O Álibi

O Álibi

Eu estava distraído, olhando para as pernas da psicóloga. Ela usava uma saia cinza, pouco acima dos joelhos. Os óculos e os cabelos loiros presos davam-lhe um charme típico de... uma psicóloga. Não sei se ela sabia, mas minha vida dependia daquela entrevista. Eu poderia deixar aquele... (Como chamar aquilo? Instituição? Clínica? Manicômio? Prisão? Asilo? ...?) enfim, eu poderia deixar aquele lugar por bom comportamento. Todos gostam de bom comportamento. Eu era muito jovem para estar ali. Não poderia estar pagando tão caro por um pequeno momento de descuido. Uma falha. Não sabia quanto tempo poderia aguentar mais. E uma ideia obscura já rodeava meus pensamentos como uma névoa que vai tomando conta da paisagem em volta. Já havia até uma recomendação. Os objetos pérfuro-cortantes não deviam ser deixados próximos. Será que aqueles olhos verdes, tão belos, tão claros, por trás daqueles óculos, compreendiam aquilo?

- Você está me ouvindo?
- Desculpe-me... – respondi.
- Perguntei se você pode me falar sobre alguma boa recordação de sua infância.
- Sim... Eu estava pensando...

***

Era uma tarde de sol. Uma andança como qualquer outra da época das férias, na casa dos avós, em uma pequena cidade do interior.
Um pequeno riacho debaixo da ponte. Nada demais. Um córrego, para falar a verdade. Sempre esteve ali. Nunca tinha reparado direito nele. Mas foi então que o dia deixou de ser um dia qualquer. Havia um barco de madeira amarrado com uma corda em farrapos. Um barco pequeno. Sozinho. Sem dono.
Mente vazia, oficina do diabo. Eu precisava dar uma volta naquele barco.
Era patético. Não havia fundo para remar. O remo encostava na lama. Eu não remava, apenas empurrava o barco com o remo na lama. Mas, na primeira curva, uma surpresa. Um monte de latas de óleo automotivo boiando no rio. Havia um posto de gasolina ali perto. Naquela época não se falava em ecologia. O dono do posto despejava tudo ali. Ainda era no tempo em que aquelas latas eram de um papelão grosso, com o fundo e a parte de cima de ferro. Peguei uma lata, depois outra. Peguei um monte de latas. Foram várias viagens para levar todas as latas para o barranco.
Devolvi o barco, olhando com cuidado para ver se não havia alguém escondido para me dar uma surra. Nada. Escapei.
Dei uma passada na olaria do Seu Alcides, para pegar “emprestadas” algumas tábuas velhas das prateleiras dos tijolos que ficavam para secar.
Meu avô tinha uma marcenaria no quarto dos fundos. Passei lá para pegar um serrote.
Uma passada no quarto da avó, para mais um “empréstimo” de meias finas. Meias davam ótimas bolas. Se a velha descobrisse iria ficar louca. Eram daquelas meias cor da pele. Ela as usava para ir para a igreja. Sempre dizia que todo homem precisava ter uma religião. Coitada.
Comecei a montar a pirâmide de latas na beira da rua. Ainda não havia calçamento. Uma pirâmide enorme. Não sei se era tão grande, mas quando a gente é pequeno tudo fica imenso.
Uma tábua em cima de cada fileira de latas. Serra aqui, coloca ali. Uma fila de latas, uma tábua. Mais uma fila de latas, mais uma tábua. Eu era um engenheiro! Fiz um pequeno corte em um dos dedos, uma hora em que o serrote escapou. Sem choro. Coisa de homem.
Estava pronta a obra de arte.
Uma tempestade se armava lá no fundo, com nuvens negras amedrontadoras. O vento já falava mais alto.
Tinha que me apressar com as meias. Dei dois nós para garantir. Saiu uma bola e tanto. A velha iria ficar louca.
A pirâmide de latas sobre a prateleira, na rua. Era o fim dela.
Preparar, apontar, fogo. Arremessei a bola com toda a força.
Latas para todos os lados. Aquele barulho. Contei para ver quantas havia ficado de pé. Era preciso bater o recorde.
Montei e destruí tudo um monte de vezes. Nem sei quantas. Um monte.
Até que a tempestade desabou e tive de recolher tudo às pressas. Louco para o amanhã. Entrei em casa encharcado.
Minha avó berrou até não poder mais. Meu avô passou um sermão. Uma chatice.
Mas escapei da surra. Já estava espirrando e fungando uma gripe.
Ganhei um banho quente e leite com mel, na cama.
A avó havia ficado brava. Mas criança sabe das coisas. Os olhos da velha e suas mãos em minha testa para medir a febre não me enganavam. Era só ternura. Só faltava chorar. Pobre criatura..., dizia ela.
Pobre criatura.

***

- Você não tem nenhuma boa recordação?
- ...
- Algum problema?
- Não, não... É que...

Passei meus olhos por cada recanto daquela mulher sentada ali na minha frente. O sapato de salto. O tornozelo. As pernas. O escuro de dentro de sua saia cinza. A blusa semi-aberta, o decote provocante. O Pescoço. O queixo. A boca. Cada linha de seu rosto. Os óculos. Os olhos verdes. Os cabelos loiros presos.
Um sol de manhã entrava pela janela e dava mais brilho àquela mulher.
Eu tinha vontade de... Será que ela compreenderia?
Fiquei em silêncio.
Alguém seria capaz de escutar meu silêncio? Havia muito barulho dentro daquele silêncio.
Talvez eu aguentasse mais seis meses, até a próxima entrevista. Tinha minhas lembranças. “Meu cérebro é meu pastor e nada me faltará”, repetia como um mantra.
O Barco. O barulho das latas. As nuvens negras. A tempestade. A cama quente. Os olhos da minha avó, já falecida, coitada. Coitada... Que palavra doída.
Eu, coitado. A psicóloga, que mulher!, coitada. Pobres criaturas... Bem comportadas.
Nunca mais teremos tardes como aquela. Se roubássemos as coisas das quais precisamos para nossos divertimentos atuais, não teríamos mais nosso álibi.
Já não há mais leite com mel...
 

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Martes, Mayo 17, 2011 - 18:52

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Maurício Decker

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