Schopenhauer e o Idealismo Alemão - Parte VI
Vimos então, segundo Schopenhauer, que tudo que fazemos e sentimos está previamente programado e que somos apenas mais uma das tantas expressões com que a Vontade se manifesta, sendo que só no Espaço e no Tempo parecemos Seres independentes e separados do Todo.
Espaço e Tempo que constituem o “principio da individuação”, o qual divide a “Vida” em organismos distintos que surgem em diferentes lugares e épocas.
Espaço e Tempo que são como o célebre “véu de Maya”, ou seja, a ilusão que esconde a unidade de tudo, pois, em verdade, existe apenas a vida e, portanto, a Vontade, que é a sua essência.
Em sua obra “Conversa com Goethe”, Schopenhauer diz que “compreender claramente que o indivíduo é apenas o fenômeno e não a ‘coisa em si mesma’ e ver na constante mudança da matéria a permanência fixa da forma, é entender a essência da Filosofia”. Na sequência ele afirma que:
“Aquele para quem os homens e todas as coisas não tenham parecido, o tempo todo, meros fantasmas ou ilusões, não tem capacidade para a Filosofia. (...) A verdadeira Filosofia da história está em perceber que em todas as intermináveis mudanças e heterogênea complexidade de eventos, é apenas o mesmíssimo ser inalterável que está diante de nós, que hoje persegue os mesmos fins que perseguia ontem e perseguirá sempre. O filósofo histórico tem, por isso, de reconhecer o caráter idêntico em todos os eventos (...) e, apesar de toda a variedade de circunstâncias especiais, de trajes, condutas e costumes, ver em toda parte a mesma Humanidade. (...) Ter lido Heródoto é, do ponto de vista filosófico, ter estudado bastante história. (...) O tempo todo e em toda parte o verdadeiro símbolo da natureza é o circulo, porque ele é o plano ou tipo de recorrência”.
A Vontade e o Determinismo
Entre tantas, tornou-se a célebre a sentença de Voltaire que diz: “deixaremos o mundo tão tolo e depravado quanto o encontramos”.
Mas, ainda assim, gostamos de pensar que a historia foi um reles preparativo para as “glórias” de nossa Era. Porém, essa ideia de progresso, tanto material quanto ético, não passa de uma mera estultice da nossa vaidade, pois, em essência, o homem continua a ser como sempre foi e essa constatação nos remete para a sinistra possibilidade do Determinismo ser tão hegemônico que o nosso decantado livre-arbítrio não seria nada além de uma quimera.
Em sua “Epístola 62”, o filósofo Spinoza diz que se uma pedra lançada no espaço tivesse consciência, ela certamente pensaria que estaria voando por vontade própria. Não seremos iguais a essa pedra? Movidos por uma força que desconhecemos e iludidos que comandamos os nossos voos, não seremos tão títeres quanto todo o resto?
Para Schopenhauer, sim! Todavia, ao contrário da pedra, podemos reconhecer a força que nos impulsiona como sendo a “Vontade” e através desse conhecimento podemos buscar a felicidade que nos for possível; cônscios das limitações que o Determinismo nos permitir e de acordo com as condições impostas pela realidade do mundo, que é “Mal”.
O Mundo e o Mal
Nesse trecho o leitor (a) perceberá o maior ponto de aproximação entre o Hinduísmo e a Filosofia schopenhauriana. Na verdade, é quase que uma adaptação ao estilo literário do Ocidente, daquela ancestral sabedoria dos “sadus” indianos.
Não foi Schopenhauer o primeiro filosofo ocidental a levantar essa questão, pois já na Grécia clássica o assunto veio à baila através dos Cínicos* e, também, de Aristóteles*, mas, deve-se a ele a popularização do tema pelos motivos já citados.
Segundo ele, se o mundo é a Vontade, consequentemente, é um mundo de sofrimentos, pois a Vontade indica necessidade, a qual é de tal magnitude que quase nunca pode ser satisfeita. O desejo é infinito, mas a realização é limitada.
Por isso, estando submetidos ao império dos desejos nunca podemos ter a paz, já que a satisfação de uma querência abre caminho para a seguinte.
