Toca-me um sumptuoso frio

Velado por um tormento que nasce tal cruel rebento
e onde as memórias já não têm a doçura que antes me fazia rir.
Pinto a saudade com a lágrima, corto a sombra com a desgraça,
e torno-me muralha de sonhos cansados que nada mais faz do que ruir.

A minha demanda já foi tranquila quando ainda não tinha nascido,
um sopro ainda por agarrar, uma carne por mastigar,
esfusiante mocidade agitando o espírito de forma triunfante.
Serei eu agora decadente, caindo em ilusão por apenas me lembrar?

Nessa altura era mais alegre do que um palhaço
mas deixei de o ser quando a sociedade me renegou.
Como boémio, senhor dos ares alcoolizados,
escritor que cria de um nada que só em mim tem eco,
mostrava-me demasiado inteligente para adorar quem com tontices me amaldiçoou.

Talvez o meu caminho seja brando e sem sentido
quando fantasmas e pedintes esquartejam a melindrosa noite.
Um naufrágio tão descontente que corta a calma de repente,
mostra mistério onde antes corria alegria e o torpor temido,
encontra o demónio à espreita de entoar a fogosa melancolia,
ai que se me perde o sangue neste peito ferido.

A confusão é um desencanto que me ensina a ser triste,
que me prende à carícia que é continuar sem rumo.
Levemente, a chuva esquarteja o meu espírito
como se não houvesse lugar que me quisesse
nem voz que me libertasse
deste abismo onde eu e a escuridão nos tornamos uno.

É por isso que a minha poesia vive sempre a esperança tombada,
a vil mancha que dança sem pudor na alma,
o torpe recinto onde as sombras residem amarguradas
sem saber porquê a solidão as quer confortar.

Como cortejo de mágoas estridentes
voam folhas e dançam fadas como loucas desvairadas,
uma ânsia de querer esquecer o que as horas sempre trazem,
porque o que é cor morre com o Outono e as nódoas detestadas.
Ah que rujo à má sorte porque sempre desejei viver!!!

A minha sina é que sempre dilacero o momento
e sem querer troco o jeito pelo estonteado lamento,
um reles construtor sem qualquer riqueza.
Amante de frágil constituição,
durmo porque o dia já há muito que caiu.
Sonho com a ilusão, peço a todos atenção,
mas sei que é apenas o tédio no meu íntimo já podre,
a luz transformando-se em um desejo que sem voz fugiu.

Neste recinto descontente onde os meus passos acabam,
pairam poeiras de todas as miragens sem sentido.
Em deprimente dissertação, pondero, tolero e tal como num canto sem esmero,
repito os porquês de o fogo não ter vontade de me enfurecer.

Oh se as ninfas de voz caída as mágoas entoam,
se os deuses libertam frutuosa palidez,
se os fantasmas não querem descanso e visitam parentes,
porque não me lembra o dia a paz quando é preciso?
Talvez porque pense que a minha poesia lembra um pouco a Narciso…

Sozinho, após descansar o corpo num leito imundo,
bebo deste charme que é enlouquecer sem proveitosa melodia.
Envaidecido, peço músicas que alimentem e não gritos que afugentem,
mas que fazer?
A alvorada ainda vem longe
e já perto da cortina que a tudo esconde paira o meu ser.

Pois…
Se existe um paraíso, de certeza que para lá não vou
pois sou preciso no inferno como professor.
Um amante que cobre buracos com palavras,
que lateja a carne com a rosa já erguida,
que ataca e dilacera o vazio que a mente corrói,
vil e doce língua cujo crime é morar em pecado onde já não estou.

Chama agora por mim o império dos corvos e dementes,
onde flui a grande dor de já não haver rima.
A inspiração acaba-se com a minha morte em tons de carmim,
já nada mais tem sabor…
Estou além de vós, quebro um sorriso por fim.

