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Breve Bosquejo Biográfico
Capítulo I
DEDÉ BUNDÂO
Eduardo Borsato é genial teatrólogo, detentor de inúmeros prêmios nacionais e internacionais, autor que, com enorme facilidade, transita entre os mais variados gêneros - novela de rádio, novela de televisão, novela literária, poesia, conto, crônica, cinema, além de orador de inegabilíssimos dotes. Nasceu no aprazível subúrbio de Inhoaíba (em tupi, pau pequeno que desliza n’ água). Veio à luz na casa 35 da rua Projetada A - Alfredo Brandão - na tranqüila, acolhedora e próspera Zona Oeste do Rio de Janeiro. Tinha 7 irmãos. Com eles repartia os dois únicos cômodos de uma confortável vivenda. Seu pai era campeão de reco-reco. Fez jus ao título em acirradas disputas que chegavam a durar 30 dias e 30 noites na birosca da Nini, localizada na esquina da rua Projetada L - Danimar Diniz da Fonseca - mais conhecida como esquina do Dedé Bundão. Sua mãe era lavadeira. Especialidade: lavar as cuecas dos soldados do Regimento Villagran Cabrita. Acabou gostando do cheiro da cueca de determinado cabo, foi ao quartel conhecê-lo, três dias depois com ele fugiu. Para sustentar a família, o pai abandonou os torneios de reco-reco, passou a vender amendoim torrado sem casca nos trens da Central do Brasil, no ramal de Santa Cruz. Passou também a beber e a cantar, dia e noite sem parar: tornei-me um ébrio na bebida busco esquecer aquela ingrata que eu amava e que me abandonou. Cantou tanto e tanto que o filho, fã de Aguinaldo Timóteo, mas detestador de Vicente Celestino, não agüentando mais a cantoria, afogou-o num barril cheio de tinta preta Epson Stylus C42UX, não descartável. E, sem condições para sustentar os irmãos, transformou-os em churrasquinhos que passou a vender na esquina do Dedé Bundão, a três reais e cinqüenta e cinco centavos cada. Foi quando conheceu um ex-praça da Legião Estrangeira, que o aconselhou a nela se alistar. Passou ele a se debater em ingente e cruel dúvida. Afinal, que fazer? Continuar vendendo churrasquinho em Inhoaíba ou tornar-se intimorato legionário?
Capítulo II
O BOIOLÃO GORDO
Na birosca da Nini, ele e o ex-praça puseram-se a beber conhaque de Alcatrão de São João da Barra. A certa altura, o ex-praça desmunhecou, disse que se chamava Everaldo, mas na Legião era mais conhecido como Clair de Lune. E, de inopino, ameaçou quebrar na quina do balcão a garrafa de Alcatrão e cortar a carótida com o caco de vidro que sobrasse, caso ele não fosse apreciar seu clair de lune naquela noite mesmo. Borsato respondeu que por 15 reais apreciava o clair de lune de qualquer um. O outro achou muito. Borsato deixou por 10 reais, com a garantia de ver o clair de lune dele pelo menos três vezes por semana, enquanto não se decidia, porque estava muito precisado de dinheiro. Quinze dias depois, como Clair de Lune não pagasse, no auge da revolta Borsato o abandonou, desistiu da Legião Estrangeira, criou o programa Boiola Zero e, financiado pela ONG Bento XVI, fundou o restaurante popular O Boiolão Gordo, situado ao lado da birosca da Nini. Os boiolas eram convocados pelos padres da paróquia de Inhoaíba, passavam por um programa de engorda de seis meses, depois eram comidos assados, fritos ou cozidos, no bandejão do Boiolão, a um real por refeição, com direito à sobremesa de doce de coco com abóbora, goiabada com queijo, banana prata, refresco de groselha e um cafezinho. Aí, certo dia, Borsato recebeu a seguinte carta: ”Que coisa mais feia você tá fazendo! Magine, aproveitar a pele dos boiola pra fazer sapato, cinto e bolsa e ainda ter a cara de pau de colocar aquela velha carola da Guiomar vendendo essas coisa no brechó da capelinha do Bairro São Jorge! E isso sem falar nos cabelo, que tu também vende, mas pro tal de Bonamie, e ele pega o cabelo dos pobrezinho e transforma naquelas peruca ho-rrí-ve-is, pra vender na perfumaria fajuta dele, no calçadão! E tem só mais uma coisinha: você não perdoa nem os dente de ouro e as dentadura que tu arranca e manda vender pros protético do Bairro do Corcundinha? Cruz credo! Tu não tem entranha, não? Mas deixa pra lá. Não tenho nada com isso, só tou comentando o que anda na boca do povo. O que eu quero mesmo é te comunicar que tou esperando um filho. E que o filho é teu. Por isso, quero me casar contigo, me amigar, sei lá, qualquer coisa, o que eu não quero é deixar meu filho sem pai, vagando aí por esse mundo afora. Se tu não quiser, fica sabendo que eu vou num programa de televisão, faço o teste do DNA e acabo com tua carreira, com o Boiolão e com o boiola zero. Agora, tu é que sabe. Tá em tuas mão. De quem te ama muito e nunca te esquece,
Everaldo, ou Clair de Lune para os muito íntimos.”
E agora? O que fará Borsato? Arrostarará o destino e enfrentará o exame de DNA ou reconhecerá o espúrio rebento?
Capítulo III
O BILHETE PREMIADO
CONTRA-REGRA - Ploc, ploc, ploc (três batidas). ONDE - Porta do quarto de Borsato, nos fundos do pé sujo da Nini. QUANDO - Duas horas, quarenta minutos e trinta e cinco segundos de segunda-feira.TEMPO- Aquoso. TEMPERATURA - 27 graus Celsius à sombra. CONTRA-REGRA - ploc, ploc, ploc, ploc (quatro batidas) CENÁRIO - Quarto 3x4, luz rúbio turquesa pendente do teto, espelho trincado no guarda-roupa de porta única, banheiro ao lado da entrada do pé sujo, penico para escarradas e mijadinhas debaixo da cama, radinho de pilha sintonizado na Rádio Costa Verde, músicas antigas, bolerão cantado por Anísio Silva: alguém me disse que tu andas novamente com um novo amor toda feliz toda contente conheço bem tuas promessas outras ouvi iguais a essas este teu jeito de enganar conheço bem. CONTRA-REGRA - Toc, toc, toc, toc, toc (cinco batidas). AÇÃO - Borsato, estremunhado, se revira na cama. CONFLITO - De repente, a porta se escancara. Borsato dá um pulo, ergue-se. Clair de Lune entra, apertando a barriga, geme: chegou a hora me socorre a-mor-zi-nho pelo amor de Deus me socorre tou parindo ninguém ligou pra mim por isso vim aqui em hora tão imprópria mas tu é o pai quem é que eu tinha que procurar me ajuda meu amor me ajuda e Borsato então pegou o penico, Clair de Lune se sentou nele, no radinho de pilha entrou a marchinha: tava jogando sinuca uma nega maluca me apareceu tinha um filho no colo e dizia pro povo que o filho era meu toma que o filho é teu não senhor pega o que Deus lhe deu não senhor. SONOPLASTIA - Ruído de descarga de privada. Clair de Lune se ergue, olha para o conteúdo do penico exclama ai meu Deus que coi-sa é essa que horror e cai desmaiado na cama. Borsato pega o penico, olha dentro dele, exclama meu Deus que coisa é essa, que horror, corre até a porta, joga a coisa de dentro do penico fora, fecha a porta. CONTRA-REGRA - Ploc, ploc, ploc (três furiosas batidas). A porta se abre. Nini entra. Olha para a cama, berra porra cinco vezes, Borsato se volta, vê Clair de Lune morto, com meio copo de leite na mão direita e na mão esquerda um pacotinho vazio de chumbinho marca Ratão Zé Gordo. CONTRA-REGRA- Ploc, ploc, ploc, ploc (quatro batidas). Frenesi. Borsato e Nini se entreolham. CONTRA-REGRA- Ploc, ploc, ploc, ploc, ploc (cinco batidas). Trânsite, Borsato vai à porta. Abre-a. Mais trânsite fica ainda diante do que se lhe apresenta. Um tempo. Silêncio pesado. Nini também vai até a porta. Igualmente trânsite, no início, sua fisionomia aos poucos se ilumina, até que ela dá enorme gargalhada. Sem se conter, berra:-Tamos ricos, meu chapa! Acertamos a quina! Taí na nossa frente o bilhete premiado!