Ademais, a própria satisfação do desejo quase sempre acarreta um novo sofrimento, que pode ser causado pela decepção com aquilo que foi conquistado e/ou pelas exigências que o resultado obtido impõe, como, por exemplo, o caso do indivíduo que conquistou um cargo político e se sente incomodado pelos rituais a que tem que comparecer, pressionado pelas cobranças de quem o ajudou na conquista, angustiado pelas responsabilidades que passou a ter etc.
E esse conjunto de frustrações, decepções e angústias levam a novos desejos, inclusive ao de poder renunciar aquilo que conseguido. E mesmo que o resultado seja satisfatório, em pouco tempo novos desejos afloram, incluindo-se o de que a conquista seja ampliada e mantida.
É a essência do mundo.
A Vontade tem de viver dela mesma, porque nada existe, realmente, além dela. Nas palavras de Schopenhauer:
“Em cada indivíduo, a medida do sofrimento que lhe é essencial foi determinada, de uma vez por todas, pela natureza; uma medida que não pode ficar vazia nem ser cheia em excesso. (...) Se uma grande e premente preocupação nos é tirada do peito (...), imediatamente é substituída por outra, cuja matéria-prima já se encontrava lá, mas não podia ser percebida pela consciência como preocupação porque não havia lugar para ela. (...) Mas agora que há espaço, ela vem ocupar o trono”.
E além desses fatos, ainda é preciso considerar que pairam no horizonte humano as eternas ameaças das forças da natureza, como os vulcões, os furacões, as secas, as inundações etc. cujo poder inelutável é capar de arrasar em segundos as obras, as quimeras e utopias que geralmente custaram anos de trabalho, penosos sacrifícios e até mesmo esforços mortais.
Dessa sorte, diante de tudo isso, para Schopenhauer “o otimismo é uma zombaria amarga das desgraças do homem”, sendo a “Teodicéia” de Leibniz, que louva uma suposta bondade divina, uma obra cujo único mérito foi ter servido para que Voltaire escrevesse a irônica antítese da mesma em seu imortal “Candido ou o Otimismo”, no qual, a sua fina ironia, destroi qualquer ilusão de que se “vive no melhor dos mundos”.
Nota do Autor* - Aristóteles disse ser sábio o homem que não busca o prazer, mas libertar-se da dor e da preocupação (ou do Eterno Querer). Os Cínicos repudiavam o prazer pelo mesmo motivo, ficando célebre a situação de Diógenes que habitava em uma barrica. Sabiam que junto do prazer, sempre está a dor (do desejo insaciável).
O Tédio
Mas a taça dos sofrimentos não se esgota na Vontade infinda nem na ameaça dos cataclismos, pois ainda que seja quase impossível satisfazer todos os desejos, se isso acontecesse, em breve chegaria o tédio. O horror de não se ter um objetivo. O terror da inutilidade e do tempo vago que nos permite sentir a nossa mais absoluta dispensabilidade.
E o emergir desse novo sofrer reforça a tese de que a Vida é essencialmente “má”, porquanto tão logo cessa a angústia dos desejos insaciados e a frustração disso decorrente, sobrevém o tédio que pressiona o homem com tamanha intensidade que ele busca com a urgência do desespero desejar alguma outra coisa para escapar daquela opressão tenebrosa.
É o caso, por exemplo, do indivíduo que anseia desesperadamente aposentar-se para fugir de um trabalho e de uma rotina massacrante, mas que tão logo consegue o repouso remunerado busca incontinenti uma nova ocupação*, para fugir do tédio que obsolência acarreta, sob a pena de se afundar na tristeza caso não encontre outra ocupação. Ou, então, o milionário que busca incessantemente aumentar a sua fortuna sem que exista qualquer necessidade ou que exerce uma série de atividades pseudos filantrópicas, culturais e semelhantes apenas para ocupar o tempo.
O fato é que não podemos fugir do que somos em essência: uma das expressões da Vontade.
