Lado a lado

Estamos lado a lado todos os dias. Sentas-te à minha direita e eu vejo que embalas com frieza os teus olhos no ecrã do computador. Já não olhas para os espelhos que condensam a tua alma. As salinas que me injectas nas veias têm uma flor de espécie monstruosa, plácida, errante. Sorris, mas não para mim. Escreves com os dedos tatuados de saudade provocada por uma ausência que não a minha. Afastas os teus sentidos das vozes que nos rodeiam. Esqueces o lugar onde estás e viajas por um mundo em que já não me queres, um mundo em que provavelmente nunca entrei. Da janela vem um vento forte que faz bater os estores quando alguém abre a porta do outro lado da sala. Espirro. O pó de giz que sai do quadro projectou-se no ar e veio agarrar-se à minha alma, solidificando o rosto com uma palidez fora do comum. Nenhum vestígio de programação complexa resolve a base de dados dos sentimentos cruéis com que vais tingindo as cores. O design que o programa de tratamento de imagem difunde não é mais que a representação da falsidade que te move diante da minha respiração aflita. Outrora as redes sem fios comunicariam pelo silêncio e desaguariam nos nossos corações numa sintonia absoluta. Hoje é tudo um filme de ficção recortado em códigos de criação de páginas para a web. Nenhuma ironia escrita em bloco de notas é mais real que decadência dos teus actos. A arquitectura interna do meu peito não suporta mais as peças riscadas pela mágoa, nem a voltagem errada que de propósito derramas no meu sangue. Na periferia dos sonhos restam apenas árvores queimadas, nevoeiro que as cinzas adensam ainda mais. A liberdade é posta à prova. Recuo diante das tábuas que se partem no cais. As ondas do mar libertam a sua fúria, análoga ao que se passa em mim. Fervilho. Derrubas-me, indiferente ao que os meus dedos te dizem. Mas eu permaneço vivo. A turbulência pode ser dolorosa, mas ao impacto das asas, respondo com as turbinas da alma. A potência dos sonhos pode ser abalada, mas o fôlego da esperança continuará a fazer-me respirar. Lado a lado, sucede que estou só. Mas resisto, porque sei que ainda me tenho a mim próprio.


Formatação condicional
.

rainbowsky

Submited by

Friday, May 7, 2010 - 18:15

Poesia :

No votes yet

rainbowsky

rainbowsky's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 5 years 42 weeks ago
Joined: 02/20/2010
Posts:
Points: 1944

Comments

Librisscriptaest's picture

Re: Lado a lado

Às vezes, muitas mais do q as desejariamos, estamos lado a lado com alguém e há kilometros a separarem-nos... As almas, os sentires, se deixarmos, distanciam-se todos os dias, pelo menos, um centímetro, se de qd em vez não resgatarmos os centimetros perdidos em breve se tornam metros...
Gosto sempre de te ler Rain, és um escritor de alma cheia e de coração lapidado!
Beijinho tão grande em ti!
Inês

analyra's picture

Re: Lado a lado

De ler de um fôlego só, muito sentimento transborda desta prosa poética.
Muito bela. Beijos.

Add comment

Login to post comments

other contents of rainbowsky

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Disillusion Na dobra dos beijos 4 3.883 03/13/2018 - 15:46 Portuguese
Poesia/Sadness Aquela outra lágrima 11 4.339 03/10/2018 - 09:42 Portuguese
Poesia/Dedicated Posso falar-te... 4 2.739 03/08/2018 - 17:10 Portuguese
Fotos/Others Grito de melancolia 1 5.525 03/08/2018 - 17:10 Portuguese
Poesia/Sadness Escreves ou não? 5 2.941 03/08/2018 - 17:08 Portuguese
Poesia/Sadness Frieza 3 3.190 02/27/2018 - 08:52 Portuguese
Poesia/Intervention Gestos relevantes 1 2.736 01/30/2012 - 23:02 Portuguese
Poesia/Sadness Mais que uma viagem 1 3.614 12/26/2011 - 23:44 Portuguese
Poesia/Disillusion Volátil - Parte III de III 2 2.640 12/22/2011 - 13:59 Portuguese
Poesia/Disillusion Volátil - Parte II de III 2 3.304 12/22/2011 - 13:41 Portuguese
Culinária/Cakes TARTE DE MAÇÃ DO RAIN 1 4.039 11/28/2011 - 00:34 Portuguese
Poesia/Disillusion Volátil - Parte I de III 8 2.798 11/23/2011 - 13:42 Portuguese
Poesia/Sadness Delírios 1 2.974 11/08/2011 - 18:42 Portuguese
Poesia/Sadness A verdade chega 3 3.676 11/01/2011 - 13:29 Portuguese
Poesia/Sadness A dimensão 1 3.691 10/27/2011 - 20:31 Portuguese
Poesia/Sadness Formas difíceis 3 3.723 10/25/2011 - 14:07 Portuguese
Poesia/Sadness Sanguessugas transversais 0 3.464 09/01/2011 - 20:12 Portuguese
Poesia/Sadness No avesso da alma 2 4.317 08/20/2011 - 22:27 Portuguese
Poesia/Sadness Luz fugitiva 2 4.281 08/15/2011 - 20:35 Portuguese
Poesia/Sadness VIOLA ODORATA 1 4.363 08/05/2011 - 23:23 Portuguese
Poesia/Thoughts Murmúrio e subtileza 6 2.572 07/18/2011 - 18:44 Portuguese
Poesia/Sadness Sentimento 2 3.524 07/10/2011 - 11:52 Portuguese
Poesia/Disillusion Correndo para o abismo 2 3.293 06/27/2011 - 23:52 Portuguese
Poesia/Meditation O campo da alma 4 4.170 06/14/2011 - 11:32 Portuguese
Poesia/Intervention Défice geométrico 1 3.327 05/03/2011 - 21:49 Portuguese