Rousseau e o Romantismo - Final - O Contrato Social
O estudante das obras de Rousseau não deixa de perceber que há um encadeamento entre as mesmas. Para o filósofo, os assuntos políticos, religiosos e artísticos são tópicos de único sistema e, por isso, a sua Filosofia deve ser vista como um todo, apenas dividido em segmentos para melhor exposição das questões.
Assim sendo, observa-se que os princípios políticos que ele defendeu já permeavam toda a sua sistemática antes de serem enfocados, com mais profundidade, em uma de suas obras mais celebradas, O Contrato Social. É o que ocorre, por exemplo, em Emilio, que traz em seus capítulos derradeiros várias questões de Estado e de Governo.
Rousseau inicia o Contrato Social propondo o debate sobre as seguintes questões:
1. O que compele um homem a obedecer a outro homem?
2. Com que Direito um homem exerce autoridade sobre outro homem?
Em seguida, ele alude ao fato de que ambas as situações só acontecem no “Estado de Civilização” e que o motivo para as duas está no consentimento dado por aquele que obedece. Ao contrário, claro, do que acontecia no “Estado de Natureza”, cuja obediência só era possível mediante o emprego da violência.
É, pois, o ato de consentir a essência de um pacto livremente aceito. Pacto esse, que permitiu ao homem compensar as desigualdades físicas entre os indivíduos e, com isso, assegurar a liberdade pessoal de todos e de cada um. Nas palavras de Rousseau:
“Ligar-se a todos enquanto retendo sua vontade livre... Seguir o impulso de alguém é escravidão, mas obedecer (a) uma lei autoimposta é liberdade”.
E é justamente no quesito da “liberdade pessoal” que o contrato proposto por Rousseau afirma-se singular, inovador, corajoso e valioso, por ser totalmente contrário à ideia hegemônica na época, de autoria do filósofo Locke, que admitia a perda da liberdade pessoal que o homem possuía no “Estado de Natureza”, tão logo se associava aos demais.
Para o erudito de Genebra, o indivíduo não só mantinha a sua liberdade, como passava a possuí-la efetivamente apenas quando se socializava, já que antes estava à mercê de todo tipo de pressão e de opressão, em razão da desigualdade física e beligerante.
E ia mais longe o erudito, ao afirmar que a manutenção da “liberdade pessoal” era um imperativo para todo pacto social, o qual, só poderia ser considerado bom e ético se a assegurasse, já que a adesão ao mesmo era voluntária (1).
Para ele, a “liberdade pessoal” teria que ser um Direito assegurado, já que na ausência dela, o homem renuncia à sua própria condição de homem. Em seus termos:
“Todos nascem homens e livres (...) a liberdade lhes pertence e renunciar a ela é renunciar à própria qualidade de homem”.
E esse bem tão precioso só poderia ser garantido através de um acordo entre os indivíduos. Através de um Contrato Social que ele definiu da seguinte forma:
“Uma livre associação de seres humanos inteligentes, que deliberadamente resolvem formar um certo tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência mediante o respeito à vontade geral. O contrato social, ao considerar que todos os homens nascem livres e iguais, encara o Estado como objeto de um contrato no qual os indivíduos não renunciam a seus direitos naturais, mas ao contrário entram em acordo para a proteção desses direitos, que o Estado é criado para preservar. (...) O Estado é a unidade e como tal expressa a ‘vontade geral’, porém esta vontade é posta em contraste e se distingue da ‘vontade de todos’, a qual é meramente o agregado de vontades, o desejo acidentalmente mútuo da maioria.”.
Nesse ponto, Rousseau voltou a discordar de Locke e doutros estudiosos, pois via o Contrato Social como um instrumento capaz de assegurar os Direitos individuais, enquanto aqueles o consideravam como uma simples caixa de ressonância da vontade da maioria, “cujo desejo deveria ser considerado como correto”.
