Aos Deuses sem Fiéis

Talvez a hora escura, a chuva lenta,

Ou esta solidão inconformada.

 

Talvez porque a vontade se recolha

Neste findar de tarde sem remédio.

 

Finjo no chão as marcas dos joelhos

E desenho o meu vulto em penitente.

 

Aos deuses sem fiéis invoco e rezo,

E pergunto a que venho e o que sou.

 

Ouvem-me calados os deuses e prudentes,

Sem um gesto de paz ou de recusa.

 

Entre as mãos vagarosas vão passando

A joeira do tempo irrecusável.

 

Um sorriso, por fim, passa furtivo

Nos seus rostos de fumo e de poeira.

 

Entre os lábios ressecos brilham dentes

De rilhar carne humana desgastados.

 

Nada mais que o sorriso retribui

O corpo ajoelhado em que não estou.

 

Anoitece de todo, os deuses mordem,

Com seus dentes de névoa e de bolor,

A resposta que aos lábios não chegou.

 

José Saramago, poeta e escritor português.

Submited by

Tuesday, May 17, 2011 - 02:37

Poesia :

No votes yet

AjAraujo

AjAraujo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 7 years 9 weeks ago
Joined: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Login to post comments

other contents of AjAraujo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Dedicated Auto de Natal 2 5.037 12/16/2009 - 03:43 Portuguese
Poesia/Meditation Natal: A paz do Menino Deus! 2 6.749 12/13/2009 - 12:32 Portuguese
Poesia/Aphorism Uma crônica de Natal 3 5.297 11/26/2009 - 04:00 Portuguese
Poesia/Dedicated Natal: uma prece 1 4.151 11/24/2009 - 12:28 Portuguese
Poesia/Dedicated Arcas de Natal 3 7.045 11/20/2009 - 04:02 Portuguese
Poesia/Meditation Queria apenas falar de um Natal... 3 7.922 11/15/2009 - 21:54 Portuguese