Por que Borsato continuava tão trânsite? E por que, ao contrário dele, Nini estava tão eufórica? E que bilhete premiado seria aquele, se eles nem tinham jogado na loteria?
Capítulo IV
O RENDEVU
– Que porra de bilhete premiado é esse?
– Já disse.Taí na nossa frente.
– Ela?!
– E por que não?
– Ora, porque... porque...
– Com ela, a gente vai fundar a 1ª R.A.
– O que é isso? Região Administrativa?! Tás maluca?
– Porra! Quem é que tá falando em Região Administrativa?
– Ué, você!
– Tou falando é em Rendevu das Aberrações.
– Cumé que é?!
– O primeiro de Inhoaíba,da Zona Oeste, quiçá do Brasil!
– Do Brasil?
– Todo tipo de aberração a R$1,99. A gente vai ficar rico!
– Vai?
– Duvida? Então ouve só: ”Encha a pança no Boiolão e esvazie o saco no Aberração”. Tem publicidade melhor? Hun? Tem?
– Sei lá...
– E a gente vai começar com ela.
– Ela?!
– Ela mesmo.
– Ah, não pode.
– Ora essa... por que não?
– É que olhando melhor, agora, a gente vê que ela é até engraçadinha.
– Caolha, corcunda, desdentada e perneta?!
– Bom...
– Escuta aqui. Me responde. Não tem homem que só gosta de mulherão?
– Tem.
– Pois também tem homem que só gosta de assombração. Duvida?
– Não... mas é que...
– Qualquer aleijada serve, manjou? Qualquer.
– Mas... mas...
– Só que a gente vai começar com a mão de obra local. Que diabo, a gente tem que prestigiar o lugar onde mora. É ou não é?
– É... mas...
– Depois a gente aumenta o negócio. Em Santa Cruz e Campo Grande tem aleijada pra cacete.
– Tem,é?
– Não é preciso nem procurar.
– Não?
– Aliás, tu é que vai ficar encarregado disso.
– Do quê?
– Se liga, porra! De arranjar a mão de obra pro Aberrações.
– Vou?
– Mas vê lá, hein? Capricha. Nada de aberração fajuta. Olho de vidro, perna mecânica, dentadura postiça não serve.
– Não?
– Tem que ser tudo ali, na maior moral, na maior responsa: buraco do olho, cotoco da perna, boca chupada.
– Tem?
– Então?Topas?
Encaram-se. Pausa longa. O que Borsato resolverá? O Aberrações a R$1,99 será inaugurado ou não?
Capítulo V
OPERETA DO ABERRAÇÕES
Luz feérica, alucinante sobre Alzira Caolha, Adriana Cegueta, Olívia Surdinha e o Coro.
CANTO GERAL
Nós somos
do Aberrações
a alma, a vida,
as alucinações.
ALZIRA CAOLHA
Ai,
como é bom
ser puta aqui.
Dou de manhã,
de tarde, de noite.
Não tenho tempo
nem pra fazer xixi.
CORO
Xixi-i-i-i,
xixi-i-i-i.
LUCINHA COTÓ
Ai,
o Chico Bigode,
o Zé Vai quem Pode,
o Jorguinho Peidorreiro
não querem me largar.
Só querem saber
do trabalhinho de dedo
que eu faço neles,
com muito jeitinho,
naquele lugarzinho,
o dia inteirinho.
CORO
O dia inteirinho-ô-ô-ô
O dia inteirinho-ô-ô-ô
ADRIANA CEGUETA
Ai,
como é bom
o tempo todo
na cama, de pé
ou sentada eu dar.
Tateando,
tateando eu vou
no escurinho ou no claro,
o pinto deles encontrar.
CORO
O pinto encontra-ar-ar,
O pinto encontra-ar-ar.
OLIVIA SURDINHA
Ai,
de som não tenho a vírgula,
não tenho o meio
nem o começo.
Mas tenho o fim.
Todos eles acabam gozando,
no meu ouvido gritando:
”Surdinha, surdinha,
tu gosta ou não gosta
de mim?”
CORO
De mi-i-i-im,
de mi-i-im.
De repente, a luz pisca-pisca. Nini, ofegante, entra e diz, a voz tonitroante:
– A imagem! A imagem tá chorando! O rendevu e o mundo tão se acabando!
Afinal, a que imagem está ela se referindo? E por que o rendevu e o mundo se acabarão?
Capítulo VI
FLASH BACK
Três da manhã de uma madrugada chuvosa, modorrenta. Leve neblina. Borsato conversa com a Santa, na esquina do Dedé Bundão. Ninguém mais na rua. A Santa é alta, grande, tem físico de fuzileiro naval. Uma fumacinha rodeia-lhe a cabeça, à semelhança de uma auréola. Envolve-os uma musiquinha angelical.
– Bom, já que você está enchendo meu saco há mais de quinze dias, eu vou chorar.
– Legal. Era tudo o que eu queria.
– Legal uma ova. Então você me pede pra chorar dentro de um rendevu, no meio de putos e putas, e fica tudo no vamos ver?
– Desculpa, mas eu... eu não tou entendendo...
– Tás entendendo, sim. E muito bem. Deixa de ser sacana.
– Eu?!
– Você mesmo.
– Ora, mas...
– Só pra lembrar: quando é que eu devo chorar?
– Às segundas, quartas e sextas, sempre às seis, na hora do ângelus.
– Isso eu já tou careca de saber.
– Ora, e daí?
– Daí que não estou dizendo que vou cumprir a minha parte?
– Está.
– E a sua?
– A minha o quê?
– A sua parte, porra!
– Mas que parte?
– No trato, merda!
– Mas que trato?
– Que nós fizemos.
– Espera... espera... o trato era a senhora chorar pra santificar o Aberrações.
– Só?
– O choro santo ia fazer o Aberrações virar um lugar de alívio pra todos os males do mundo, uma espécie de igreja.
– Só?
– Eu acho que sim.
– E eu acho que você tá querendo me passar a perna.
– Não, não. Pelo amor de Deus!
– Não fala em Deus. Ele não tem nada a ver.
– É força de expressão.
– O trato foi entre mim e você. Deixa Deus fora dessa história.
– Já deixei. Mas é que esse trato...
– Qué que tem?
– É que eu... eu...
– Tou sacando. Você se esqueceu.
– Não... não é isso...
– O que é, então?
– É que eu... eu não acreditei...
– No quê?
– É que a senhora é uma santa, né?
– E daí? Você então acha que eu ia chorar sem levar nenhuma vantagem?
– Bom, é que eu não sei até onde um negão bem dotado pode ser uma vantagem.
– É problema meu. Você não dirige um rendevu?
– Dirijo.