Para o genebrino essa tese era equivocada, pois os indivíduos que formam “uma maioria” podem desejar algo que seja contrário aos interesses e aos objetivos do Estado, criado através do Contrato Social por iniciativa da Vontade Geral, para ser o instrumento capaz de assegurar a liberdade, a igualdade e a justiça.
Ora, como a Vontade Geral é a fonte geradora e a essência do Contrato Social e, este, do Estado e da “maioria” que se formou dentro de ambos, é evidente que ela prepondera e é superior a qualquer outra “vontade”, ainda que de uma “eventual maioria”. Esse trecho, aliás, pode ser exemplificado com uma cena que infelizmente tornou-se comum em nosso país:
“Uma maioria de indivíduos deseja linchar um suposto ladrão, mas a Vontade Geral, expressa na Constituição Federal, proíbe esse ato bárbaro. Assegurou-se a todos, inclusive ao suposto delinquente, o direito de ser julgado equanimente, ainda que contra isso vociferem as almas mais atrasadas e as mentes mais obscuras”.
Para Rousseau, o Contrato Social não é um resultado direto do processo histórico. É uma construção teórica e, justamente por isso, paira acima das paixões e dos instintos primitivos que ainda subsistem na humanidade.
É a partir dessa racionalidade que a Vontade Geral concede força e poder ao Estado para que ele possa assegurar as teses fundamentais de liberdade, justiça, igualdade etc. ainda que isso signifique colidir com alguma “maioria” em situações específicas; e se valer de um conjunto de medidas severas para preservar a sua integridade. Dentre tais medidas, a criação de um tipo especial de civismo com características religiosas2, uma espécie de “fé cívica”, que somada às outras, protegeria a estabilidade política do Estado.
***
Foi enorme a influência das ideias políticas de Rousseau na França, suplantando inclusive a alcançada pelo Liberalismo proposto pelos Filósofos Iluministas como Voltaire, Montesquieu e outros.
Contudo, a ideia de um “Pacto Social” como formador da vida social não foi de sua autoria, haja vista ser um ideário que remonta aos antigos Sofistas da Grécia clássica, como esclarecemos no apêndice sobre o tema que acrescentamos no final desse Ensaio.
De todo modo, cabe-lhe o mérito de ter sido o estudioso que atualizou a questão, popularizando-a de tal maneira que o Contratualismo passou a integrar a base dos novos estudos sobre o assunto.
Na sequência analisaremos com mais minúcias a sua obra, “O Contrato Social”.
Publicado pela primeira vez em 1762 a obra foi e é considerada por muitos estudiosos como a matriz teórica e ideológica da Revolução Francesa de 1788, por fazer a apologia da Igualdade, da Fraternidade e da Liberdade e por solapar conceitos ancestrais e equivocados, como, por exemplo, o famigerado “Direito Divino”, que previa que determinado indivíduo seria o governante, o soberano, por “ter sido escolhido por Deus (sic)”.
E, realmente, os paradigmas que o filósofo sempre defendeu e que na obra compilou, serviram, no mínimo, como fonte de inspiração para aqueles revoltosos. Paradigmas, aliás, que o tempo demonstrou estarem de acordo com as aspirações humanas, já que ainda hoje formam a base para a constituição dos Estados.
Mais adiante faremos a exposição completa da estrutura do livro, mencionando todos os seus itens. Porém, antes disso, destacaremos na sequência alguns desses itens, cuja importância superior é reconhecida por todos. A saber:
1) A discussão sobre o processo de transição entre o “Estado de Natureza” para o “Estado de Civilização” – que já vimos separadamente – e que na obra merece especial atenção por embasar as condições fundamentais do pacto social que assegura a liberdade efetiva de todos os indivíduos, antes condenado ao jugo e à exploração promovida pelos mais fortes fisicamente.
2) A oportunidade criada pelo acordo, para que o homem passasse a escolher seus governantes, numa prévia tentativa de tornar o processo mais racional e menos supersticioso ou religioso.
