O cabeça de burro

Lá fora a chuva.
Cá dentro um ambiente morno e uma manta de viagem pelos joelhos.
Lá fora nem noite nem dia.
Cá dentro um copo de vinho tinto "Cabeça de Burro".
Lá fora só xi da água a caír a direito sem incómodo do vento.
Cá dentro nem tempo de moscas é.
A folha impiedosamente silenciosa ergue-se penetrante na máquina de escrever.
O autor está sentado erecto, braços traçados sobre o peito, os olhos fitos nas teclas redondas escuras mas já nem sequer consegue distinguir as letras, os numeros, os pontos, as virgulas e os outros sinais.
À força de tanto olhar já nada vê e uma mancha parda enloda os contornos da realidade.
Fecham-se as pápebras num bater rápido do sono e num estremeção agita-se, despertando-se desta coisa menor.
Respira fundo, buscando no âmago as palavras que se atrasam.
E de tanto esperar, distrai o espirito com o pó da mesa, nas cutículas secas dos dedos da mão esquerda, nas duas narinas avidamente vazadas do seu muco, no treino de rolar impurezas do seu organismo entre a pinça do polegar e o indicador.
Pronto! Acabou o recreio.
O autor bate enérgico nas pernas, palmas abertas acordando o sangue que se lhe toldou.
E assim fica: paralisado na acção, no pensar, na saída do caudal imenso daquele romance já tantas vezes escrito e aperfeiçoado nas noites de insónia. Recorda-se perfeitamente dos tempos dos verbos, inscritos a bafo quente na fronha de algodão, no virar das páginas pintadas a letrinhas negras, e na sublimação do dever cumprido ao partilhar tal genialidade com toda a população.
Mas agora não sai nada.
Bebe gentil a golinhos finos o "Cabeça de Burro". Talvez o vapor etílico lhe faça subir o texto calcado em tal fundo que não o descobre.
Sente uma dormência maravilhosa, uma leveza nos membros e na cabeça que lhe dão um aconchego de colo.
Um suave calor embrulha-o consolando a ausência da veia artistica.
Recorda-se agora, como numa explosão, das contas de telefone e da electricidade que devem vencer por estes dias. Factos mesquinhos que nunca deveríam ocupar espaço algum no intelecto do autor, do artista.
Sim! Porque o artista não é um homem comum: alimenta-se porque necessita que o corpo se mantenha vivo para os seus leitores; paga contas para que passe despercebido entre os mortais.
Leva assim, esta vida dupla, duplamente árdua da vulgaridade e do espirito.
E nesta dicotomia sente-se perdido, como se fosse um apátrida, sem céu nem inferno, apenas aliviado quando a pressão da arte se escapa pelos seus dedos para o papel branco.
Aí tudo lhe é familiar: as letras, as palavras, as frases, as personagens que criou e a quem deu vida, rumo e tantas vezes a morte como destino final.
É que o autor é como um deus.
Tem em si o poder de parir e matar.
E o autor é também um anjo: sem sexo, tanto pode aparecer aos leitores como macho fecundante como mulher fatal que liquida as suas presas após a leitura da sua obra.
Perdido nestas cogitações, o autor apercebe-se da presença do seu cão, estiraçado de lado sobre o tapete gasto de tanto pisar.
Dorme o cão, calmo, indiferente ao turbilhão de ideias que enchem o autor.
Que pensará este cão que está fechado ao mundo?
O autor afaga-o, sentindo as orelhas compridas macias, veludentas, agora com uma sensibilidade extra na ponta dos dedos...o tinto néctar continua a percorrer o seu corpo lenta, vagarosamente como um veneno serôdio que invade o interior das suas veias, substituíndo o sangue.
Senta-se perto do cão continuando a acariciá-lo. Sorri quando a ponta da cauda se agita demonstrando o agrado pela atenção dispensada.
Enrola-se o cão como uma fartura de feira e volta ao seu sono, ignorando a angústia do seu dono.
O autor fecha os olhos e agora não consegue pensar em nada: há um vazio a ocupar um espaço na sua cabeça, que sendo vazio ocupa lugar.
Tenta abrir os olhos mas não lhe apetece. Nem tão pouco consegue: as pálpebras pesadas parecem estar cosidas para todo o sempre e agora já nada mais vislumbra.
So lhe resta apelar à imaginação e às recordações.
Mas tudo é um cansaço e só de tentar recuperar o assento frente à máquina de escrever deixa-o estafado.
Exausto, pesado e agrilhoado ao "Cabeça de Burro" desiste de lhe tentar escapar e num abandono profundo e saboroso deixa-se ir.
Recostado no sofá, o cão aquecendo os seus pés, dorme.
A chuva aumentou lá fora e agora acompanhada de vento, atira-se às vidraças violenta.
Mas para o autor só há silêncio.
Entreabriu a boca, o queixo pendeu um pouco, solta sons guturais de dentro de si e quase nada o diferencia do cão, ambos fechados à vida.

Submited by

Sunday, November 16, 2008 - 20:14

Prosas :

No votes yet

SantAna

SantAna's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 14 years 9 weeks ago
Joined: 03/08/2008
Posts:
Points: 174

Add comment

Login to post comments

other contents of SantAna

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Prosas/Others Acordada 1 419 08/08/2008 - 21:27 Portuguese
Prosas/Others Clones 3 403 08/01/2008 - 09:05 Portuguese
Prosas/Contos Yoreg 3 444 06/17/2008 - 23:59 Portuguese
Prosas/Others Quarto encantado 2 361 05/19/2008 - 21:56 Portuguese
Poesia/Sadness Poema sem pontuação 3 1.357 04/21/2008 - 18:42 Portuguese
Prosas/Others (A)Guardar 2 664 04/10/2008 - 21:17 Portuguese
Prosas/Others Como te dói? 3 472 04/04/2008 - 09:09 Portuguese
Prosas/Others Um copo 2 545 04/03/2008 - 18:33 Portuguese
Prosas/Contos De Andarillus 2 560 03/30/2008 - 18:03 Portuguese
Prosas/Others Cenários 1 529 03/28/2008 - 22:52 Portuguese
Prosas/Others Vilda 1 525 03/25/2008 - 10:04 Portuguese
Prosas/Others Regina 2 504 03/21/2008 - 23:26 Portuguese
Prosas/Others Dança? 2 641 03/19/2008 - 17:21 Portuguese
Prosas/Others Filmes 1 521 03/17/2008 - 23:07 Portuguese
Prosas/Others Boa Noite 2 498 03/15/2008 - 01:41 Portuguese
Prosas/Others Amanhã há mais 1 615 03/13/2008 - 01:32 Portuguese
Prosas/Others A mentira da palavra 1 1.309 03/12/2008 - 01:57 Portuguese
Prosas/Others Pingos de lembradura 1 822 03/12/2008 - 01:54 Portuguese