– Então me arranja um negão bem dotado ou nada feito. Eu não choro.
A Santa chorou. Mas o que será que ela fez com o bem dotado negão?
Capítulo VII
O FILHO DA PUTA
"Mãe, tou lhe mandando essa carta porque preciso de teu conselho, nunca tive aperreação tão grande, a sinhora é que vai ter que dizer o qué que eu vou fazer, a sinhora num sabe ainda mais deixei aquela vidinha de socó, de ficar sem pouso certo, andando sempre dum lugar pra outro, sem eira nem beira, de anã carcunda de circo, um dia a gente parou num lugar eu fui comer numa birosca que cobrava 1 real, com direito de sobremesa de doce de coco com abóbra, goiabada com queijo, banana prata, refresco de groselha e cafezinho, a sinhora não acha baratinho?, só não tomei o refresco de groselha que sempre me deu caganeira, aí foi quando um branco azedo chamado Borsato se achegou, bateu na minha carcunda e falou assim: " anã, anãzinha, com essa carcunda e essa tamaninho tu vai enricar, nunca mais vai precisar trabalhar" e aí ele me pegou no colo e me levou prum lugar de muié da vida e eu comecei logo a dar, só naquela noite contei trinta e cinco hôme, ah, mãe, nunca fiquei tão prosa de ser anãzinha e carcundinha, fiquei mais feliz que mocó em valão cheio de merda, mas foi aí, depois de treis meis que eu descobri a disgrama, tou prenha, mãe, tou de barriga, naquele embalo de agradar tantos hôme, naquela sastifação, eu só queria saber de trepar e foi no que deu, e agora eu preciso saber o qué que eu faço, procuro ou não procuro uma fazedora de anjo, sei que a sinhora, tirante eu, teve quatorze bacurau e nunca tirou nenhum e aí..."
MUDINHA – Eu acho que tu devia tirar, sim, Waldicreide. Afinal de contas, onde já se viu uma puta que pariu?
SANTA – Não faça isso. É pecado.
COTÓ – Qué que tu acha, Cegueta?
CEGUETA – Pode parir. Mas tem que ter um pai.
MUDINHA – Trinta freguês por dia por 3 meses dá uma porrada de cara, mais de dois mil.
COTÓ – Então cumé que a gente vai descobrir o pai?
SANTA – É uma dificuldade adicional bem ponderável!
MUDINHA – Porra nenhuma! É o mais fácil!
TODAS – Fácil?!
MUDINHA – E a gente ainda pode faturar uma boa grana.
TODAS – De que jeito?
MUDINHA – A gente faz uma rifa, vende os cupom por 50 pratas cada, demora os restantes seis meses da gravidez pra sortear e fatura aí por baixo uns novecentos real.
SANTA – É um sacrilégio! Encontrar um pai por sorteio?!
MUDINHA – Merda! Essa santa é um porre!
SANTA – E se o parto for prematuro? Se a criança nascer de 7 meses?
COTÓ – A gente bota ela numa caixa de sapato marca Samelo, tamanho infantil, e joga ela no valão do Sangue, atrás do Hospital Pedro II, em Santa Cruz.
"... e aí, mãe, tou precisando com muita urgência de teus conselho, mãe, qué que eu faço, mãe, tou perdida, porque agora tudo quanto é hôme já sabe e todos eles só querem saber de trepar com a anãzinha carcundinha de barriga, qualquer dia desses sou capaz até de aparecer no Fantástico, já pensou se eu tenho um par de gêmeo, qué que eu faço, mãe? Da filha que lhe pede a benção, Waldicreide.”
O que aconselhará a mãe a tão desesperada filha? Afinal, o filho de uma puta tem ou não tem o direito de nascer?
Capítulo VIII
NO CÉU
Sestrosa senta-se a santa na sexta semana seguindo o Senhor, sem segurança de seu solilóquio.
– E aí? Qué que a gente faz?
O Senhor segura seu saco, sacode-o, suspira:
– Tirante os tratados teosóficos, tirados de teorias terminais, teremos tremores terríveis e terminativos. Tememos por tê-los.
– Legal! Mas, Senhor, e daí?
– Daí deverei determinar determinantes diáfanas, distantes, díspares, deveras discrepantes. Decupo-as, doravante.
– Senhor, a anãzinha...
– Fica, ficará, fatalmente. Finalidade finalizante. Felizardo e finalizador. Ficante e ficador. Finalmente. Final feliz. Falta a fatalidade, felicicitamente. Finaliza-se o faço ou não faço. Felizmente.
– Senhor, a anãzinha vai ou não vai ter o filho?
– Terá que tê-lo? Tencionará tê-lo? Tergiversará em tê-lo? Torcerá por tê-lo? Tê-lo-á? Tola tertúlia? Tensão testicular? Torço por testemunhar.
– Senhor, nada disso eu sei. Eu só sei...
– Saberás, oh, sim, saberás. Saberás e saberão. Saberão os senhores. Saberão os servos. Saberá a senhora. Saberá o senhor. Saberão os sacripantas. Saberá o sacerdote. Saberá a sacerdotisa. Saberá o são. Saberá o que agoniza. Saberá quem quer. Saberá quem não quer. Saberá quem fizer xixi. Saberá quem fizer cocô. Saberá a velha que tece a renda. Saberá a velha que faz tricô.
– Porra! Mas esse povo todo vai saber o quê?
Saberá que eu sou o pai,
saberá que eu sou a mãe.
Saberá que eu sou o sonho,
saberá que eu sou o medonho.
Saberá que eu sou a lei,
saberá que tudo poderei.
Saberá que eu sou o homem,
saberá que eu sou a mulher.
Saberá que eu sou sempre
Tudo o que eu quiser.
– Senhor, peraí... pelo amor de Deus... não foi isso o que eu...
– Suma, santa. Saravá.
Terá a santa aprendido todos os transcendentais ensinamentos das palavras do Senhor? E, tendo-os apreendido, como deles se utilizará?
Capítulo IX
O PARTO
A bolsa d`água de Waldicreide se rompeu às 23 horas e cinqüenta minutos de uma quinta-feira. Levada pelas meninas do Aberrações para o Hospital Pedro II, em Santa Cruz, foi ela imediatamente encaminhada ao moderno e bem equipado centro cirúrgico.Exatos cinco minutos depois, lá adentrou, para realizar o parto, o Dr. Albertinho Limonta. A chefe da equipe de enfermagem era Mamãe Dolores. Alto, elegante, olhos verde alourados, bigodinho à Errol Flyn, aos 12 anos Albertinho Limonta fugira de casa com um circo que se apresentava em Catanduva, sua cidade natal. Apaixonara-se pela tataravó da malabarista, uma meretriz bissexual no Bois de Boulogne, e nos portos de Adis Abeba e Marselha. Chamava-se, segundo registro no 55º Cartório de Pessoas Físicas da Província de Funchal, João de Valenciaga, filho ilegítimo de Moisés de Valenciaga e Gertrudes Del Sol Valenciaga. Iniciado nos processos mitológicos e alquímicos dos islamitas iroqueses, através dos ensinamentos chegados ao Ocidente pelas mãos do sulamita Al Zravair Bel Azagura e do sultão Dahur Damine Al Alakimeshemine, João de Valenciaga, em sua décima sexta peregrinação pelo caminho de Santiago de Compostela, encontrou, debaixo de antigo e envelhecido ingazeiro, a pedra filosofal. Costurou-a na parte interna esquerda de seu embornal e passou a absorver seus mais recônditos ensinamentos, um dos quais foi-lhe de grande valia quando, por cem dias, permaneceu prisioneiro das tribos nômades, no deserto de Gobi. Era o seguinte: atirei o pau no gato-tô-tô mas o gatô-tô não morreu reu-reu dona Chica cá-cá dimirou sê-sê do berrô do berrô que o gato deu miauuuu. Mudou de sexo pela primeira vez no Gólgota, ao ouvir o último suspiro de um soldado greco-persa crucificado. Escolheu a cor azul turquesa como sua preferida e escreveu em vários papelotes os vários nomes que gostaria de adotar. Nos Cárpatos, pediu a um transeunte que sorteasse um deles e passou a se chamar Suleide. Cinqüenta anos depois, trocou Suleide por Vanede e com esse nome foi a única mulher a participar da décima quinta cruzada. Em sua permanência na Rússia, sob o reinado de Ivan, o Terrível, viveu tórrido caso de amor com Alexei Alexandovich, líder de um grupo anarquista cujo objetivo era eliminar o czar e o Estado, entregando todo o poder aos camponeses, depois de também eliminar a nobreza, a burguesia, os anarquistas e os próprios camponeses. Tomou conhecimento do amor de Albertinho Limonta através de uma carta que ele, ainda estudante de medicina na faculdade de Valença, lhe escreveu, colocou dentro de uma garrafa de cerveja marca Itaipava, e lançou ao mar, na Baía de Sepetiba. Trinta anos depois, quando se banhava no mar Cáspio, a garrafa foi-lhe ter às mãos. Comovida pela perenidade de tamanha paixão, disfarçada de anãzinha e utilizando o brasileiríssimo nome de Waldicreide, incorporou-se à troupe do Moulin-Moulin, circo libanês que embarcava para o Brasil.
