Naqueles dias de Inverno

Dentro do carro, aguardava com expectativa o momento em que ao fundo da rua vislumbraria a tua silhueta.
Nos dias daquele inverno em que ia almoçar contigo, era assim que aguardava a tua chegada.

E tu lá aparecias. Ao longe. E caminhavas em direcção ao meu carro.
De cara levantada a exigir o respeito da vida por ti, fechada como o casaco que sempre trazias abotoado como o tempo e de passo certo, para não revelar o inseguro de um passo a anteceder o outro.
Ao aproximares-te, arqueavas um sorriso discreto, quase dissimulado e dirigias-te para a porta direita.
Já dentro do carro, um “Olá!” por entre a abertura de um sorriso nos teus lábios finos e bem delineados que sempre te caracterizaram.

Arrancando, podia observar o teu olhar, ainda meio vago, os pensamentos ainda metade fora, metade dentro do carro e o respirar circunstancial e automático como alimento à sobrevivência do corpo. À medida que o carro ia circulando, também os teus pensamentos iam-se recolhendo todos àquele espaço a cada gota que chuva que lá fora batia de encontro ao vidro e o nós começava a ganhar corpo e a tomar a sua conhecida forma.

Então, a minha mão procurava a tua e ao encontro das duas, o respirar assumia um outro papel e o teu olhar ainda meio vago, já deixava transparecer o quase confinar da tua existência a apenas aquele lugar móvel, em que ambos existíamos e que por algum tempo (pouco, sempre tão pouco) seria um espaço apenas nosso.

Por vezes, seguíamos em silêncio, ouvindo o ritmo das gotas da chuva embebido na música que do rádio soava e sentida em cada carícia que os dedos entrelaçados cantavam uns para ou outros; outras vezes, falávamos de assuntos circunstanciais, daqueles, em que cada palavra não quer dizer o que as letras a fazem, nem as frases terminam nos pontos finais, pois o que se proferia não era minimamente condicente com o que se estava de facto a “dizer”.

Chegados ao local, mudávamo-nos para o banco de trás, no qual os meus braços podiam melhor albergar o teu olhar, as minhas mãos afagar-te os sentires e os meus lábios, beber as tuas palavras.
Num instante, comíamos a nossa “refeição” – duas sandes compradas em qualquer lado, justificativas do adjectivo de almoço para o nosso encontro – para depois… depois usufruirmos do nosso verdadeiro alimento, os olhares de um no outro, o respirar de um no outro, o calor de um para com o outro.

E eram momentos únicos, aqueles que vivíamos ali, naquele espaço confinado a nós, com a música de fundo a fazer-nos companhia e com o tudo que as carícias de pele produziam no sentir de cada um.

E o tempo não passava… o tempo não existia… o tempo… era uma contagem decrescente, sempre galopante, sempre castradora do querer, que dizia que aquele tempo, aquele espaço de tempo, não deveria ser tão imensamente finito, tão imensamente pouco, tão… por nós medido a cada pulsar.

E a chuva lá fora deixava de existir, o vento deixava de se fazer sentir e o frio… era um estado de espírito em forma líquida que como que jorrando de uma chávena de café quente, nos aquecia o corpo.
Nós permanecíamos no carro, mas o nosso espírito, os nossos sentidos, os nossos sentires, estavam muito acima das nuvens, lá, onde os raios de sol nunca deixam de se fazer sentir e a luz demonstra a vida que encerramos em nós, essa mesma que muitas das vezes, sequer, disso nos permitamos aperceber.

E eu sorria. Eu sempre sorria. E o tempo passava. E o tempo terminava.

E eu adorava observar-te sempre em todos os momentos.

No caminho de retorno, tu fazias o percurso inverso. Ias gradualmente transportando-te para a realidade do mundo fora daquele carro, com o olhar vago distante, com os teus dedos (da mão que não estava entrelaçada na minha) seguravas uma ponta do teu cabelo fazendo círculos no ar e mantinhas um sorriso fino, nos teus lábios finos, enquanto o pulsar lentamente se tornava mais lento, para se sincronizar com o do tempo do relógio, que a fatalidade do mundo real nos trás.

Naquele percurso, nos instantes em que ele durava, tu ias descendo de encontro à chuva, ias descendo de encontro ao frio, de encontro à realidade que nos separava, mas… já fora do carro e vendo-te caminhar de encontro à tua tarde, eu conseguia claramente ver, que apesar de não teres nada para te proteger… a chuva não te molhava, o escuro não te encobria, porque tu… tu seguias circundada por uma luz interior, um calor em ti, que não permitia que fosses perturbada pelos indesejos mundanos e eu… que no carro ficava a ver-te seguir, eu só desejava, que aquela luz que de ti irradiava, durasse pelo menos, até ao nosso próximo encontro.

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Lunes, Mayo 12, 2008 - 17:57

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Comentarios

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Re: Naqueles dias de Inverno

Texto bem escrito em dom da palavra!

:-)

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Re: Naqueles dias de Inverno

A descrição dos "detalhes/postura" dos personagens está muito boa.

Este conto deixa no ar um aroma de algo proibido...

Bjs

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