A Jóia - Ato Segundo - Cena V

Cena V

Carvalho, Valentina

Carvalho (À parte.) - Ele já sabe de tudo...

Temo-la travada!

Valentina (Na mesma agitação, senta-se na poltrona e amarrota e rasga o lenço.)

- Inferno!

Carvalho (À parte.) - Está tão zangada,

que incontinente me mudo...

(Pega no chapéu e dispõe-se a sair sorrateiramente.)

Valentina (Levantando-se rapidamente.) - Faça favor!...

Carvalho - Valentina...

Valentina (Imperiosamente.) - Venha cá!

Carvalho (Aproximando-se timidamente.) - Cá estou

Valentina - Aqui!

Como o senhor nunca vi

homem tão tolo e sovina!

Vá-se embora, se quiser,

nem mais um segundo tarde!

Mas saiba que é de um covarde

maltratar uma mulher!

Pois se é tão pobre o senhor,

que meia dúzia de contos

não tem na carteira prontos,

e deles possa dispor,

por que razão prometeu

dar-me uma jóia?...

Carvalho - Eu te digo...

Valentina (Passeando agitada.) - Supu-lo tão meu amigo...

Carvalho (Acompanhando-a.) - E eu não sou amigo teu?

Valentina - Encontrei ali na esquina

O Joalheiro! Se ouvisse

as coisas que ele me disse!

Carvalho (No mesmo.) - Mas ouve cá, Valentina...

Valentina - Julga o senhor por acaso

que eu não tenho quem me dê

seis... vinte contos?! não vê!

Sou eu que não faço caso

de muitos banqueiros que andam

a fazer-me roda!... Ontem

(deixá-los que desapontem:

não recebo o que me mandam!)

um lá da Rua Direita

que fez fortuna a galope,

mandou-me num envelope

um conto! Fiz-lhe a desfeita

de não querer: devolvi-lho!

Carvalho - Ele não te conhecia?

Valentina - Não senhor.

Carvalho - Foi covardia:

maltratou-te! Ai, que se o pilho!

Valentina - Covardia foi a sua!

Uma covardia enorme!

Carvalho - Mas ouve, afinal!

Valentina - Expor-me

ao ridículo na rua!

Escute, senhor... Seu nome?

Sempre me esquece!...

Carvalho - Carvalho

Pra evitar este trabalho,

aqui tem um cartão. (Dando-lhe.) Tome.

Valentina - Escute: se o senhor fosse

um pobretão, um mendigo;

se não trouxesse consigo

os contos de réis que trouxe,

o mesmo afeto lhe tinha,

a mesma atenção lhe dava,

o mesmo agrado mostrava,

o mesmo gosto mantinha!

Mas o senhor está bem...

Antes o não estivesse...

Carvalho (À parte.) - Esta agora! se eu soubesse

não tinha gasto vintém...

Valentina - Em minha casa que paga

julga o senhor, porventura,

a amizade santa e pura

desta infeliz que o afaga?

Pois saiba que o seu dinheiro,

se o gasta, não é comigo!

Carvalho - Pois eu não gasto contigo?

Valentina - Não, senhor. Ouça primeiro

e depois fale à vontade.

(Fazendo-o sentar-se à força na poltrona.)

Sente-se... Vamos! convenha...

Acha provável que tenha

mais doce comodidade

em qualquer outra poltrona?

Carvalho - Não acho, não, certamente

que este cômodo excelente

nenhuma outra proporciona.

Valentina - Bem! agora venha cá.

(Fá-lo erguer-se da poltrona e deitar-se no sofá.)

Deite-se... deite-se! Assim!

Carvalho (Deitado.) - Mas que queres tu de mim?

Valentina - Que tal acha este sofá?

Diga... Diga!

Carvalho - É uma obra prima!

É o melhor sofá do mundo!

A gente vai para o fundo

e depois volta pra cima!

Hoje - não te digo nada -

fiz uma bela soneca!

Valentina - Levante um pouco a careca,

e chegue mais a almofada.

Carvalho (Depois de obedecer.) - Estou no sétimo céu!

Valentina - Pois bem: venha ver o oitavo!

Erga-se! siga-me!

(Leva-o à porta da direita alta.)

Carvalho (Olhando para dentro.) - Bravo

Que belo sobrecéu!

que cortinado bonito!

Valentina - E a cama?

Carvalho - A cama conheço...

Valentina - Que tal?

Carvalho - Um traste de preço,

de um gosto muito esquisito

pouco mais alta que o chão...

Valentina - É moda agora...

Carvalho - Sei... sim...

A gente, se faz assim,

bate nas esteira coa mão

Minha cama na fazenda

é deste tamanho...

Valentina - É alta!

Carvalho - Ninguém para cima salta

sem que a dar um pulo aprenda!

Por causa disto a madama

viu-se muito embaraçada:

muito depois de casada,

não se deitava na cama,

sem subir por uma escada!

Hoje pula como um gato!

Valentina (Apontando sempre para o quarto.)

- Veja que lindo tapete!

que magnífica toalete!

que guarda-roupa!

Carvalho - É exato.

Valentina - Peanhas, estatuetas,

ondinas de biscuit!

(Percorrendo a cena e mostrando a sala, trazendo Carvalho pela mão.)

Veja: nada falta aqui!

Chinoiseries, bocetas,

e reposteiros de rendas!

Espelhos, lindas gravuras

em suntuosas molduras!

Carvalho - Sim, tens aqui muitas prendas.

Valentina (Descendo à cena.) - Muito dinheiro enterrado

está aqui!

Carvalho - Tens gosto. Toca!

