — Leonor, por mim esteja à vontade. A casa é sua. Conte com a mina colaboração... — Fernando, por favor, um bebida forte... E sem gelo!
Os pombinhos existencialistas já dormitavam, abraçados, num dos sofás; Frederico ressonava, sentado no primeiro degrau da escada de caracol; o casal e o outro amigalhaço tartamudeavam entre si, de olhos quase fechados. Faltava lá a rapariga, que decerto já se fora para casa curtir a tristeza. Lourenço, possivelmente estaria no sótão a aproveitar a inspiração da embriaguez para dar mais umas pinceladas na sua última obra-prima. Hesitei quanto às bebidas que deveria levar para eu e Leonor continuarmos o nosso percurso íntimo. Acabei por me decidir a fazer-lhe a vontade, preparando duas boas doses de Vodka. Hora e meia da madrugada. Regressei para ao pé dela e a princípio fiquei perplexo. Tinha a noção de que ainda não bebera tanto para estar toldado, mas parecia, ou talvez fosse o contraste entre a claridade na sala e a quase escuridão do jardim: no lugar de Leonor o que eu distinguia era apenas uma mancha pálida. Depois, quando ela estendeu a mão para pegar no copo, tomei consciência da realidade e fiquei estupefacto. Leonor estava nua! Absolutamente nua! Veio-me à lembrança a pasta de cartão e o retrato dela, e a sua esbelta linha das ancas e os seios pontudos e a expressão sedutora. Senti o tesão a morder-me. Era Primavera e não fazia muito calor mas eu comecei a transpirar, e ainda me perguntei o que é que lhe dera para me querer perturbar assim. Que intensa sensualidade! Sentei-me, bem próximo dela. Desfiz o laço à poeta e enquanto arregaçava as mangas da camisa ela engorgitou de um trago a sua dose de Vodka. Depois tossicou a apaziguar a garganta e eu, alvoroçado, com o indicador delineei-lhe suavemente na anca uma clave de sol. A reacção dela foi abrir as pernas um nadinha, para me encostar o joelho. Trémula. O contacto aguçou-me a malícia e então confirmei-lhe: — Tem razão. Estamos sós. Os seus convidados já estão a cochilar. O Lourenço, imagino que esteja lá em cima dando mais uns retoques no quadro. Eu também gosto de trabalhar a esta hora. Julgo que a rapariga-tristeza se terá ido embora. — Leonor não me respondeu, mas ergueu-se num repente, correu nua e descalça para a porta da sala, espatifou o copo ao empurrar as portadas violentamente e, a gritar Bandido! Sacana! O que é que ela te dá mais do que eu! Grande safado! Mato-a, se vos apanho a foder! e mais impropérios, entrou em casa fazendo um estardalhaço de quem está a pôr tudo de pernas para o ar, e a gritaria foi-se-me escapando porque decerto ela já subia a escada para o estúdio. Foi a minha vez de emborcar a Vodka. A ardência do álcool atordoou-me um pouco, mas era o que eu pretendia, para impelir-me a escolher sem relutância aquilo que eu entendia dever a Leonor de minha homenagem por um tão belo momento: a liberdade para ela fazer o que entendesse, ainda que tal fosse mesmo dar cabo deles. au au au discutiu o meu cão. — Está calado, Ming. A esta hora, ladrar não! — respondi-lhe, para o serenar.
Pousei o copo no banco do jardim e tranquilo saltei o gradeamento e depois de acomodar o bicho na sua casota fui eu deitar-me. Manda a boa educação, que o que se passa em casa dos vizinhos não deve dizer-nos respeito... Ah Leonor, Leonor!
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