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Crônica

A bordo do batel, deixaram a nau capitânia, que quedou-se bem protegida, aferrada à entrada de uma bela baía, onde demoravam várias ilhas.
Iam Berger e mais dez marujos à cata de vitualhas, visto estarem delas muito mal providos.
Intentaram aportar a uma das ilhas, mas como topassem mar grosso e não vislumbrassem porto seguro o bastante para aferrar, assentaram rumar direto à costa.
Tão pronto desembarcaram, dissentiram. Tendo à frente um português de Alcobaça, de nome Pedro Rodrigues, quiseram alguns logo à mata fronteiriça entrar.
Embalde intentou Berger convencê-los ser mais assisado manterem-se unidos, sem o perigo de dividir o troço dos homens, para o caso de um embate com os selvagens que porventura topassem.
Pedro Rodrigues rebateu-o, afirmando ter tido notas, ainda em Portugal, antes de se fazerem à vela, de aquelas terras serem antigas possessões do reino do Prestes João. Tinha, portanto, como seguro, guardarem tesouros aos quais queriam
logo ter às mãos.
Isso posto, sete dos homens se apartaram, à frente deles o referido Pedro Rodrigues, e pelas matas se meteram.
Berger com os seus puseram-se a caminho praia afora. Bordejavam as águas e no raso apanhavam camarões e nas pedras os mexilhões que ali se tinham em abundância.
Distanciaram-se bem umas seis milhas do ponto de desembarque e deram com a boca de um rio, que, saído da floresta, àquela altura ganhava o mar.
Muitos eram os peixes que ali pululavam e já se preparavam para pegá-los quando forte alarido se fez às suas costas.
Surgiu-lhes Pedro Rodrigues e dois dos seus, a correr. Atrás deles, chusma grossa de canibais, a soltar terríveis gritos. Vinham os portugueses despossuídos de suas armas, descompostos de vestimentas e flechados.
Berger e os seus não tiveram tempo de levar a mão às espadas. Foram cercados, batidos e jogados ao chão pelos canibais. Tinham estes bordunas e com elas fizeram saltar os miolos de Pedro Rodrigues e dos seus, e deixaram mortos ou mui rotos os de Berger. Escapou ele porque vendo de tal forma horrível morrerem-lhe os companheiros, ajoelhou-se, as lágrimas a descerem-lhe, e pôs-se a bradar com quanta força tinha que o poupassem.
Riram-se os brutos daquele implorar. Um deles passou-lhe uma corda ao pescoço, despiu-o das vestimentas e, tendo-o por inteiro nu, apartou-o do grupo.
Os demais puseram-se a cortar os braços e as pernas dos portugueses, alguns ainda vivos. Gritavam que iam comê-los e aquilo faziam para vingar os amigos e parentes que os portugueses tinham matado. E por terem paz com seus inimigos, que também os comiam quando os pegavam.
E Berger viu tudo aquilo e horrorizou-se.
Surgiram da mata outros selvagens trazendo partes dos corpos dos que lá tinham topado.
Terminado o que faziam, dirigiram-se ao rio, e, nas canoas adredemente escondidas em suas margens, embarcaram. Eram dez as canoas, com vinte selvagens cada uma.
Berger, jogado ao fundo de uma delas, ia amarrado agora também pelos pés e pelas mãos com cordas apertadas a ponto de muito lhe doerem.
Vadearam a costa por cerca de duas horas e puseram-se temerosos das nuvens negras que se acumulavam às suas costas.
Berger, de cara voltada para o fundo da canoa, só fazia sentir as dores, ouvir a voz de seus algozes e ao bom Deus pedir que lhe poupasse o horror de ser por eles devorado.
Dando-se pressa por causa da iminência de uma tormenta, mais rápido remaram e nesse entretanto, vencida uma hora, acostaram numa enseada. Desembarcaram e caminharam outra hora mata a dentro, até dar com as cabanas nas quais habitavam. Eram em número de sete e fizeram grande alarido tão logo a vista nelas pousaram.
Mulheres e crianças os cercaram em igual alarido. Ajudaram os homens, trazendo cestos onde pousaram a carne dos mortos que logo iam cozinhar.
