Civilização

“Nesse dia, os Deuses falaram-me, e, na densa selva que eu não conseguira desbravar, mostraram-me o meu trilho. Agora, eu mostrar-vos-ei o vosso.”

Alex Krypton, “O Pai”,
Discurso proferido na Metrópole 1,
2 de Março, Ano 1 (2109 D.C.)

 

Conversão.
Ondas electromagnéticas convertidas em sinais bioelectroquímicos. Sinais bioelectroquímicos convertidos em ondas electromagnéticas. Viajando pela atmosfera num vaivém caótico de informação.

Um cérebro em actividade, estimulando áreas específicas e desencadeando milhões de sinapses inter-neuronais. Cargas e impulsos eléctricos; pólos e membranas; dendrites e axónios; vesículas transportadoras e mediadores químicos. Consciência.

Um nano-chip inserido no cérebro. Metal, plástico e krypton envoltos em tecido nervoso.

MOTHER395e. Uma Mãe. Uma de muitas: obras-primas da inteligência artificial; Krypto-esferas auto-replicantes de dois metros de diâmetro, espalhadas pelo Globo, cada uma controlando centenas de milhar de mentes, manipulando pensamentos, sentimentos, ideias e memórias. Subjugando.
MOTHER395e dá ordens. Satélites em órbita conduzem e direccionam a informação, transportada a trezentos mil quilómetros por segundo. O chip recebe e executa as ordens. E, numa fracção de segundo, a raiva torna-se compaixão, o egoísmo torna-se empatia, o ódio torna-se amor. Pensamentos potencialmente prejudiciais à Civilização são rapidamente obliterados. Juízos políticos ou reflexões críticas são afogados num mar de estranhas frequências electromagnéticas.
Controlo personalizado para cada criatura humana.

Um corpo. Um ser humano que vê, ouve, sente. Um ser humano que pensa.
Oito mil milhões de corpos. Seres humanos corrigidos, dirigidos. Cegos.
Um feto flutuando num ventre artificial. Uma cirurgia robotizada. Um nano-chip implantado. Mais uma vida que em breve se juntará à manada humana. Que em breve será usada, iludida, privada dos seus direitos mais básicos, sem, contudo, ter a mínima consciência disso. Mais uma máquina da Civilização.

٭ ٭ ٭

O Pai. O visionário, o génio criador de um mundo justo, onde os homens não conhecem a maldade nem a pobreza. Nem conhecem o sonho ou a ambição. Onde todos são iguais: bestas animais, programáveis por controlo remoto, que se julgam humanas. Onde todos servem o progresso da Civilização.
O Pai. Um homem ambicioso, poderoso, louco. Eterno, ou quase. Porque, agora, também ele é uma máquina, uma pequena esfera encerrada num cubo de krypto-vidro. Um fantasma, uma consciência separada do seu invólucro biológico, uma personalidade humana para sempre selada num caixão krypto-metálico ultra-resistente. Jazendo ali, no topo da Montanha dos Deuses, o lugar onde tudo começou, e onde ele permanecerá nos próximos milhões de anos.
Um pouco mais abaixo, jaz a Metrópole 1. A cidade que erguera com as mãos e o suor que já não possuía, a primeira peça da Civilização: o sonho de uma vida tornado realidade.

٭ ٭ ٭

Há muito que o Sol se escondeu no horizonte, por detrás de edifícios desprovidos de beleza e de cor, e começam a surgir as primeiras estrelas no negro manto celestial. A Noite. Misteriosa, sublime. Escura.
Tal como a noite, também o Pai é escuridão. Escuridão de uma vida que outrora teve sentido, mas que agora nada é senão uma mentira.


Lá fora, a Humanidade dorme. Uma Humanidade isenta de crime e de guerra, de necessidade e de frustração, de pensamento crítico e de opinião. Uma Humanidade que nunca derrama lágrimas. Oito mil milhões de pessoas felizes, realizadas, julgando comandar as suas vidas.
A sociedade perfeita.

 

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Tuesday, July 12, 2011 - 17:51
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arturdelara

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Civilização

Uma sociedade onde a liberdade foi obliterada, onde os humanos são controlados, não pela força ou pela engenharia genética, mas por uma tecnologia alienígena e altamente avançada. O Pai é o profeta, o intermediário entre os Deuses (os alienígenas) e os humanos (receptores da tecnologia). A Montanha dos Deuses é o ponto inicial de contacto, onde os alienígenas forneceram a Alex a primeira esfera auto-replicante, as Mães que, tal como as fiéis esposas de um poligâmico, auxiliarão Alex no seu objectivo de controlar toda a humanidade. Krypton é o nome do principal material constituinte da tecnologia alienígena, atribuído em homenagem a Alex Krypton, o fundador da Civilização.

Uma short-short-story, prévia a uma novela mais alargada que ainda se encontra nas fases iniciais, narrada na primeira pessoa pelo próprio Pai.

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