A Dor e o Conhecimento
E a malignidade da Vida não diminui com o aumento do saber. Ao contrário, pois quanto mais instruído for o indivíduo, maior será o seu sofrimento. Por outro lado, quanto mais estúpido for o sujeito, menores serão os seus desejos e, portanto, a sua dor e o seu tédio, já que dele é possível escapar graças a qualquer tipo de diversão e, também, pelo falacioso consolo que a religião oferece. Segundo Schopenhauer:
“Porque, à medida que o fenômeno da Vontade se torna mais completo, o sofrimento se torna cada vez mais aparente. Na planta ainda não há sensibilidade, não havendo, portanto, dor. Um certo grau muito pequeno de sofrimento é experimentado pelas espécies mais baixas da vida animal. (...). Ele aparece, primeiro, em alto grau, com o completo sistema nervoso dos animais vertebrados**, e sempre em grau mais elevado quanto mais a inteligência se desenvolve. Assim, na proporção que o conhecimento atinge a distinção, que a consciência ascende, a dor também aumenta e chega ao seu ponto máximo no homem. E então, outra vez, mais distintamente o homem sabe – quanto mais inteligente ele for –, mais dor ele terá; o homem dotado de gênio sofre mais do que todos os outros”.
Ademais, aqueles que são mais bem dotados intelectualmente e por isso possuem maior acervo na memória e maior capacidade de antevisão, tem o seu sofrimento aumentado, já que as maiores dores estão nas lembranças e na antecipação dos fatos, quer pelas frustrações dos desejos não realizados, quer pelo temor de não satisfazer os futuros.
Dessa forma, não há como escapar da sinistra constatação de que a Vida se resume no eterno pêndulo de desejo insaciável e tédio avassalador, cabendo ao homem o triste papel de um joguete a serviço da Vontade. Por isso, segundo Schopenhauer, em sua obra magnífica “A Divina Comédia”, Dante só conseguiu descrever corretamente o Inferno, bastando-lhe copiar o que é o mundo; porém, quando tentou descrever o Céu, a Vida não lhe ofereceu nenhum exemplo de paz e felicidade.
Nota do Autor **– atualmente se sabe que a dor nos animais superiores como os cães, os elefantes, golfinhos etc. não se limita apenas aos aspectos concretos, mas, também, provém de fatores abstratos como a saudade, o trauma pela morte de um dos membros da manada etc.
Os Jovens e a Felicidade
Para Schopenhauer a ilusão da felicidade só é possível para a ignorância dos jovens, haja vista que a mocidade acredita ser um prazer estar sob o jugo da Vontade e por isso viver sob a alternância de luta e tédio*.
Apenas com a maturidade** se percebe o peso dessa escravidão e a inevitabilidade da derrota. Segundo Schopenhauer:
“A alegria e a vivacidade da juventude são devidas, em parte, ao fato de que, quando estamos subindo a montanha da vida, a morte não está visível; ela se encontra lá embaixo, no outro lado. (...) Cada dia que vivemos nos dá o mesmo tipo de sensação que o criminoso experimenta a cada passo rumo ao cadafalso”.
Nota do Autor* - essa alternância entre necessidade de lutar continuamente e de ser acossado pelo tédio talvez seja uma das explicações para o consumo de drogas que se verifica nessa fase da vida. Primeiro, droga-se para aumentar a capacidade de combater pelos objetivos e, depois, para tolerar o vazio do tédio.
Nota do Autor** - é possível que o horror que se sente pelo amadurecimento e pela velhice venha da constatação de que nessas idades as ilusões terminam. Quer-se, a todo custo, conservar-se as utopias da juventude, mais do que a própria.
O Medo da Morte
E no fim, resta ao homem encontrar-se com o seu destino: a morte. Justamente quando a experiência se consolida e se transforma em sabedoria, o cérebro inicia o processo de degeneração e, então, até aquele tesouro que se julgava seguro, o saber, começa a perder o seu valor.
E essa perda, somada às outras que se multiplicam por todo o corpo, reforça o medo da morte, que, se antes era apenas instintivo, passa a ser racional, ainda que essa seja a última centelha do raciocínio.
O homem comum não consegue resignar-se com o fim absoluto e por isso cria inúmeras quimeras filosóficas e religiosas para se consolar, mas essa própria crença, especialmente a na imortalidade da alma, é sinal inequívoco do horror que sente. E ante tamanha aflição, não é incomum que ele recorra à demência para fugir dessa funérea perspectiva.
Produção e divulgação de Pat Tavares, lettre, l´art et la culture, assessora de Imprensa e de RP. no Rio de Janeiro, no inverno de 2014.
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