Waldicreide morreu durante o parto, assim como seu filho. Tão cruel desenlace deixou desoladas as meninas do Aberrações. Diante da sala de cirurgia, debulhavam-se em lágrimas.
– Qué que a gente vai fazer agora? Qué que a gente vai fazer? - repetiam, desorientadas.
Foi quando Borsato chegou. Aproximou-se, em passos largos e firmes, abriu a porta da sala, nela entrou, dizendo, a voz possante:
– Dêxa comigo, pessoal! Dêxa comigo!
O que Borsato faria? De onde tiraria ele, em tão funesto momento, tanta disposição, tanta energia, tanta determinação?
Capítulo X
A QUEM INTERESSAR POSSA
Pedido de demissão
Pelo presente, venho, em caráter irrevogável e irretratável, solicitar meu afastamento do cargo que até hoje ocupei e que, tenho certeza, soube honrar com o que de melhor pude dar a todos os que de meus esforços um dia se viram dependentes, tais como os pobres e necessitados, os centrados e os descentrados, os arvorados e os desarvorados, até que, de abrupto, sem que me fosse dado prévio conhecimento, vi minha substituição ser promovida, no ressuscitamento da anãzinha Waldicreide e de seu filho, por um sujeito do qual me recuso a dizer o nome e por causa de quem deixo hoje de ser santa e passo a ser apenas uma puta. Quanto ao tal sujeitinho, quero que ele fique sabendo que a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada só vingança vingança aos santos clamar você há de rolar como as pedras que rolam na estrada sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar.
Primeira versão sobre a morte do pai
O DIABO
Numa encruzilhada ele me procurou. Chovia quando o pai ele matou. Não tinha luz nem estrela, o céu se apagou. Depois de procurado, dei a ele o escrito e o ditado. Era galinha e açafrão, era herói e vilão. No quartinho aconchegado, o pai resfolegava, dormindo, deitado. Aí eu entrei e vi todo aquele corpo, a barriga caída, o saco e o pau chupado, o ralo cabelo na testa, o olho fechado, e a vida a sair dele num resfolego resfolegado. E aí minha raiva subiu e foi subindo e de mim eu também fui saindo, até que nessa saideira ele pensou por que me matar, e eu pensei por que ele não matar, e o cheiro da roupa suja do quarto me tomou, aquela roupa suja que minha mãe sempre lavou e daí eu dei a primeira facada e ele nem ligou e facada eu fui dando até que na trigésima terceira ele gritou e o grito o grito dele num sufoco numa sufocação foi o único que ficou.
Segunda versão sobre a morte do pai
O PADRE
Ele sempre cantou aqui na igreja. Tem uma voz maviosa, um repertório do cacete. O pai dele morreu de um treco chamado empyema, mais conhecido como pleuriz purulento. Fizeram nele uma punção evacuadora e ele sofreu como o diabo. O médico era muito novinho, inexperiente, e ele foi atendido no Rocha Faria. Sempre foi fodido, nunca pôde ter nenhum plano de saúde. Tinha acabado de completar 78 anos. Quando jovem, era um sujeito até sacudido, boa pinta. Trabalhava no Matadouro de Santa Cruz. Era catador de bosta. Levava a bosta pra casa, deixava secar, fazia esterco, que depois vendia pra quem tinha jardim. Quando morreu, tava um caco, coitado. Magro como peru de feira, desdentado, careca, meio cego dum olho, tropicando, andando muito mal, enfim, esculhambou geral. Deixou viúva e 3 filhos, um deles é esse aí do qual vocês estão falando. Mas vamos às canções. Sou vidrado nelas.
Sereiá, Sereiá
Eu nunca vi tanta areia no mar
Sereiá, Sereiá (CORO)
Eu nunca vi tanta areia no mar
Sereiá, Sereiá (CORO)
Eu nunca vi tanta areia no mar
Sereiá, Sereiá (CORO)
Eu nunca vi tanta areia no mar
Mas quando a maré baixar,
Vou ver Juliana ê
Vou ver Juliana á
Sereiá, Sereiá (CORO)
Eu nunca vi tanta areia no mar
Eu pisei na folha seca
Vi fazer chuê, chuá
chuê, chuê, chuê, chuá
Eu vi fazer chuê, chuá (CORO)
chuê, chuê, chuê, chuá
Eu vi fazer chuê, chuá (CORO)
chuê, chuê, chuê, chuá
Eu vi fazer chuê, chuá (CORO)
chuê, chuê, chuê, chuá,
Eu vi fazer chuê, chuá (CORO)
ALVÍSSARAS
MÉDICO
A Waldicreide e o Dalberto passam muito bem.
PUTAS
Dalberto?
MÉDICO
O anãozinho afro descendente e cotó filho dela.
PUTAS
Cotó?
MÉDICO
Do braço esquerdo.
PUTAS
E o direito?
MÉDICO
Bom. Mas é caolho.
PUTAS
Caolho?
MÉDICO
Do olho direito.
PUTAS
E o esquerdo?
MÉDICO
Bom. Mas é surdo.
PUTAS
Surdo?
MÉDICO
E mudo.
PUTAS
Mudo?
MÉDICO
Parcialmente.
PUTAS
Ah...
MÉDICO
Conseqüência da surdez. E paraplégico.
PUTAS
Paraplégico?
MÉDICO
Dos membros inferiores, claro. Mas tenho fundadas esperanças de que, com o tratamento que prescrevi, em quarenta ou cinqüenta anos ele será um indivíduo inteiramente normal.
Conseguirá mesmo Dalberto atingir a normalidade? Ou Borsato terá que fazer mais um milagre?
Capítulo XI
CURRICULUM VITAE
– Moravam aí do lado. Ela e o cabo do exército. Parece que se davam bem...
– No início.
– Ela era bonitinha, moreninha de olho azul. Se chamava Bertolina. Ele é que tinha um nome...
– Edewalgildo Diniz de Mont’ Pelier.
– Pois é. Logo que chegaram, tudo bem. Depois...
