Prefácio da Segunda Parte

Cuidado, leitor, ao voltar esta página!

Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório: — a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.

Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.

A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia: — duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.

Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui é um tema, senão mais novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão fasbionable desde Werther até René.

Por um espírito de contradição, quando os homens se vêem inundados de páginas amorosas preferem um conto de Bocaccio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare, um provérbio fantástico daquele polisson Alfredo de Musset, a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na moda e reduz as moedas de oiro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre, divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros. Antes da Quaresma há o Carnaval.

Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.

O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem: Homo sum, como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem artérias — isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia.

O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta, porque sua vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico, sem ser monótono. Digam e creiam o que quiserem: — todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.

O poema então começa pelos últimos crepúsculos do misticismo, brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia puríssima banha com seu reflexo ideal a beleza sensível e nua.

Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.

É assim. Depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de Byron vem o Cain e Don Juan — Don Juan que começa como Cain pelo amor e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.

Agora basta.

Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas páginas, destinadas a não serem lidas. Deus me perdoe! assim é tudo!... até prefácios!

Submited by

Monday, April 13, 2009 - 23:53

Poesia Consagrada :

No votes yet

AlvaresdeAzevedo

AlvaresdeAzevedo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 14 years 19 weeks ago
Joined: 04/13/2009
Posts:
Points: 303

Add comment

Login to post comments

other contents of AlvaresdeAzevedo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Fotos/Profile Alvares de Azevedo 0 1.948 11/23/2010 - 23:37 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Noite na Taverna (Capítulo IV — Gennaro) 0 2.074 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Noite na Taverna (Capítulo V — Claudius Hermann) 0 2.543 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Noite na Taverna (Capítulo VI — Johann) 0 1.921 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Noite na Taverna (Capítulo VII — Último Beijo de Amor) 0 1.509 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Macário - Introdução 0 1.446 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Macário - Primeiro episódio 0 1.221 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Macário - Segundo episódio 0 1.274 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Sombra de D. Juan 0 1.314 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Na várzea 0 1.245 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General O editor 0 1.433 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Oh! Não maldigam! 0 1.733 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Dinheiro 0 1.427 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Adeus, meus sonhos! 0 1.448 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Minha desgraça 0 1.531 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Página rota 0 1.260 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Noite na Taverna (Capítulo I — Uma noite do século) 0 1.553 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Noite na Taverna (Capítulo II — Solfieri) 0 2.002 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/Tale Noite na Taverna (Capítulo III — Bertram) 0 3.093 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Panteísmo 0 1.133 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Desânimo 0 1.216 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General O lenço dela 0 1.279 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Relógios e beijos 0 1.472 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Namoro a cavalo 0 1.666 11/19/2010 - 15:52 Portuguese
Poesia Consagrada/General Pálida imagem 0 1.319 11/19/2010 - 15:52 Portuguese