Euclides da Cunha e Afonso Arinos

Paulo Monteiro

Comemora-se, neste ano, o centenário de publicação de Os Sertões, obra representativa dentro da Literatura Brasileira. Seu autor, Euclides da Cunha (1966-1909), é estudado por centenas de apaixonados admiradores, os euclidianos, que se reúnem regularmente para trocar informações sobre a evolução de seus estudos. A bibliografia sobre a obra euclidiana é enorme, contando-se aos milhares os títulos disponíveis, entre livros e artigos.
Quando analisamos a correspondência de Euclides encontramos cartas destinadas a Francisco Escobar, seu amigo de São José do Rio Pardo (In Euclides da Cunha, Obra Completa, Volume II, Companhia José Aguilar Editor, Rio de Janeiro, 1966, págs. 619-621), comprovando que o livro foi publicado entre 3 e 19 de outubro de 1902, pois a esta última data o livro já havia chegado ao interior paulista. No dia 3 de dezembro José Veríssimo, um dos críticos literários brasileiros mais importantes, publicava um artigo consagrador no Correio da Manhã. Veríssimo dizia: “O livro, por tantos títulos notável do sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um etnólogo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza como aos contactos do homem, e estremece todo, tocando até ao fundo d’alma, comovido até às lágrimas, em face da dor humana, venha ela das condições fatais do mundo físico, as secas que assolam os sertões do norte brasileiro, venha da estupidez ou maldade dos homens como a campanha de Canudos” (Cit. Por Homero Sena, in LITERATURA: A PROSA, inc. em BRASIL 1900-1910, v. 2, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1980, págs. 83-84).
Euclidiano respeitado, Adelino Brandão escreveu A Sociologia d’Os Sertões (ARTIUM Editora), onde é salientada oposição entre civilização e barbárie no clássico de Euclides, inclusive comparando-se com Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), autor de Facundo, pois o escritor brasileiro via a explosão sertaneja de Canudos como conseqüência das populações interioranas terem sido abandonadas durante três séculos. Noutras palavras: Euclides via o confronto entre o litoral (civilizado) e o interior (bárbaro).
Quando estudamos a literatura do entre-séculos vemos que esse entendimento não era propriedade particular ou criação de Euclides da Cunha. Nem ele foi o primeiro a escrever sobre a Campanha de Canudos; nem suas idéias são o produto de uma cabeça superiormente iluminada. O mineiro Afonso Arinos (1869-1916), contemporâneo e confrade de Euclides na Academia Brasileira de Letras e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, publicou o romance Os Jagunços, em 1889, sob a forma de folhetim em O Comércio de São Paulo e, sob a forma de livro, no mesmo ano, usando o pseudônimo de Olívio Barros (In Afonso Arinos, Obra Completa, Volume Único, INL, Rio de Janeiro, 1968, págs. 121-383). Pura obra de ficção, contendo todas as características da literatura folhetinesca, embora acolhendo dados e informações históricas, Os Jagunços é um dos muitos livros sobre Canudos que acabaram ofuscados pelo brilho que acompanhou Os Sertões desde o nascedouro.
Ao compararmos os dois autores, o que chama a atenção é a coincidência de idéias entre ambos, Eles, porém, tinham origens de classe e práticas políticas diferentes. Mineiro, monarquista empedernido, vinha de uma família tradicional e rica, sempre viveu nos meios ricos e cultos, transitando entre as classes abastadas do Brasil e da Europa, freqüentando ambientes sociais mais elevados; o fluminense, republicano histórico, vinha das camadas modestas da sociedade, que começavam a ascender com a cafeicultura, viveu sempre lutando com as dificuldades financeiras, estranho à alta sociedade, preferindo mais o interior do País.
“Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos ou desaparecemos”, escreveu Euclides da Cunha (Os Sertões, Editora Record, Rio de Janeiro, 1998, pág. 72), em 1902, ecoando o que Afonso Arinos publicava em 9 de outubro de 1897, quatro dias após canudos ter sido arrasada. O autor de Pelo Sertão ia direto ao assunto: “Admitir-se que a simples ação de um indivíduo possa produzir o fanatismo de um povo, é ser cego, é não conhecer alguma coisa da História ou da Sociologia” (In op. Cit., pág. 664). Na página seguinte conceitua: “Era um movimento de fanatismo que cresceu até chegar às proporções de perigo público, graças à força que se lhe opôs desde o começo”.
Após salientar que a propaganda oficial e o abandono das populações sertanejas contribuíram para, de um lado, lançar o povo contra os sectários e, de outro lado, impeli-los à luta, destaca o caráter defensivo do movimento. “Venceu, como devia vencer, a força que representa a civilização; venceu a autoridade que o jurista chama a mais alta expressão de toda a força”.
Sempre destacando o esquecimento a que foram relegados os moradores do interior, concluía que “eles abriram o caminho para a civilização, que só marcha através da violência”. E foi essa violência que Euclides da Cunha retratou no seu livro “vingador”.
Exatamente na expressão do próprio Euclides, “livro vingador”, tantas vezes repetida e tão mal compreendida é que está a chave para o entendimento da sobrevivência do livro.
Quando Adelino Brandão identifica Os Sertões e Facundo vai pelo caminho certo. O clássico de Euclides filia-se a uma família de obras latino-americanas, entre as quais estão incluídas Cartas Chilenas, de Tomaz Antônio Gonzaga, o próprio Facundo, Martín Fierro, de José Hernandez, Antônio Chimango, de Amarro Juvenal (Ramiro Barcellos): o panfleto literariamente elaborado. Ao invés do discurso, do ensaio: o romance, o poema.
Os Sertões sobrevive pelos seus méritos literários e não pela superioridade científica demonstrada pelo Autor. Isto, porém, exige outros desdobramentos.
(Publicado em O Nacional, p. 2, a 21 de maio de 2002, e em O Cidadão, no dia seguinte, ambos jornais de Passo Fundo).

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Domingo, Febrero 8, 2009 - 20:41

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