– Ela me corneou.
– Você que brochou.
– Entrei pra Igreja Pentecostal dos 978 Pastores dos 385 Montes do Sinai.
– E se aveadou.
– Fiz caridade.
– E me deixou na saudade.
– Acabaram se separando. Ela passava os dias se lamentando:
Ai, ai.
Perereca vai pra frente,
Perereca vai pra trás
Perereca já não sabe,
Já não sabe o que faz.
Ai, perereca!
Ai, ai.
A CHAMUSCADA
– Foi a melhor mina que eu tive. Amiga, amante, companheira. Pra vida inteira.
– Mãe de 14 filhos, com 14 caras diferentes?
– Por isso mesmo.
– Por isso mesmo o quê?
– Quem ia querer ficar com ela? De quem ela ia ser a costela?
– Não era muito magricela?
– Diz isso quem não conhece mulher. Quem não conhece nada.
– Não chamavam ela de Chamuscada?
– Isso foi no dia que eu morri. Teve um puta choque. Caiu de cara na panela de feijão. Queimou até o olho. O esquerdo. O outro não.
A MÃE DO DONO OU PELO TELEFONE
O chefe da folia
Pelo telefone
Manda me avisar
Pra um lugar no Aberrações
Logo, logo
Eu arrumar.
Sou a mãe do dono,
Ninguém pode me negar.
O chefe da polícia
Pelo telefone
Manda me avisar
Pra eu botar logo
Minha perereca para trabalhar,
Pois 14 bocas eu tenho,
Tenho que sustentar.
Por isso no Aberrações
Um lugar eu vou arrumar.
Sou a mãe do dono,
Ninguém pode me negar.
O currículo da mãe será aprovado por Borsato? Ela será ou não será mais uma puta do Aberrações?
Capítulo XII
INTERMEZZO ROMÂNTICO AMOROSO
– Oh! Você não sabe a que ponto pode chegar uma tortura! Não sabe...
– (surpresa) - Que tortura?
– (sem ouvir) -... o aguilhão da dúvida...
– (leve pausa) - Bom, às vezes também duvido.
– (surpresa) - Também?!
– Sim, sim... e por que não?
– Mas sente os mesmos aguilhões?
– Bem...
–... a mesma insuperável desconfiança...o mesmo insuperável desconforto?
– Bom...
–... o menoscabo... o mais público e notório desassossego?
– Bem... bom...
– Ai, levar dentro de si, ter dentro de si, preso no mais fundo de suas entranhas...
– (ânsia) – O quê? O quê?
– A mais indesejável das indefinições.
– Qual?
– Aquela que condena à mais ignara, ígnea e trânsfuga situação!
– Condena?!
– Sim, sim. Ou há em seu espírito, em seu interior alguma dúvida?
– Não, mas é que...
– (corta, firme) - Oh! Ingratidão das ingratidões!
– Ingratidão!?
– Sim, sim. O que mais poderia ser?
– Não sei... não sei... tudo isso me leva à mais completa atonia...
– Se houve crime, houve também cumplicidade! Se houve pecado, houve também co-participação! Se houve inominável violência, houve também inenarrável premeditação!
– Houve?!
– Mas é mister deixar bem claro que estas coisas não aconteceram sozinhas. Há mútuo compartilhamento, há mútua responsabilidade! (P/T)- Houve uma condenação sem que tivesse havido qualquer julgamento. E tal ignomínia não se pode perdoar! Jamais ! É bom que todo o mundo saiba! Não se pode perdoar, repito! Jamais! Jamais!
– (aflição) - Pelo amor de Deus, que crime tão horrendo foi cometido? Que culpa é essa capaz de corroer tão violentamente suas tão delicadas, tão insopitáveis, tão incorruptíveis, tão retas entranhas?
Haverá a revelação de tão fundo segredo? Quem serão os responsáveis pelo crime tão horrendamente cometido? E até onde Borsato estará nele envolvido? Ou não estará?
Capítulo XIII
SEGUNDA CARTA DE WALDICREIDE PARA A MÃE
“Mãe, tou de novo num sufoco que por isso é que tou escrevendo pra sinhora, é que num guento mais ver meu bacurau com o rabo cheio de jabá com jirimum, farinha, mocotó e carne seca e as outra criança se acabando tudo esmirradinho feito vira-bosta em tempo de estiage, a barriga roncando, os olhinho esbugalhado parecendo sagüi na feira, mãe qué que eu...
MUDINHA – Porra, Waldicreide! Cumé que tu tem a coragem de encher o saco da tua velha com uma bestera dessas?
SANTA – Comover-se com o sofrimento das criancinhas é um grande sentimento cristão. Não é nenhuma besteira.
COTÓ – A gente pode dar jeito?
CEGUETA – Tá na cara que não.
COTÓ – Então é mesmo uma grande bestera.
MUDINHA – Ah! Aí é eu tá!
CAOLHA – Aí é que tá o quê?
MUDINHA – É que a gente pode dar um jeito, sim.
TODAS – Pode?!
MUDINHA – Tá na cara que sim.
TODAS – Mas quem? Quem é que pode dar jeito?
MUDINHA – Nós.
TODAS – Nós?! Nós?!
MUDINHA – (encarando-as) – Escuta, vocês vão ficar aí com essa cara de besta repetindo tudo o que eu digo?
SANTA – Mas dar um jeito como?
MUDINHA – Fácil. É só usar o RCQB.
TODAS – (entreolhando-se) – RCQB?!
MUDINHA – É.
CAOLHA – Mas que porra é essa de RCQB?
COTÓ – É algum partido político?
CAOLHA – Se é, tou fora.
SURDINHA – Eu também. Não gosto de político.
CEGUETA – É tudo vigarista.
SANTA – Deixa ela responder, gente.
CAOLHA – Então eu repito a pergunta: que porra é essa de RCQB?
MUDINHA – É o Rendevu das Criancinhas do Nosso Querido Brasil...
SANTA – Essa não!
MUDINHA... que a gente vai inaugurar...
CEGUETA – Pirou.
SURDINHA – Ficou biruta.
CAOLHA – Escuta, por que é que você...
COTÓ – (interrompendo) – Porra, pessoal... deixa ela explicar...
MUDINHA – Seguinte: em vez de mandar as garotinha pra escola, as mãe manda elas todas pra cá.
CAOLHA – Pro rendevu?
MUDINHA – Pra onde é que podia ser?
SURDINHA – Essa eu não manjei.
SANTA – E pode-se saber o que elas virão fazer aqui?
MUDINHA – Ora, ter um treino com a gente.
COTÓ – Treino pra quê?
MUDIHA – Pra puta.
SANTA – Essa não!
CEGUETA – (rindo) – Taí, gostei.
CAOLHA – Peraí... peraí...deixa ver se eu entendi bem...
MUDINHA – Qué que tem pra entender? Cada uma de nós tem preferência por uma sacanagem, não tem?
SURDINHA – Eu, por exemplo, só gosto de...
SANTA – (corta) – Por favor... vamos evitar os detalhes, sim?
MUDINHA – As garota vão ter um curso completo. Vão sair daqui tudo doutora em putaria. Vão fazer barba, cabelo e bigode nos otário.
COTÓ – Então, não vai ter mais garotinha fazendo a vida em sinal de trânsito?
CEGUETA – Tá na cara que não.
SURDINHA – Então não vai ter mais nenhum pai filho da puta transando com as filha à força?
MUDINHA – Tá na cara que não.
SURDINHA – A filha só vai dar se quiser?
MUDINHA – Tá na cara que sim.
CAOLHA – Então não vai ter mais nenhuma mãe filha da puta alugando elas pros gringos?