Berger foi-lhes entregue e por elas puxado para o meio das cabanas. Estapeavam-no e zombavam dele: ”Ai vem a nossa comida pulando”, já que a corda aos pés travava-lhe os passos. E nem bem entrados na aldeia, fizeram-no gritar para os velhos e os que lá tinham ficado: “Aqui estou eu, sua comida.”
E a cantar e a dançar, a fazê-lo cantar e com elas dançar estiveram por alongado tempo. De igual modo as zombarias, ora uma batendo-lhe à cabeça, dizendo que seus miolos comeria; ora outra beliscando-lhe os braços, a dizer ser essa a parte dele que devoraria.
O sol se pôs, era já noitinha quando o amarraram a uma estaca, no centro da aldeia. O corpo todo lhe doía. As amarras ao pescoço e às pernas tinham se posto em sangue.
Um velho ordenou às mulheres que se afastassem, dele se aproximou, aos gritos. Trazia os peitos pintados em cor vermelha, em cor negra os braços e o restante do corpo. Tinha na cara três grandes buracos, um no beiço inferior, outro em cada face. Em cada um desses buracos trazia uma pedra verde. À mão, portava uma grande maça. A dar voltas e a dançar ao redor da estaca, aumentou os gritos, como se desassisado fosse.
Teve Berger por certa sua morte. Pôs-se a rezar, consolando-se, entanto, ao lembrar que nosso Senhor Salvador em pior se findara. E entregou-se-lhe.
Findado o berreiro, o velho, que era o pajé, desatou-lhe as amarras, tocou-lhe a cabeça com a maça, saudou-o como rendido inimigo, fez trazer-lhe comida, que consistiu em bolinhos de cassave. E pousou sobre ele o mais fixo olhar, murmurando que muita vez nos olhos dos que iam morrer gravada estava parte do destino de todos eles.
O índio que o apresara se aproximou, acompanhado por três de suas barregãs. Vinha contente, disse que seu apresamento tinha sido querido pelos deuses, tanto que com isso tinha sonhado por noites seguidas. E recomendou-lhe muito comer, pois teria carne mais saborosa para lhes ofertar e dest’arte poderiam melhor agradecer aos deuses.
“Não sou português. Venho de um lugar chamado Holanda. Por que hão de me matar?” perguntou Berger, ao que o bruto respondeu também perguntando que fazia então na companhia dos portugueses. E logo acrescentando que se era amigo de seus inimigos, também a eles devia inimizade e por isso tinha que morrer.
E a uma das barregãs destinou-o. Dali por diante, até o dia do sacrifício, ele seria dela responsabilidade. Além de impedir-lhe a fuga, devia em tudo servi-lo, engordá-lo, bem como seus instintos satisfazer, se assim ele o desejasse.
Com uma tesoura havida dos franceses, ela lhe cortou as pestanas e a barba. Abatido pelas palavras de seu dono, recusou-se a comer, pensando que, se de qualquer maneira seria devorado, que o fosse oferecendo-lhes a pior carne, a de mais afeado trato.
Perguntou a ela quando se daria o sacrifício, obtendo que dependia dos sonhos de seu amo, mas nunca antes de eles promoverem batalha contra uma tribo inimiga, batalha essa a acontecer tão logo se desse a subida dos peixes rumo às cabeceiras do rio.
Armou-lhe uma rede na cabana grande. A ponta da corda que o prendia amarrou-a a uma das traves. Em outra rede ao lado acomodou-se.
No dia seguinte, embora fossem-lhe ofertados beiju e carne de caça, continuou a recusar-se a comer. À noitinha, repetiu a manha, o que muito molestou a seu dono e aos outros. Puseram-se desassossegados, pois temiam que ele, se à fome se deixasse morrer, provocasse a ira dos deuses, o que os deixaria sem proteção para a guerra projetada.
Berger disse que seu deus era muito mais poderoso que o deles. Perderiam a guerra de qualquer maneira se ele morresse, por fome ou se por eles.
Quiseram então saber como haviam de ganhá-la. Ao que Berger respondeu desistir de o devorar ser o bastante.
Conferenciaram por bom tempo, fim do qual disseram que ele deveria provar o poder de seu deus. Estavam em época de plantar mandioca e a chuva já se fazia há três dias. Pedisse a ele que o céu se acalmasse pelo seguintes dias, para que pudessem dar por findo o plantio.