3) O tratamento dado à questão dos Legisladores. Rousseau reafirma, ali, que toda soberania pertence ao Povo, devendo o Soberano (o Governante) agir conforme a Vontade Geral que é a expressão desse mesmo povo. Dessa forma ele sinaliza para a necessidade de se limitar a autoridade do “Príncipe”, já que ele é um mero sujeito a quem foi delegada a tarefa de governar; não sendo, em absoluto (como muitos ainda hoje acreditam) um Ser mítico e místico, que se legítima no Poder por ter sido escolhido por Deus (sic).
4) A consideração acerca da possibilidade e do dever de ser retirar do Poder o governante que agir de modo contrário à Vontade Popular, sendo, portanto, legítima toda revolução, ainda que violenta, que a população promover nesses casos.
5) Também merece destaque a classificação e a explanação que Rousseau faz das formas de governos, opinando que cada uma dessas formas seja instalada de acordo com o tamanho do território (monarquia para os países grandes, aristocracia para os pequenos etc.).
6) Por último, o seu brado de alerta contra os abusos praticados pelos Governos e os malefícios que isto acarreta ao Estado.
São itens que por vezes passam despercebidos no cotidiano, mas que ao se tornarem objeto de reflexão mostram a grandiosidade que encerram, já que ao se evitar a opressão gerada por governos tiranos, o Ser humano resgata a sua própria dignidade.
Livro I – as primeiras sociedades; do direito do mais forte; da escravidão; volta ao primeiro pacto; o pacto social; do soberano; do estado civil; do domínio real.
Livro II – a soberania é inalienável; a soberania é indivisível; a vontade geral pode errar; dos limites do poder do soberano; do direito de vida e de morte; da Lei; do legislador; do povo; dos diversos sistemas de legislação; divisão das leis.
Livro III – do governo geral; do princípio que constitui as diversas formas do governo; divisão dos governos; da democracia; da aristocracia; da monarquia; dos governos mistos; nem toda forma de governo é apropriada a todos os países; dos sinais de um bom governo; do abuso do governo e de sua tendência a degenerar; da morte do corpo político; como se mantém a autoridade soberana; dos deputados ou representantes; quando a instituição do governo não é um contrato; da instituição do governo; meios de prevenir as usurpações do governo.
Livro IV – a “Vontade Geral” é indestrutível; dos sufrágios; das eleições; dos comícios romanos; do tribunato; da ditadura; da censura; da religião civil.
O Contratualismo é a doutrina que afirma ser a formação de “O Estado” ou da “Comunidade Civil” o resultado de um acordo feito pelos indivíduos que passarão, então, a serem seus membros.
Provavelmente a sua gênese aconteceu entre os chamados Sofistas na Grécia clássica. Aristóteles, por exemplo, atribuiu a Licofron, discípulo do Sofista Górgias a sentença que o resume:
“A Lei é pura convenção e garantia dos direitos mútuos”.
Porém, o próprio Aristóteles se opunha à tese contida na frase, argumentando que: “ela (a convenção, o acordo) não seria capaz de tornar bons e justos os cidadãos, pois cada qual pode convencionar o que bem entender, sem compromissos com a verdade, com a justiça etc.”.
Posteriormente Epicuro retomou a tese ao afirmar que o Estado e a Lei são resultantes de um contrato, cujo objetivo é facilitar as relações entre os homens. Outro filósofo antigo, Carneades emitiu uma ideia parecida em um célebre discurso que proferiu em Roma.
Depois, um longo tempo passou sem que o tema voltasse à ribalta e na obscuridade permaneceu durante toda a Idade Média, eivada de superstição religiosa como sustentáculo da tirania feudal. Acreditava-se naquele interregno que as Sociedades eram formadas “por desígnio divino e governadas por seus representantes do clero e da nobreza (sic)”.