MUDINHA – Tá na cara que não.
SURDINHA – A filha só vai ser alugada se quiser?
MUDINHA – Tá na cara que sim.
SANTA – (atônita) – Mas então... então...
TODAS – (explodem, cantando)
Então quem disse
que o Brasil
não tem jeito,
meu irmão?
Toda mulher
Vai virar puta,
Vai salvar nossa nação.
A putaria, a putaria
É a nossa vocação.
Mulher nenhuma
Vai ficar mais no caritó.
Toda mulher vai dar,
Da menininha até a vó.
Viva o Brasil,
meu irmão,
O maior puteiro,
Desde o mundo a criação.
“... qué que eu faço, mãe, entro pra esse tal de RC não sei o que e vou dar aula de safadeza ou fico no meu cantinho enchendo o rabo do meu filhinho inquanto os filho dos outro fica tudo impanturrado de ar, tudo barrigudinho com a pança cheia de vento?
Da filha que lhe pede sua benção
Waldicreide.”
O que responderá a mãe de Waldicreide? Concordará com a idéia de transformar o Brasil num enorme puteiro? E Borsato? Como reagirá à criação do anexo RCQB ao Aberrações?
Capítulo XIV
PAPO CABEÇA
Local indefinido. Dia ensolarado, três da tarde. Satanás e Borsato conversam. Satanás sorri, dá um tapinha nas costas de Borsato:
– Então, já que está tudo acertado...
– Peraí... peraí...
– Que foi?
– Bom...
– Alguma dúvida?
– Não... quer dizer...
– Meu Deus, que saco! Vou ter que explicar tudo de novo!?
– Bom...
– Você não matou seu pai?
– Bem...
– Infringiu o primeiro mandamento, o principal.
– O principal, é?
Satanás se emociona:
– Isso o torna praticamente... praticamente...
– Praticamente?
–... um heresiarca!
– É mesmo?
– Sabia?
– Bom...
– E os seus irmãos?
– Qué que tem?
– Transformou-os em churrasquinho. Ampliou em muito o parricídio. Você é um moderno Caim.
– Sou?
Satanás, num crescendo:
– Engravidou um boiola.
– Engravidei?
– Boiolou.
– Boiolei?
– Depois de você, qualquer um boiolará.
– Boiolará?
– Abriu um puteiro politicamente correto, favoreceu as minorias discriminadas; ressuscitou os mortos, fez uma santa virar puta, desmoralizou o Criador; abriu outro puteiro só pra menininha, institucionalizou a pedofilia...
E, quase num berro:
– Você é um verdadeiro líder, um verdadeiro condutor das massas, um verdadeiro visionário!
– Sou?
– Avançou, e muito, no tempo. Fez o movimento revolucionário avançar muito mais ainda.
– Fiz?
– Conseguiu, em Inhoaíba, um mundo planificado, uma nova ordem mundial. Você... você... quer saber? Quer mesmo
saber?
– Quero, né?
E Satanás, no auge do entusiasmo:
– Você matou Deus!
– Matei?
– E vai substituir o Cristo anunciado no Apocalipse!
– Vou?
– O mundo não precisará mais de um filho de Deus para salvá-lo!
– Não?
– Você vai fazer isso!
– Vou?
– Eu, o senhor das trevas, garanto.
E depois, expectante:
– Então?
E, com satânico cicio:
– Agora tá tudo certo, né?
Borsato será ou não será o novo Cristo? Criará ou não criará de Inhoaíba, para o resto do planeta, o tão sonhado governo mundial unificado?
Capítulo XV
DOR DE COTOVELO
Estava no rendevu, visitando o quarto das meninas.
Ai, que gostoso o cheiro de puta,
rico, riquíssimo manjar,
servido em dóceis terrinas.
Um farfalhar, um marulhar, um arrulhar,
maresias, cheiro de praia ou de ilhas
foi o que de repente a mim também chegou,
por trás, à traiçoeira,
de um réptil a picada,
a primeira e a derradeira.
Voltei-me e dei de cara com ela.
Não tinha a forma nem do criador nem da criatura,
era de deus e do diabo atroz iluminura.
Mas eu a sentia como presente figura.
Dela subia intenso odor
de enxofre, de mirra, de incenso.
Ali fiquei, encarando-a,
sem saber se era herói, se era bandido,
imaginando que ela me olhava
mais para o pior, ou seja,
como um reles fodido.
E me vieram questões.
A principal: como a ela me referir
eu transido, apequenado,
num relance revendo toda a minha vida,
nela encontrando só pecado em cima de pecado.
Foi quando ela sorriu.
E pelo tom de seu sorrir
vi que estava perdoado por ela, por deus, pelo diabo.
De todas as faltas que cometi e que cometerei
nada paguei, nada pago, nada pagarei.
Abestalhado me quedei.
E logo, logo me vi por ela embeiçado.
Desse embeiçamento, eu lhe propus casamento.
Ela enrubesceu, deu um tremelique
e, levando consigo o cheiro de mirra, de enxofre, de incenso
no meio de forte vento se escafedeu.
Desse dia em diante, à mesma hora,
esteja eu perto ou distante,
vou ao quarto das meninas.
Das diletas putinhas sinto o cheirinho e o odor,
vejo os móveis, a cama, a cortina esvoaçante,
só não vejo o meu amor.
Às vezes penso que me apaixonei por lépido elefante,
por um tatu falante, por um peixe voador.
Seja lá como for, o qué que eu faço
pra tirar do peito essa dor?
Borsato conseguirá vencer tão áspero momento de sua vida amorosa? Superará o trauma de ter sido desprezado por uma piranha esvoaçante? Ou se dedicará para sempre à MPB e à poesia?
Capítulo XVI
TEATRO A MEIO VAPOR
Quarto de hospital em Havana. Em cena, Borsato e Fidel Castro. Borsato, à beira do leito de Fidel, chora convulsivamente. Ouve-se, em surdina, a seguinte musiquinha:
Ó putinha esvoaçante,
de você me esqueci.
Vim até Cuba
visitar o Comandante.
FIDEL – (aborrecido) – Carajo! Por qué tan triste lloro, llorón?
BORSATO – É a emoção, comandante...
FIDEL – Caramba! Tuvieron la misma emotion Lula, Chavez, Ego Morales e tutti quanti. Basta! No me morí, todavia!
BORSATO – (controlando as lágrimas)– Desculpe, meu Comandante... desculpe...
FIDEL – Qué quieres, al fin y al cabo?
BORSATO – Su orientación.
FIDEL – Sobre qué? Las flores? El cielo? El culo de tu madre? Los cojones de tu padre?
BORSATO – Sobre política, mi comandante.
FIDEL – (envaidecido, disfarça um sorrisinho, pigarreia, lança um olhar perdido pela janela. Pausa longa. De repente, ele se vê na Praça Vermelha, no alto de um palanque, como Lênin, tendo imensa multidão a seus pés. Então, como Lênin, para a multidão Fidel discursa) - У меня сейчас нет ни большого материала, чтобы писать, ни времени.Встреча между Кубой и Соединенными Штатами по бейсболу была назначена на 8 часов утра. В это время я иногда сладко сплю. Погода помешала проведению. Pausa. Borsato tenta controlar o choro, embora as lágrimas lhe caiam, abundantes, pela face, escorrendo pelo chão, encharcando-lhe os pés, começando a inundar o quarto. O Comandante continua com o olhar perdido na vastidão da paisagem entrevista pela janela. Novo vulto, em meio ao nevoeiro do porto de Havana, se aproxima. Quem será? Fidel força os olhos. Pausa expectante. Finalmente, o vulto se revela em todo o seu esplendor: é Hitler, que, da sacada do Reichstag, para o mundo discursa. Então, como Hitler, Fidel ao mundo também se dirige: Ich habe zu dem Thema etwas bei meinen letzten Reflexionen Bush, die Gesundheit und die Bildung“, die ich den Kindern widmete, erwähnt und ein Beispiel zitiert. Bei diesen, die an den ersten Absolventenjahrgang der Universität für Informatikwissenschaften (UCI) gerichtet sind, werde ich dieses dornige Thema etwas gründlicher behandeln.