Um poema de minha autoria (Jorge Ribeiro de Castro) que saiu numa antologia da editora "Edita-me" no final de Outubro.
Para mais informações -» http://www.myspace.com/solitudinis ; http://twitter.com/chantdsprit

Submited by

Jueves, Enero 28, 2010 - 21:02

Poesia :

Sin votos aún

Solitudinis

Imagen de Solitudinis
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 14 años 1 semana
Integró: 12/05/2008
Posts:
Points: 285

Comentarios

Imagen de Daisy_Lee82

Re: Toca-me um sumptuoso frio

Como boémio, senhor dos ares alcoolizados,
escritor que cria de um nada que só em mim tem eco,
mostrava-me demasiado inteligente para adorar quem com tontices me amaldiçoou.

(belíssimo poema, belíssima caracterização da noite de seus caminhos...)

palavras não cobrem buracos
os fazem ainda mais vivos
em breve momento

Imagen de jopeman

Re: Toca-me um sumptuoso frio

que fantástica reaparição...

um texto sublime, onde o ser se enreda no torpor, na sina e na inquietação de um sumptuoso frio.

adorei ler-te novamente

abraço

Imagen de MarneDulinski

Re: Toca-me um sumptuoso frio

LINDO POEMA, GOSTEI!
MEUS PARABÉNS,
Marne

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of Solitudinis

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Fotos/Perfil The stains of lifeless deeds 0 1.134 11/23/2010 - 23:38 Portuguese
Fotos/Perfil Once upon the sun 0 1.142 11/23/2010 - 23:38 Portuguese
Fotos/Perfil As the sky is drowning light 0 1.129 11/23/2010 - 23:37 Portuguese
Fotos/Perfil For a sign of hopeful light 0 1.134 11/23/2010 - 23:37 Portuguese
Fotos/Perfil Looking at a loving dream 0 1.221 11/23/2010 - 23:37 Portuguese
Fotos/Perfil Passionate in a distant land 0 1.191 11/23/2010 - 23:37 Portuguese
Fotos/Perfil Once upon a loving coffee 0 1.676 11/23/2010 - 23:36 Portuguese
Fotos/Perfil Keeping the ruined memory 0 1.241 11/23/2010 - 23:36 Portuguese
Fotos/Paisaje A catedral de Novi Sad de dia (Sérvia) 0 1.315 11/20/2010 - 04:25 Portuguese
Fotos/Paisaje A catedral de Novi Sad (Sérvia) 0 1.492 11/20/2010 - 04:25 Portuguese
Prosas/Saudade "Sob um céu de Outono chorei..." - Conto Completo 0 1.042 11/18/2010 - 22:47 Portuguese
Prosas/Saudade "São asas e o vento..." - Conto Completo 0 1.022 11/18/2010 - 22:47 Portuguese
Prosas/Mistério "Sob a neblina que me corta o sangue" - Conto (Excerto) 0 1.045 11/18/2010 - 22:45 Portuguese
Prosas/Mistério "Sentiam os meus passos na escuridão" - Conto (Excerto) 0 1.019 11/18/2010 - 22:45 Portuguese
Prosas/Mistério Com a sua luz, pinto a divina gentileza - Conto (Excerto) 0 999 11/18/2010 - 22:45 Portuguese
Prosas/Mistério A arte das sombras aprisionadas - Conto (Excerto) 0 1.028 11/18/2010 - 22:45 Portuguese
Prosas/Mistério Resquícios de estranhas sinfonias - Romance (2º livro - Excerto) 0 1.316 11/18/2010 - 22:45 Portuguese
Prosas/Mistério "Tenho um sonho como consorte" - Conto (Excerto) 0 911 11/18/2010 - 22:45 Portuguese
Prosas/Mistério "De espectros e dor..." (Excerto) 1º livro 0 792 11/18/2010 - 22:45 Portuguese
Poesia/Meditación "Molduras" - prosa poética completa 0 859 11/17/2010 - 22:21 Portuguese
Poesia/Amor Inebriante e sereno (Prosa Poética - Excerto) 0 984 11/17/2010 - 22:20 Portuguese
Poesia/Tristeza Tenho dor nos meus olhos - (Prosa Poética - Excerto) 0 1.165 11/17/2010 - 22:17 Portuguese
Poesia/Amor For a muse of divine dreams 0 943 11/17/2010 - 22:16 Portuguese
Poesia/Tristeza The comfort of a fallen man 0 978 11/17/2010 - 22:16 Portuguese
Poesia/Gótico Fragille Insomnia 1 880 03/05/2010 - 02:54 Portuguese