Vinho de missa - Crônica (Fernando Sabino)
Era domingo e o navio prosseguia viagem. Os passageiros iam sendo convocados para a missa de bordo.
-- Vamos à missa? convidou Ovalle.
O passageiro a seu lado no convés recusou-se com inesperada veemência:
-- Missa, eu? Deus me livre de missa.
-- Não entendo -- tornou Ovalle, intrigado:
-- O senhor pede justamente a Deus que o livre da missa?
-- No meu tempo de menino eu ia à missa. Mas deixei de ir por causa de um episódio no colégio interno, há mais de trinta anos. Colégio de padre -- isso explica tudo, o senhor não acha?
Ele achou que não explicava nada e pediu ao homem que contasse.
-- Pois olha, vou lhe contar: imagine o senhor que havia no colégio um barbeiro, para fazer a barba dos padres e o cabelo dos alunos. Vai um dia o barbeiro me seduz com a idéia de furtar o vinho de missa, que era guardado numa adega. Me ensinou um jeito de entrar na adega -- e um dia eu fiz uma incursão ao tonel de vinho. Mas fui infeliz: deixei a torneira pingando, descobriram a travessura e no dia seguinte o padre-diretor reunia todos os alunos do colégio, intimando o culpado a se denunciar. Ia haver comunhão geral e quem comungasse com tão horrenda culpa mereceria danação eterna. Está visto que não me denunciei: busquei um confessor, tendo o cuidado de escolher um padre que gozava entre nós da fama de ser mais camarada: "Padre, como é que eu saio desta? Eu pequei, fui eu que bebi o vinho. Mas se deixar de comungar, o padre-diretor descobre tudo, vou ser castigado." Ele então me tranqüilizou, invocando o segredo confessional, me absolveu e pude receber a comunhão. Pois muito bem: no mesmo dia todo mundo sabia que tinha sido eu e eu era suspenso do colégio. O homem respirou fundo e acrescentou, irritado:
-- Como é que o senhor quer que eu ainda tenha fé nessa espécie de gente?
Ovalle ouvia calado, os olhos perdidos na amplidão do mar. Sem se voltar para o outro, comentou:
-- O senhor, certamente, achou que o confessor saiu dali e foi direitinho contar ao diretor.
-- Isso mesmo. Foi o que aconteceu.
-- O vinho era bom?
-- Como?
-- Pergunto se o senhor achou o vinho bom.
O homem sorriu, intrigado:
-- Creio que sim. Tanto tempo, não me lembro mais... Mas devia ser: vinho de missa!
Então Ovalle se voltou para o homem, ergueu o punho com veemência:
-- E o senhor, depois de beber o seu bom vinho de missa, me passa trinta anos acreditando nessa asneira? O homem o olhava, boquiaberto:
-- Asneira? Que asneira?
-- Será possível que ainda não percebeu? Foi o barbeiro, idiota!
-- O barbeiro? -- balbuciou o outro:
-- É verdade... O barbeiro! Como é que na época não me ocorreu...
-- Vamos para a missa -- ordenou Ovalle, tomando-o pelo braço.
Fernando Sabino, escritor mineiro, Extraído de "A mulher do vizinho", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1962, pág. 22.
Submited by
Poesia :
- Login to post comments
- 713 reads
other contents of AjAraujo
Topic | Title | Replies | Views |
Last Post![]() |
Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia/Thoughts | Todo problema é, em essência... (Hans Jonas) | 0 | 5.293 | 11/09/2012 - 10:31 | Portuguese | |
Poesia/Intervention | Eu não Quero o Presente, Quero a Realidade (Fernando Pessoa) | 1 | 5.002 | 11/05/2012 - 19:48 | Portuguese | |
Poesia/Acrostic | Estrada real: caminho dourado da colônia | 0 | 3.352 | 11/04/2012 - 10:17 | Portuguese | |
Poesia/Meditation | A vida segue seu curso | 0 | 1.800 | 11/04/2012 - 10:02 | Portuguese | |
![]() |
Videos/Music | Guilty (Barbra Streisand & Barry Gibb - Bee Gees) | 1 | 10.175 | 10/09/2012 - 09:58 | English |
Poesia/Intervention | De tudo quanto fui | 0 | 5.250 | 09/26/2012 - 00:27 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Sonho de criança | 0 | 3.389 | 09/26/2012 - 00:27 | Portuguese | |
Poesia/Haiku | Monte das Oliveiras | 0 | 2.944 | 09/26/2012 - 00:25 | Portuguese | |
Poesia/Intervention | Há uma urgência | 0 | 4.351 | 09/22/2012 - 13:30 | Portuguese | |
Poesia/Joy | A benção das folhas | 0 | 3.954 | 09/22/2012 - 13:29 | Portuguese | |
Poesia/Meditation | Quem chora por Teus filhos? | 0 | 4.759 | 09/22/2012 - 13:24 | Portuguese | |
Poesia/Intervention | Quando estou só... e sem rumo! | 0 | 3.974 | 09/02/2012 - 19:16 | Portuguese | |
Poesia/Meditation | Temores | 0 | 2.419 | 09/02/2012 - 19:14 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Tercetos de Vida - I | 0 | 3.752 | 09/02/2012 - 19:12 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Mouro | 0 | 3.947 | 08/01/2012 - 11:08 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | A montanha e o peregrino | 0 | 2.999 | 08/01/2012 - 11:07 | Portuguese | |
Poesia/Poetrix | Tragédia olímpica | 0 | 3.492 | 08/01/2012 - 11:07 | Portuguese | |
Poesia/Acrostic | Sorrir | 2 | 3.018 | 07/14/2012 - 22:27 | Portuguese | |
Poesia/Meditation | O primeiro passo em busca da felicidade | 1 | 4.975 | 07/13/2012 - 22:43 | Portuguese | |
Poesia/Meditation | Curta passagem | 0 | 1 | 07/13/2012 - 10:41 | Portuguese | |
Poesia/Intervention | A trilha do novo caminho | 2 | 2.864 | 07/13/2012 - 02:16 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Ausência & Insônia (Caderno de Pensamentos: II) | 0 | 2.846 | 07/11/2012 - 00:21 | Portuguese | |
Poesia/Joy | Canção de despertar | 0 | 2.403 | 07/11/2012 - 00:21 | Portuguese | |
Poesia/Thoughts | Utopia & Cotovia (Caderno de Pensamentos: I) | 0 | 3.960 | 07/11/2012 - 00:19 | Portuguese | |
Poesia/Intervention | A chegada da caixa de abelhas (Sylvia Plath) | 1 | 6.160 | 07/09/2012 - 07:43 | Portuguese |
Add comment