Poema à boca fechada (José Saramago)

Não direi:
Que o silêncio me sufoca - e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é doutra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vasa de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quanto me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago, escritor e poeta português.

Submited by

Thursday, July 14, 2011 - 00:40

Poesia :

Your rating: None (1 vote)

AjAraujo

AjAraujo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 7 years 1 week ago
Joined: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Login to post comments

other contents of AjAraujo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Dedicated Auto de Natal 2 4.518 12/16/2009 - 03:43 Portuguese
Poesia/Meditation Natal: A paz do Menino Deus! 2 6.146 12/13/2009 - 12:32 Portuguese
Poesia/Aphorism Uma crônica de Natal 3 4.810 11/26/2009 - 04:00 Portuguese
Poesia/Dedicated Natal: uma prece 1 3.632 11/24/2009 - 12:28 Portuguese
Poesia/Dedicated Arcas de Natal 3 6.449 11/20/2009 - 04:02 Portuguese
Poesia/Meditation Queria apenas falar de um Natal... 3 7.344 11/15/2009 - 21:54 Portuguese