Valentina (À Parte.) - Na Rua da Carioca

tem sido tudo comprado...

Carvalho - O que te digo é que há trastes

que com o dono parecem!

Teus olhos tudo merecem;

que importa que tudo gastes?

Valentina (Aproximando uma cadeira.)

- Meu caro, agora expliquemo-nos.

Os cobres que me tem dado

emprego... tenho empregado

em tudo isto...

Carvalho - Sei.

Valentina - Sentemo-nos.

Carvalho - Sim... tanto se paga em pé

como sentado. (Senta-se.)

Valentina - O senhor

não traz o meu puro amor

dentro do porte-monnaie

Paga poltrona macia,

leito fofo e perfumado,

suntuoso cortinado,

custosa tapeçaria.

Os carinhos de uma amante

com beijos se restituem:

eles nãos se retribuem

com sujo metal sonante.

Este rifão acertado

sempre na memória traga:

amor com amor se paga...

Carvalho - É muito velho o ditado

porém não menos o é

o que diziam meus tios...

Valentina - Qual é?

Carvalho - Dois sacos vazios

não se podem ter de pé.

E há mais outro...

Valentina - Ouça primeiro:

o senhor gosta do luxo;

pois bem: agüente o repuxo,

uma vez que tem dinheiro.

Eu, para estar de harmonia

com o luxo que vejo em roda

de mim, devo andar à moda,

ter preciosa pedraria.

Quer que lhe tenha paixão,

sem que lhe custe brilhantes?

Vivamos quais dois amantes

dos tempos que já lá vão.

Pr’algum romance ou comédia

terão assunto depois!

Carvalho! sejamos dois

amantes da Idade Média!

Lá, numa ilha deserta,

longe da vista mundana,

vivamos numa choupana

de verdes folhas coberta!

Deixa tudo quanto tens,

esposa, filha, fortuna!

Nada disso se coaduna

coa vida que viver vens.

Sim ou não? Responde, enfim! (Erguendo-se.)

Mas nos teus olhos eu leio

a hesitação, o receio...

É que só me amas assim!

Se por acaso me visses

magra, suja, maltrapilha...

Carvalho (Levantando-se.) - Onde, meu Deus?...

Valentina - Na tal ilha...

... duvido que tu sentisses

a caridade vulgar,

sequer, por esta a quem hoje

o dinheiro foge, foge,

porque quer decente andar.

Se me amas porque sou bela,

mais bela faze-me ainda:

verás como fico linda

com os tais brilhantes!

Carvalho (À parte.) - Cautela!

(Conduz Valentina para o sofá e sentam-se.)

Agora atenção me presta?

Pois não me interrompa, e ouça!

Arre! que nunca vi moça

mais exaltada que esta!

Eu quero dar-te as tais bichas:

tomo o céu por testemunha!

Mas tomas o pião à unha

e desejas que haja rixas

onde amor só deve haver!

- É um refinado tratante,

(acredita!) o meliante

que as tais bichas quer vender.

Conheço aquele menino!

e juro, por Quem nos ouve,

que até esta data, não houve

quem me enganasse... sou fino.

Valentina - Muito fino! És um portento!

Carvalho - As bichas são muito belas;

mas ele pede por elas

mais cinqüenta por cento

do que deve! O maganão

quer roubar duma assentada

dois contos! Que vá pra estrada,

de bacamarte na mão!

Já fiz ver ao tal sujeito:

por quatro coas bichas fico.

E não abro mais o bico

a semelhante respeito.

(Ergue-se e passeia pela sala, com as mãos nas costas. Pausa.)

Valentina (À parte.) - Que idéia! (Levanta-se. Alto.)

Bem pouco entendo

de jóias.

Carvalho - Entendo eu!

Por isso o preço ao judeu

fui logo, logo dizendo.

Valentina - Não sei se estás a iludir-me;

se as bichas valem somente

o preço que dás...

Carvalho - Ó gente!

Outro ouvires que o confirme!

(À parte.) Se ela indaga, estou perdido!

Valentina - Pode bem ser que não queiras

dar-me os seis contos e...

Carvalho - Asneiras!

Não quero é ser iludido!

Faze-me mais um discurso!

vem-me com outras cantigas!...

mas olha que não me obrigas

a fazer figura de urso!

Valentina - Não queres gastar, mau, feio!

Tens um meio extraordinário

para provar-me o contrário.

Carvalho - Vamos lá ver esse meio.

Valentina - Vou falar já com o ouvires,

se o valor a jóia tem

que dás, ele cede...

Carvalho - Bem!

Valentina - Mas, para que não te prives

do gosto de me of’recer

os seis contos por inteiro...

Carvalho (À parte.) - Aí! que aí volta o pampeiro!

(Alto.) Mais eu não posso entender...

Valentina (Afagando-o.) - Não te contrario: assim

bem mostro que te idolatro:

se a jóia compras por quatro

dar-me-ás os dois para mim.

Carvalho (À parte.) - Ai, ela agora filou-me!

Valentina (Largando-o.) - Hesitas? Eu logo vi!

Carvalho (Titubeando.) - É que... tu sabes... mas... se...

(À parte.) ‘Stou arranjado! apanhou-me!

Valentina - Senhor, supus...

Carvalho - Não te excites;

eu vou buscar o dinheiro...

manda chamar O Joalheiro. (Tomando o chapéu.)

Mas ouve, e não te arrebites:

se ele der por quatro, é tua

e tens mais dois. Se não der

por isso, não hás de ter

nem jóia nem... (Sinal de dinheiro.)

Valentina - Anda! Rua!

(Carvalho sai.)

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Wednesday, April 15, 2009 - 23:41

Poesia Consagrada :

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