Por que cantamos? (Mário Benedetti)

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos

se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos

se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

você perguntará por que cantamos

cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.

Mário Benedetti (1920-2009), poeta uruguaio.
 

Submited by

Wednesday, June 1, 2011 - 19:04

Poesia :

No votes yet

AjAraujo

AjAraujo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 7 years 18 weeks ago
Joined: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Login to post comments

other contents of AjAraujo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Intervention A uma mendiga ruiva (Charles Baudelaire) 0 14.417 07/03/2014 - 02:55 Portuguese
Poesia/Intervention Coração avariado 1 6.595 06/25/2014 - 03:09 Portuguese
Poesia/Fantasy Flores bonecas 2 4.855 06/24/2014 - 20:14 Portuguese
Poesia/Intervention Caminho de San Tiago 0 6.069 06/24/2014 - 00:31 Portuguese
Poesia/Sonnet Há em toda a beleza uma amargura (Walter Benjamin) 1 5.880 06/20/2014 - 21:04 Portuguese
Poesia/Sonnet Vibra o passado em tudo o que palpita (Walter Benjamin) 1 6.616 06/19/2014 - 23:27 Portuguese
Poesia/Meditation Sonhe (Clarice Lispector) 1 9.389 06/19/2014 - 23:00 Portuguese
Poesia/Intervention Dá-me a tua mão (Clarice Lispector) 0 8.326 06/19/2014 - 22:44 Portuguese
Poesia/Intervention Precisão (Clarice Lispector) 0 9.803 06/19/2014 - 22:35 Portuguese
Poesia/Meditation Pão dormido, choro contido 1 5.086 06/13/2014 - 04:02 Portuguese
Poesia/Fantasy A dívida 1 5.171 06/12/2014 - 04:52 Portuguese
Poesia/Intervention Eco das Ruas 1 3.832 06/12/2014 - 04:38 Portuguese
Poesia/Aphorism Maneiras de lutar (Rubén Vela) 2 6.738 06/11/2014 - 11:22 Portuguese
Poesia/Aphorism O médico cubano, o charuto e o arroto tupiniquim (cordel) 2 8.285 06/11/2014 - 11:19 Portuguese
Poesia/Intervention Espera... (Florbela Espanca) 0 3.617 03/06/2014 - 11:42 Portuguese
Poesia/Intervention Interrogação (Florbela Espanca) 0 7.561 03/06/2014 - 11:36 Portuguese
Poesia/Intervention Alma a sangrar (Florbela Espanca) 0 5.591 03/06/2014 - 11:32 Portuguese
Poesia/Sonnet Vê minha vida à luz da proteção (Walter Benjamin) 0 4.903 03/03/2014 - 13:16 Portuguese
Poesia/Dedicated Arte poética (Juan Gelman) 0 5.889 01/17/2014 - 23:32 Portuguese
Poesia/Dedicated A palavra em armas (Rubén Vela) 0 3.945 01/17/2014 - 23:01 Portuguese
Poesia/Fantasy A ÁRVORE DE NATAL NA CASA DE CRISTO (FIODOR DOSTOIÉVSKI) 0 4.025 12/20/2013 - 12:00 Portuguese
Poesia/Dedicated Aqueles olhos sábios 0 6.601 10/27/2013 - 21:47 Portuguese
Poesia/Thoughts Asteróides 0 5.254 10/27/2013 - 21:46 Portuguese
Poesia/Thoughts O que se re-funda não se finda 0 6.121 10/27/2013 - 21:44 Portuguese
Poesia/Intervention Para mim mesmo ergui…(Aleksander Pushkin) 0 4.691 10/16/2013 - 00:14 Portuguese