Nova pausa. O Comandante ofega. Borsato lhe oferece um copo d’água. Fidel afasta o copo com cansado gesto, a atenção presa à terceira imagem que da janela avista. As lágrimas de Borsato a essa altura são tão abundantes que já cobrem seus tornozelos e os pés da cama. De súbito, o olhar de Fidel se ilumina. Mao Tsé Tung aparece. E, logo depois, ao lado dele, Che Guevara. Em seguida, Pol Pot. Fidel abre a boca mas nada consegue dizer. Tonto de emoção, estende os braços para os vultos, e, à semelhança de Borsato, começa a chorar. Engrossados, os dois choros fazem as lágrimas aumentar. Vão aumentando, aumentando, subindo pelo quarto, fazendo a cama, os móveis, Fidel, Borsato e as figuras boiar. E assim, boiando, Hitler e Lênin vêm às outras se juntar. Riem, amoráveis, para Fidel, Hitler delicadamente a cofiar o bigodinho, Mao a soltar arrotos disfarçadinhos, Che a posar de moto para uma foto e...
FIDEL – Adiós, pampa mia... adiós, hermanos queridos...
Fidel estende os braços desesperadamente para tocá-los, mesmo boiando quase cai da cama, Borsato ampara-o, Fidel dá alguns tremeliques, um suspiro, solta um grande pum, que sobe em forma de grande bolha através das lágrimas, estica-se, morre. Patético, Borsato fica segurando o cadáver. Os vultos desaparecem. As lágrimas vão descendo, tudo volta a ficar seco. Borsato dá uma última olhadela no finado. O rosto de Fidel está sereno. Borsato fecha-lhe piedosamente os olhos. Não chega a sentir, em ambos os lados da testa, pequenas protuberâncias se formando, assim como também ainda não sente o leve mas firme odor de enxofre que maciamente começa a impregnar o ambiente. A musiquinha sobe ao máximo:
Ó putinha esvoaçante.
De você me esqueci.
Vim até Cuba
enterrar o Comandante.
PANO RAPIDÍSSIMO
De volta ao Brasil, não desejando a morbidez de ficar conhecido como “o homem que viu nosso amado Fidel morrer”, Borsato adotou o codinome Bocetovich, entrou para a militância do PT e doou o rendimento de todos os seus negócios para o partido.
O PT aceitará a doação de Borsato? Até onde o Bocetovich lhe garantirá mesmo completo anonimato? Ou carregará ele para sempre a doce e/ou amarga cruz de ter sido o sujeito que teve a “glória de cerrar para todo o sempre os olhos do sempiterno Comandante?”.
Capítulo XVII
O DUELO
Praça do Preto Velho, centro de Inhoaíba. Cinco da tarde. Céu de faroeste. Suspense. Num extremo da praça, Bocetovich; no outro, Borsato. Ao longo da praça, à volta deles, as putas do Aberrações; os fregueses da Birosca da Nini, do Boiolão Gordo, as criancinhas do RCQV, e o público em geral.
– Ai, que nervoso! Chega a estar coçando a minha perereca! - exclama Waldicreide.
E Adriana Cegueta, franzindo os olhos:
– Cumé que eles tão?
– Tão o quê?
– Vestidos, ora.
– Borsato tá de bota.
– Que mais?
– E suspensório.
– Que mais?
– Só.
– Só?!
– Ficou lindão!
– E o Bocetovich?
– Tá de fraldão.
– Fraldão?!
– Ginecológico.
– Só?
– Só.
– Cumé que ele ficou?
– Bundudo pra cacete.
Bocetovich e Borsato avançam, lentos, os passos cuidados, a expressão fechada, façanhuda. O suspense aumenta a um ponto insuportável.
A pergunta que não quer calar: por quê?
Param.Estão agora a poucos passos um do outro. Travam então o seguinte diálogo:
Bocetovich
Cuando calienta el sol aqui em la playa,
siento tu cuerpo vibrar cerca de mi,
es tu palpitar, es tu cara, es tu pelo
son tus besos, me estemezco, oh oh oh!
Cuando calienta el sol!
Borsato
Se você fosse sincera,
ô,ô,ô,ô, Aurora,
veja só que bom que era,
ô,ô,ô,ô, Aurora.
Um lindo apartamento
com porteiro e elevador
e ar refrigerado para os dias de calor,
madame antes do nome
você teria agora,
ô.ô,ô,ô, Aurora!
Bocetovich
Acércate más, y más y más,
pero mucho más,
y bésame así, así, así como besas tú
pero besas pronto, que te estou queriendo,
no lo está tú viendo, que me estoy
muriendo, sin saberlo tú.
Borsato
Olha a cabeleira do Zezé,
Será que ele é, será que ele é?
Será que ele é bossa nova,
será que ele é Maomé?
Parece que é transviado,
mas isso eu não sei se ele é.
Corta o cabelo dele,
corta o cabelo dele.
Calam-se.Breve intervalo. De repente, ouvem-se dois tiros.
– Ai meu Deus! Quem matou? Quem morreu? - grita Adriana Cegueta, apertando o braço de Waldicreide.
O que responderá Waldicreide? E por que a pergunta que não quer calar não foi ainda respondida?
Capítulo XVIII
INTERMEZZO ROMÂNTICO AMOROSO
– (agitadíssimo) – Conspurcaram-nos!
– Sim, querido... sim...
– (revolta) – A que degradações nos arrastaram!
– (sofredora) – Não lembre, amor... não lembre.
– Como esquecer? Como?
– É mister.
– Eu sei, eu sei...
– Então por que torturar-se dessa maneira?
– Não consigo conter-me. Não consigo.
– Tente, amor... tente...
– Acaso pensa que não estou tentando?
– Está?
– Desde ontem. Mais precisamente, desde as vinte e três horas e cinco minutos de ontem.
– (pensativa) – Exatamente três minutos antes de tudo acontecer...
– Jamais olvidarei.
– No entanto, é preciso.
– Não!
– É imprescindível, querido, para nosso porvir, nosso futuro.
– (reagindo) – Sabe o que mais me domina nesse momento? Sabe?
– Não, querido... não...
– A revolta.
– Oh! Não, não!
– A mais profunda das revoltas...
– Não!
–... o desejo de vingar-me...
–Não, querido... não...
– ... vingar-me de todos eles... sem a menor piedade.
– Amor, por Deus!
–... fazer a eles o que fizeram a nós... fazê-los pagar... infâmia contra infâmia... baixeza contra baixeza....
– Dente por dente, olho por olho?
– E por que não?
– É que a pena de Talião já tá tão fora de moda, amor.
– Que importa? Ahn? Eu a reavivarei!
– Arrostará tal perigo?
– Arrostarei.
– E eu, querido? E eu?
– Arrostá-lo-á comigo?
– (grande indecisão)–Bem... bom...
Encaram-se. Profundo silêncio abate-se sobre os dois. O que fará ele, afinal? E ela? Arrostá-lo-á com ele ou não?