Berger passou a maior parte da noite elevando-se ao Senhor, cismado, pedindo-lhe que o milagre operasse. Tinha por certo que Ele, tão diligente de outras vezes, não lhe faltaria em tão bruta aflição.
Tão contrito nisso ficou que sequer reparou na índia, que, sua rede abandonada, na dele se aninhou.
No seguinte dia e nos outros, o sol apareceu, em momento algum deixou de brilhar. O plantio pôde a bom termo ser levado.
Muito se admiraram os índios. E disseram que, caso ao lado deles tão poderoso deus se pusesse, e a guerra os fizesse ganhar, Berger seria trocado pelas mercadorias do primeiro navio francês que desse à costa.
E ficaram contentes de vê-lo novamente comer.
E ele também, de tão contente, mal reparou que a índia, sua rede agora para sempre abandonada, na dele se aninhava, tão logo a lua no céu despontava.
Não tardou muito pensou mais uma vez topar com a ajuda do Santíssimo. A aldeia se alvoroçou: tinham feito novo prisioneiro, naquela madrugada apreendido por uma surtida deles.
Berger ficou pé com seu amo para ir ter com ele. Era um moço da tripulação de uma vela portuguesa de três mastros, na costa a ocupar-se com o embarque de pau-brasil. Chamava-se Antonio Silva. Tinha por certa sua morte. Berger o consolou, dizendo que não o matariam antes de a guerra fazer. E implorou-lhe, como cristão, garantir aos canibais não ser ele português. Prometeu-lhe o moço e disso Berger teve notícia quando seu amo o confirmou e quis saber do que conversaram. Igual era o deus dele e do moço, disse Berger, e igual sorte teriam na guerra se também a ele poupassem. Ao que o outro respondeu que tudo dependia dos sucessos que encontrassem na batalha. E Berger compreendeu, como nunca, estar seu destino inexoravelmente atado ao que lhe reservava o bem amado Salvador.
Já estava ele, entanto, sentindo tropeços em ficar ao lado do Senhor. De dia, a índia se mostrava marota; de noite, com ele à rede, tornava-se travessa.
Como bom cristão, tinha bem decorado os dias em que não se podia entregar aos pecados da carne: às quintas, em memória à prisão de Nosso Senhor Jesus Cristo; às sextas, em louvor de sua morte; aos sábados, em honra à Santíssima Virgem Maria; aos domingos, em homenagem à ressurreição, e às segundas, em memória e em comemoração aos mortos. Restavam-lhe as terças e quartas
Repugnava-lhe, contudo, dar-se à carne com uma pagã, mais ainda canibal.
Consultados e ouvidos o pajé, os outros índios, as visões de um, os sonhos dos outros, mostraram-se todos favoráveis ao sucesso na guerra.
Partiram, tendo por chefe seu dono, agora chamado por eles morubixaba.
Na aldeia, deixado com um punhado de defensores, Berger se havia com as tentações da índia e com sua própria luxúria; Sempre acalentara intentos de fugir, tão logo a vigilância sobre ele se afrouxasse. Pois tinha-a agora afrouxada, liberto da corda ao pescoço, a andar livremente pela aldeia, mas o simples olhar pejado de ofertamento da índia imobilizava-o. Mais ainda o estarem com as partes à mostra, como o bom Deus os tinha trazido ao mundo. Ainda, e por derradeiro, a quentura do corpo dela na rede, seu roçar, após mais de dez meses de ele ter-se posto ao mar, sem acalmar as tentações da carne.
E a elas não foi mais capaz de resistir.
Numa quinta-feira, pecou contra a prisão de Nosso Senhor Jesus Cristo; na sexta, deixou de louvar sua morte e, no sábado, até a mais alta madrugada, desonrou a Santíssima Virgem Maria. Domingo, não homenageou a ressurreição e segunda desonrou os mortos. Os dias permitidos aproveitou-os como se jamais pudesse aplacar aquela gula.
Passadas duas semanas, tornaram os índios. Tinham perdido a guerra.