Na Idade Moderna o Contratualismo ressurgiu e junto com o Jus naturalismo (teoria do Direito Natural) transformou-se no grande instrumento para a luta pelos Direitos Humanos. Assim, em 1579, em Genebra, os Calvinistas retomaram o tema “Contrato” em sua publicação “Vindicae contra Tyrannos”, para reivindicar o direito do povo se rebelar contra o Rei sempre que o mesmo não cumprir o “Contrato Social” estabelecido. Com esse mesmo espírito, João Altúsio (Johannes Althaus [Althussius] 1557-1638 – Vestfália, Alemanha) utilizou a doutrina contratualista para explicar a formação das sociedades humanas, enfatizando que o contrato não deve ser visto apenas como um acordo entre os súditos e o rei, mas, também, como a regra disciplinadora das relações entre os súditos em todas as circunstâncias da vida em comum.
Posteriormente Hobbes e Spinoza puseram a doutrina a serviço do “poder absoluto”. Hobbes, em sua obra “O Leviatã” disse: “transmito meu direito de governar-me a este homem ou a esta assembleia, contanto que tu cedas o teu direito da mesma maneira”. Spinoza, por sua vez, consignou a ideia de que o direito do Estado constituído pelo consenso comum só é limitado por sua força, que é o “poder da multidão”. Entrementes, outros pensadores como Grócio (Grotius Hugo – 1583-1645 – Holanda), Pufendorf (Samuel – 1632-1694 – Alemanha) e Locke (John – 1632-1704 – Grã Bretanha) utilizaram o conceito de “pacto social” para demonstrarem que o Poder Político só pode ser limitado, por ter sido gerado por um Contrato. Locke, por exemplo, citou-o para defender a Revolução Liberal inglesa de 1688 que constrangia o poder da coroa real.
No Iluminismo, o Contratualismo encontrou em Rousseau uma nova expressão, a qual divergia do conteúdo original, no tocante à liberdade pessoal. Pregava o sistema inicial que o indivíduo deveria renunciar os seus “direitos naturais” para poder gozar dos “direitos sociais”; porém, Rousseau afirmou que os “direitos naturais” simplesmente não existiam, haja vista a submissão do mais fraco ao mais forte. Para ele, o indivíduo só passou a ter “direitos” quando se tornou membro de uma sociedade. Ademais, o contrato tem o poder de legitimar os vínculos sociais; com o que, aliás, Kant concordou ao afirmar que:
“O ato pelo qual o próprio povo se constitui em Estado, ou melhor, a simples ideia desse ato, que per si só permite conceber sua legitimidade, é o Contrato original, segundo o qual todos no povo renunciam à liberdade externa para retomá-la imediatamente como membros de um corpo comum”.
Atualmente ainda é assaz importante por permitir uma melhor compreensão acerca da formação dos Estados ou da Comunidade Civil; e como aumenta continuamente o uso que as Ciências e a Filosofia atuais fazem de conceitos como “convenção”, “acordo”, “compromisso” etc. pode-se prever uma retomada daquela antiga importância, consolidando a sua característica de perenidade.
Na sequência, iniciaremos os estudos sobre Descartes e o Racionalismo.
Nota do Autor1 - na prática, a adesão ao pacto social não é tão livre quanto afirmava Rousseau, haja vista que desde o seu nascimento, o indivíduo é impelido a aceitá-lo. É claro que esse mesmo sujeito pode rejeitá-lo e tornar-se uma marginal à sociedade, vivendo como um criminoso ou como um ermitão, mas é um passo tão difícil que apenas a minoria o dá. De qualquer forma e não obstante a dificuldade em viver à margem da sociedade, Rousseau considerava que o simples fato de existir essa possibilidade era suficiente para legitimar a tese de que o pacto era absolutamente voluntário.
Nota do Autor2 – Rousseau propôs a formação de uma religião, chamada de “Cívica” ou “Natural”, que combinaria a adoração a Deus com a veneração à Pátria. O leitor (a) encontrará mais detalhes no capítulo relativo às ideias do filósofo sobre a religião.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.
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