Capítulo XIX
PROPOSTA INDECENTE
LOCAL - Monte Hira, perto de Meca.
PERSONAGENS - Borsato e Bocetovich.
AÇÃO - Sob um sol de 55 graus, os dois saltitam, alegres, de caverna em caverna. A areia incandescente aquece-lhes docemente os pés. No céu, nobres abutres circunvoluteiam, quais travessas, negríssimas borboletas. Bocetovich ergue os olhos, vê algo estranho.
– Que diabo é aquilo?
– É o profeta - responde Borsato.
– Profeta?
– O Maomé.
– Mas...
– Montado na mula Buraq, conduzida pelo Arcanjo Gabriel.
– Mas...
Buraq, com sua cabeça de anjo e rabo de pavão, pousa ao lado deles. Maomé salta. Baixotinho, barrigudinho, veste um camisolão verde avermelhado. Na cabeça, uma toalha magenta alaranjada. Barba rala, chumacinhos pixains ao longo das bochechas, sob o oblongo nariz. Olhos cor de leite de camela grávida. Fixa-os em Borsato.
– Então? - a voz é de Pato Donald. – Resolveu?
Silêncio. Bocetovich, roxo de ansiedade, não desgruda os olhos deles. Mais adiante, o Arcanjo Gabriel alimenta Buraq com cocozinhos de urubu, escorpiões, pulgas do deserto.
– Resolveu? - insiste Maomé.
Bocetovich não se contém:
– Resolveu o quê?
Maomé, olímpico, ignora-o.
– Não – responde Borsato, igualmente olímpico.
– Subo a oferta - diz Maomé.
Bocetovich:
– Que oferta?
Maomé:
– Em vez de 11 mil, 12 mil virgens.
Bocetovich:
– Porra!
Borsato deixa os olhos correr pelo deserto. Ao longe,
um oásis, palmeiras circundando uma piscininha, camelos, beduínos, fresca aragem, impávidas sereias.
Maomé:
– Além de se tornar imortal, você também será um mártir.
Bocetovich:
– Porra!
– Bom... - resmunga Borsato.
Silêncio. Maomé disfarça acres peidinhos, em série de três ou quatro, que inundam o camisolão, quase o sufocam.
– Bom... - repete Borsato.
Maomé:
– Doze mil e quinhentas virgens, imortal e mártir. - e, a voz mais esganiçada ainda:
– Proposta final.
Bocetovich, sem se conter:
– Puta que pariu! Que proposta? Que proposta?
Maomé:
– Borsato vai ser nosso homem bomba em Inhoaíba.
Silêncio. Os três se entreolham, expectantes.
Borsato aceitará a proposta de Maomé? Será o primeiro homem bomba da Zona Oeste? Será o primeiro homem bomba do Rio de Janeiro? Será, quiçá, o primeiro homem bomba do Brasil?
Capítulo XX
BOCETOVICH – A MISSÃO
Noite. Caminho em meio à lama, à chuva que, em bátegas, tolda-me a visão, os cabelos, a barba, a roupa encharcadas. Tropeço nas poças d'água, nelas me afundo. A rua é longa, mas não me sei mais numa rua, numa estrada, num beco, sob mil olhares, mil insuspeitos olhares adivinhados, invisíveis. A chuva aperta, aos tropicões entro num beco, por ele sigo, ao final fúnebres entradas para outros becos, neles me perco, minotauro desnorteado, ulisses sem bússola, a fome das estepes geladas, esquecidas pelos deuses, os cossacos a acossar meu batalhão, os mortos, a carnificina, os infantes estropiados, intestinos expostos, vadios cães a lamber-lhes as entranhas, tropeço em crânios, decepadas cabeças, decepados braços e pernas, ah! horror, os charcos da Sibéria, da Ucrânia, de Inhoaíba, esquálidos vultos a me cercar, talvez a me apontar o caminho, talvez a tentar perder-me mais e mais, a missão de mim a se distanciar, inalcançável. Seres murmuram-me aos ouvidos, indistinta língua, indistintos sons, gemidos indistintos, gargalhadas, risos. À minha frente, nuas mulheres em noite de sabbat gemem cantigas, repetidas e repetidas por aladas figuras, as asas pontiagudas fechando-me a passagem, aos gritos, evocando outras e outras figuras, agora pequenas, as corcovas a se arrastar pela lama, pela frente dos barracos. Deles vêm gemidos de crianças, jovens, adultos, fúnebres gritos a prenunciar crescente pavor.
Os mortos revivem, do chão se alçam, cruzam por mim, dois, três, acotovelam-se em multidão, esfregam-se às paredes, quebram-se nelas, nas enlameadas ruas para além do centro de Inhoaíba, para onde o subúrbio se alastra, à beira da linha do trem, na qual encontrava-me com Levy, o biscateiro; Cabriúna, o preto marrom délavé; Geneviève, mulher de todos os homens, homem de todas as mulheres; Tetéu, o galego, retinem em minha memória, os passos nos abandonados barracões de laranja, imensos espaços, nós a nos esconder atrás dos desvãos dos caixilhos de inexistentes portas, inexistentes e arreganhadas janelas abertas para um céu irreal, infinito, no qual nos perdíamos, tudo agora sem o ruído de nossos passos, passos dados sem arremedo, sem ida, sem volta.
Silvos sobem das pedras, a missão se me avulta. Entro por um desvão, pórtico formado por dois barracos, átrio no qual figuras se esgueiram. Uma delas à minha frente se detém. Não lhe vejo claramente o rosto, adivinho-lhe, no entanto, talvez o esgar de indisfarçável escárnio, encovadas as faces, habitante das trevas que era, cego astrólogo das trevas suburbanas. Com cava voz, diz-me que deveria procurar o trino no uno, quando no céu se fizesse a perfeita conjunção de saturno com júpiter, assim se formando o perfeito triângulo de bikamir, que eu perceberia na voz do oitavo rei, filho do oitavo imperador, neto do oitavo vizir, bisneto da oitava maestrina do oitavo decanato dos oito descendentes de plutão. Nesse momento, uma nave desceria diante da estátua do preto velho, dela sairia a princesa filha do nono imperador e de suas mãos seria emitido um raio que cobriria a estátua da mais divina sabedoria. Enquanto ela na praça permanecesse, ao povo seria servido, em pratos de cristal, sementes de lótus torradas, e, em tigelinhas de porcelana, sopa de pêra verde com brotos de bambu, tâmaras recheadas com salmão cozido, ovos cozidos com molho cor de topázio e refresco de suco de melão com orvalho. Ao amanhecer, deveriam olhar para o pátio da estação da supervia, e, assim que o sol despontasse no horizonte, comer seus raios, para revitalizar por completo seus corpos. Só então a princesa reentraria na nave e voltaria para sua morada junto às estrelas.
– Acredita nisso? - resmunga uma segunda figura. E, sem esperar por minha resposta:
– O trino não está no uno, saturno jamais terá conjunção com júpiter, o triângulo de bikamir não existe, o oitavo rei não fala, não tem pai, nem avô, a maestrina já morreu e plutão não gerou qualquer decanato. Não há nave e nenhuma princesa dela descerá sobre a imagem do preto velho. Ao povo nada será servido e tudo o que ele comer estará envenenado. E o sol jamais brilhará sobre Inhoaíba e seu povo miserável.
A primeira figura desapareceu, em seguida a segunda, e logo me vi impelido para fora do pórtico por violento, voraz vento. Tive então a mais absoluta convicção de que minha missão seria cumprida.
Que voraz e violento vento impeliu Bocetovich? Por que tem ele agora tanta certeza do cumprimento de sua missão? E que missão será essa?
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