Nela seu dono tivera mortos dois irmãos e bem mais de cem guerreiros, além dos capturados para serem devorados. Disse-lhe que seu deus os tinha abandonado e os deuses deles, enciumados, também os tinham deixado. Era, portanto, urgente obter-lhes de novo as boas graças. Por isso, e para pagar pela mentira de lhes ter oferecido um deus tão falto de poderes, seu sacrifício ocorreria de imediato.
Construíram uma cabana menor sobre o local onde ele seria morto e nela o confinaram.
Seu dono convidou os selvagens das outras aldeias, dizendo-lhes, assim que chegavam: “Venham ajudar a devorar nosso inimigo.”
As mulheres fizeram a bebida. Uma corda longa de mais de uma braça foi trançada e com ela lhe amarraram o pescoço.
O cacete com o qual seria morto foi por uma índia adornado. Enquanto ela a isso se dedicava, outras a seu redor cantavam e dançavam.
Berger, puxado pela corda, deu com os índios voltas à frente das cabanas. O cacete, enfim ajaezado, foi pendurado numa cabana vazia, empós o que as mulheres pintaram a cara de Berger, tudo sempre acompanhado pelo cantar das outras.
Em seguida, foi levado até os índios, que o convidaram a beber e muito com ele conversaram. De volta à cabaninha, nela permaneceu, bem vigiado, até o outro dia.
Em nenhum momento podia deixar de pensar que bem merecia aquele findamento. Pecara contra a fé, contra a religião, embora tivesse ainda a certeza de, no derradeiro instante, ser perdoado, tão bruto era o sofrimento que ora estava passando, equivalendo ele a uma remissão.
Antes mesmo do clarear do dia, vieram buscá-lo. Amarraram-no de novo a corda, agora passada também em torno de sua cintura. Seguravam-na alguns pelas duas pontas, enquanto outros lhe davam pedrinhas que ele devia atirar nas mulheres, que a seu redor corriam, figurando devorá-lo.
Findado isso, a cabaninha foi derrubada e ele imobilizado onde estava, que era o lugar no qual seria abatido. Dois passos além, fizeram o fogo. Nele iam cozê-lo.
Um dos índios exibiu-lhe, para que ele bem a visse, a borduna, instrumento de sua morte.
Aquele a quem cabia executá-lo afastou-se, de cinza pintou o próprio corpo. Assim que tornou, foi-lhe entregue a borduna. Berger estremeceu, mas a hora não tinha ainda chegado. Seu dono tomou da borduna, enfiou-a entre as pernas do algoz. Pronto. Estava dado o sinal. O carrasco disse-lhe: “Estou aqui e quero te matar, porque os teus também mataram muitos dos meus e os devoraram”. E deu-lhe um golpe na nuca que fez voarem-lhe os miolos.
As mulheres colheram-lhe o corpo, arrastaram-no até o fogo, puseram-se a esfolá-lo. Tiveram o cuidado de enfiar-lhe um pauzinho por detrás, para que nada por ali escapasse. Quando, terminada a esfolação, o tiveram bem clarinho, um índio se aproximou, cortou-lhe as pernas acima dos joelhos, e também lhe cortou os braços.
As mulheres, de posse destes pedaços, e para comemorar o sucesso, correram com eles em torno das cabanas, em grande alarido. Em seguida, abriram o corpo pelas costas e dali tudo retiraram.
Ferveram os intestinos, fizeram um mingau, que logo serviram às crianças e que também tomaram. Da mesma forma às crianças destinaram os miolos e a língua. O restante foi por todos partilhado.
E assim, cada qual de um bocado servido, voltaram para suas cabanas.
O carrasco, tomado ainda pela honra de ter sido para aquela tarefa escolhido, passou o resto do dia descansando em sua rede. Vez por outra, munido de pequeno arco, atirava flechas num alvo de cera. A isto se dedicava para que os músculos de seus braços não se tornassem vacilantes, pelo susto de terem matado.
A índia, nove meses depois, ao mundo trouxe o filho de Berger. Aos três anos, era uma criança alegre, rosada, gordinha.
Mas, por não ser considerado um deles, por ter cabelos e olhos claros, o que lhes podia fazer perder o favor dos deuses, foi também morto e devorado.

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quinta-feira, junho 24, 2010 - 02:18

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